LAMPIÃO E O PÉ-DE-BODEIRO

Crônicas

José de Melo Carvalho

Contavam os mais velhos que no bando do famigerado Lampião, apesar das ordens rígidas, havia um irrequieto e safado companheiro que pintava das suas em todos os momentos. Ora namorava nas paragens e atrasava o grupo, ora roubava comida e qualquer apetrecho que encontrasse.
Uma melancia, um bornal de farinha, uma garrafa de mel de abelha, um chapéu de couro, ovos, uma garrafa de cana, um bode, uma espingarda, um facão. Era ladrão pra ninguém botar defeito.
O chefe desconfiava. Nas horas de descanso e de orientação sobre as estratégias a ser postas em prática, o sacana estava atento. Nos momentos de folgas, tocava o seu pé-de-bode, depois da chegada das meninas convidadas nos povoados próximos do acampamento.
O capitão Virgulino gostava de forró e era louco pelo xaxado. Certa vez, Lampião viu-o tirando umas casquinhas com a mulher de Zé Baiano. “Se eu pegar você na próxima vez vou estripá-lo com este punhal, seu cabra”. O danado era incorrigível.
O chefe aplicou-lhe uma surra porque ele roubara um anel de Pancada, membro do grupo. De outra vez, levou um murro de Sabonete porque estava roubando no jogo de baralho.
Apesar dos pequenos deslizes, ele era o grande animador do grupo, tinha aprendido a tocar pé-de-bode (sanfona) ouvindo seu Januário, pai de Luiz Gonzaga, o Rei do Baião. Seu Januário reinava na época, de Tabocas a Rancharia e de Salgueiro a Bodocó, no alto sertão de Pernambuco.
Pé-de-Bodeiro, nome recebido ao ingressar no bando, pegou de tal jeito que até os coiteiros sabiam do apelido. Pequeno, de pele escura, faltavam-lhe os dois dentes principais da arcada superior. Era a alegria do grupo nas noites enluaradas. Num dos combates com as volantes, Pé-de-Bodeiro levou um tiro na testa e morreu deixando saudades.
Muito tempo depois, no dia 28 de julho de 1938, na fazenda Angicos, em Sergipe, parte do bando foi abatida, também Lampião e Maria Bonita, numa emboscada comandada pelo tenente João Bezerra.
Parte deste ensaio é fruto de imaginação. Mas a minha intenção foi para registrar um fato que ocorreu no sítio Serra Gravatá, município de Santana do Ipanema, de propriedade do avô paterno do autor, seu Chico Vicente, homem do sim, sim, do não, não.
Ora, naquela década de 30, Virgulino semeava terror e morte no Nordeste. Foram quase vinte anos sangrentos. Diversas investidas das volantes do governo não surtiam efeitos. Sabia-se que muita das vazes elas se encontravam com o bando e participavam de noitadas alegres.
Nenhuma recompensa pela cabeça do sanguinário bandido obtinha êxito, inclusive uma oferecida pelo governo da Bahia (50 mil réis), que dava para comprar hoje cinco carros de luxo. Pelo contrário, aumentava ainda mais a fama de Lampião.
Pois bem. João de Couro e sua esposa Catarina eram moradores de meu avô. Tiravam leite, plantavam, roçavam, catavam algodão e cuidavam dos animais, entre outras obrigações. Tinham medo de Lampião, que tremiam como vara verde. As histórias contadas pelos vizinhos e amigos faziam que eles adoecessem de tanto temor.
Numa tarde, o casal arrumou os picuás e procurou o patrão para comunicar-lhe que decidira ir embora, pois os cangaceiros estavam chegando à região e os dois não iam ficar ali à mercê dos bandidos. Não houve jeito de meu avô dissuadi-los. Os dois saíram depois do pôr-do-sol, em direção a Tanquinhos, povoado de Águas Belas, no vizinho Estado de Pernambuco.
Andaram a noite toda e ao amanhecer alcançaram o povoado. Naquele exato momento, um grupo de Lampião acabava de cercar o lugarejo. Depois de subtrair dinheiro, comidas, armas, bebidas, desceu a madeira na população, sem pena.
Resultado: depois de dois dias, o casal retornou às origens, caladinho, cheio de hematomas, arranhões, olhos roxos. Meu avô já sabia da história e nada lhe perguntou. Em verdade, o casal fora somente levar uma surra dos cabras de Lampião.

Maceió, junho/2008.

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