EU E MEU PAI: UM RÁDIO, UM RELÓGIO E A CANÇÃO

Contos

João Neto Felix Mendes

Parte um: Ontem

Um rádio, um relógio e a canção foram a herança deixada por meu pai. Cego desde os seis anos de idade, como ele mesmo dizia, a causa real de sua cegueira nunca foi claramente identificada. Contava que, ao imergir de um mergulho num riacho nas cercanias em Major Izidoro, as cores do mundo foram diluídas para um descoloramento pretume sem fim. Contudo, ainda guardava a aquarela que conseguira armazenar em sua consciência. A beleza do ser humano consiste em se adaptar as adversidades que são impostas pela vida. Aliás, eis razão da sobrevivência da raça humana desde tempos imemoriais. Decerto que se procura desenvolver habilidades para compensar aquilo que se falta.
Assim, meu pai desenvolveu dons preciosos na sua vida: Adorava ouvir o tic tac de relógios mecânicos de parede que tocavam as horas. O tempo lá em casa era fracionado em segundos! Tivemos um ambiente bastante musical. As habilidades para lidar com vários instrumentos musicais fora-lhe também uma marca singular; violão, cavaquinho, gaita de boca, e harmônio, instrumento musical utilizado nas igrejas de sua época. Tornou-se então, versátil músico. E, por fim, uma enorme capacidade de lidar com a informação. Nós dispúnhamos de uma variedade de rádios. O dia despertava, acordando as cinco da matina para as audições dos programas das rádios das regiões. Bem informado, saía em suas caminhadas matinais e vespertinas a divulgar as novidades pela cidade. Até empresário de comunicação chegou a ser. Foi sócio de uma emissora de rádio em Santana. Por fim, o mastro da antena de transmissão se transformou em viga de telhado e nos deu abrigo.
O desenvolvimento cognitivo de uma pessoa, por assim dizer, será fortemente influenciado pela convivência de gerações adultas sobre aquelas menos preparadas, especialmente na família. Aprendi a gostar de cuidar de relógios, intuitivamente. Nos seus últimos momentos e com o agravamento das complicações cardíacas e prenunciando a possibilidade iminente da morte, dizia:
- Quando eu morrer tome conta dos meus relógios...
Compulsivamente, certa vez, passando pelo comércio de Santana do Ipanema, comprei um violão. Ao chegar em casa, todo contente contar ao velho a boa nova:
-Pai, comprei um violão!
-Ele disse: ficou louco menino, sem saber tocar nada!
- Retruquei: o Sinhô me ensina! Ele respondeu: Eu mesmo não...
Ainda ensaiamos uma canção: “A deusa da minha rua.” Nunca chegamos a nos apresentar , que pena! Teria sido emocionante! O Velho e novo; gerações que se entregam e se veneram. O bastão da vida sendo passado adiante.
Ele era assim, meio rude e sagaz, como jóia rara clamando por mãos de hábil ourives. Sensível e desprovido de maldades, não chegou a ser contaminado pela pobreza do nosso mesquinho olhar de impronunciáveis e avassaladores desejos.
Agora entendo que a sua desconfiança quanto o meu interesse musical foi a força que me motivou ao longo dos anos. Fiz de mim mesmo o professor.
Tivemos um sonho comum que não chegou se a concretizar; ter um piano em casa. As dificuldades financeiras e um instrumento cada vez mais raro nos lugares, frustrou a realização. A vida é surpreendente! Seu Liô morreu e não chegamos a vivenciar mutuamente a magia que somente a música pode propiciar. Fui protagonista das canções que embalou sua despedida desde o funeral ao sepultamento. O poeta Fernando Pessoa, como ninguém, expressou a alma humana em versos tão eloqüentes: “Para ser grande, sê inteiro. Sê todo em cada coisa. Nada teu exagera ou exclui. Põe quanto és no mínino que fazes e assim, em cada lago, a lua toda brilha porque alta vive.”

Parte dois: Hoje (Vinte e três anos depois)

Descerrou-se a cortina do tempo. Em nossa ignorância, muitas vezes não entendemos as lições que a vida nos proporciona. Levamos décadas para decifrá-las. Quanto tempo é suficiente para se entender o que devemos ser? Sabiamente o tempo mostra o tempo adequado para se entender o que se precisa ser compreendido.
“És um senhor tão bonito quanto a cara do meu filho; tempo, tempo, tempo, entro num acordo contigo; tempo, tempo, tempo. Compositor de destinos, senhor de todos os ritmos; tempo, tempo, tempo...” Tempo de decifra o indecifrável. Tempo atemporal... Tempo que transforma informação em conhecimento. Tempo que nos revela que nas palavras estão contidos os segredos do universo; o poder da criação! Tempo que maltrata lentamente nossa ignorância não cronológica. Entendimento tardio, revelado em instantes extemporâneos. Tempo, tempo, tempo, quando me chegar a compreensão, faço pacto contigo.
Corpo e consciência que nos aproxima das pessoas sem atalhos. Gente que vai, gente que vem. Lentamente nos exige estar atento à vida e as emoções; viver, correr perigo! Em dezembros atravesso horizontes, desertos, vales e montanhas na extenuante caminhada de encontro a si mesmo. Fugir é uma quimera fugaz. Não são novas paisagens de que precisamos e sim, novos olhos.
Ah a canção! Que seria de mim sem a canção, sem a música... Sons que se juntam, combinam-se e nos levam às portas do céu e nos conduzem ao solitário universo da alma, angústia de vivente, onde se desnudam os sentimentos e nos enxergamos como rimas pelo céu que se escondem nas nuvens. “Alçar no ar acordes que agasalham a voz e o coração de um cantor...”
Hei salvar a mim mesmo nesse conto. No fim o que prevalecerá mesmo será a essência. “Há muito tempo que saí de casa. É tão bonito quando a gente sente que a gente é tanta gente aonde quer que a gente vá. É tão bonito quando a gente sente que nunca se estar sozinho por mais que pense estar.”
Que maior fortuna pode um homem receber? Relógios? Rádios? Canções? Dinheiro? Ouro? Nos rádios e na comunicação; a expressão do conhecer e discernir. Das canções, a clarividência dos sentimentos! Do tempo; a lição vagarosa e cruel de que o sofrimento é ausência de entendimento e aprendizado. Agora tenho dois pianos, cinco relógios e uma infinidade de canções. O crepitar da chama no meu peito ainda arde, nada foi em vão. “Começaria tudo outra vez.” Hoje é domingo? Então licença, preciso sair pra dar corda nos relógios e ouvir outras canções! Quiçá chegue a você.



“Quem, de três milênios,
Não é capaz de se dar conta
Vive na ignorância, na sombra
À mercê dos dias, do tempo.”

Jonhan Wolfgang von Goethe

Canções citadas no texto:
Tempo, tempo, tempo (Caetano Veloso).
Partituras (Flávio Venturini/Jane Duboc)
Começaria tudo outra vez e Caminhos do Coração ( Gonzaguinha)
Dezembros (Fagner/Zeca Baleiro)


Primavera de 2008

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