Chove. O dia foi da chuva! Quase não percebo a sinfonia dos céus. Passo o dia inteiro enclausurado. Vejo gente apressada, correndo pra um lado e pra outro, fugindo não sei exatamente de quê. Semblantes preocupados, apressados e enigmáticos. Vejo-me também passando entre eles. A tarde atravessou o dia e a chuva, continua. O sol não apareceu. Por onde anda a lua? As ruas vão ficando vazias. As pessoas vão se recolhendo! A tarde entrega-se ao anoitecer e a imagem do dia invernoso permanece. Sinto um misto de melancolia; a rua escura, o vento frio, uma saudade, um vazio... As emoções pungentes carecem de palavras para descrevê-las. Chegou o instante de ir embora. Estou ansioso pra sair.
Continua chovendo, agora mais delicadamente, pois consigo ver os pingos prateados caindo sob as luzes da cidade como um imenso arco-íris. Imagino o vento e a chuva num imenso balé. Vejo o vento pegando a chuva para dançar, rodopiando no ar, sincronizados e se dissipando como nuvem transparente. Tenho que ir embora, mas não tenho guarda-chuva. Assim vou eu, caminhando a esmo, em passos lentos, contemplando a beleza do tempo! A brisa suave que toca meu rosto trás junto um misto de emoções contidas e indagações. A ausência de gente na rua torna-me introspectivo. Embevecido em pensamentos vou seguindo. O único som que escuto são os pingos da chuva que se desmancham com força do vento. Sinto vontade de correr, porém desisto. Sinto vontade de gritar, mas me contenho.
O menino do passado estende a mão ao menino do futuro. Os sentimentos da criança, do adolescente e do adulto se confrontam confusos, como o próprio ser...
Do trabalho até minha casa há pouco a caminhar, muito a sentir, pensar e viver... Na minha cabeça se inicia a projeção de um filme. Sou o protagonista principal. Será que a direção é de “Almodóvar”, “Tarantino” ou “Benigni”? A vida é bela, principalmente cantando na rua, sem guarda-chuva!
Criança. O chão da rua ainda é de barro batido. A enxurrada arrasta quase tudo que aparece à frente! Tomar banho de chuva renova! Lava o corpo e a alma! Até chorar na chuva é bom. E o amor e a chuva nos filmes americanos? Há tempos não tomo banho de chuva... Não esqueço das construções de tapagens na rua e instalação de adutora com canos feitos de galhos de mamoeiros que, ocos, e encaixados um a um, serviam para escorrer a água barrenta. A engenharia dos meninos...
Recupero a lucidez e, divagando, alcanço o destino. Continua chovendo. Não me incomodo. Estou completamente molhado, mas isso não me aborrece. Sinto paz! Olho a rua, o calçamento. As acácias e o flamboyant se aquietaram, postes iluminados, as casas fechadas e a chuva que cai... As flores se recolheram! Onde estão as rosas, os cravos, as dálias e os jasmins?
Adolescente. Continuo fascinado pelo mistério da chuva e as enchentes do Ipanema. A força de água levando incontinenti o que encontra pela frente. Como a força da paixão que nos impele a romper a timidez e os obstáculos... O amor que nos impulsiona a assumir riscos sem medo do porvir... No dia seguinte, sobram os rastros indeléveis e avassaladores que desnorteiam caminhos, ficando apenas o pretérito como herança.
Adulto. A pressa, o trabalho, os compromissos e a modernidade quase tomam tudo de nós. A dureza da chuva sobre o asfalto, levou-nos a delicadeza, a singeleza e a sensibilidade. Sobre o areão lá se vão automóveis; sonhos, amigos e o tempo...
Meu olhar lacrimoso fita o serrote, ao longe. A luz tênue do único poste brilha forte, teimando em ser percebida, coberta pelo manto prateado que envolve a colina. Mesmo sendo noite recordo-me do Ipê-roxo de todos os anos, na primavera, lindamente florido e apenso ao pé da serra. Em pensamento alço vôo até a serra e de lá contemplo a beleza noturna da cidade silenciosa, abraçada pelo véu da neblina transparente, deixando-se ver apenas fachos cintilantes e reluzentes da iluminação artificial, parecendo uma imensidão de estrelas citadinas. Uma cidade clareada por estrelas! Ou mesmo iluminada pelos raios do sol matinal repousando sobre cristais, cujo brilho ofusca o cristalino.
Do alto, ouve-se o esbravejar do rio denunciando sua fúria diante das pedras e curvas sinuosas e se lançar inteiro, ferozmente, seguindo o curso em busca do mar, a paz definitiva, cortando caminhos e semeando, as margens, sementes de craibeiras e mulungus, sem reservas e sem medos dos riscos e esperar pela primavera.
Quisera ter um piano e daqui tocar “Jesus Alegria dos Homens” para, em êxtase, embalar a cidade.
De súbito, retorno a mim e sigo. Chego a casa e também não há ninguém. Ouço um som que me lembra as lavandeiras. As pequenas aves que já não se vê pelas ruas da cidade a gorjearem. As ruas nada mais lhes oferecem e elas foram embora. Tomaram-lhes as amendoeiras...
A cidade dorme. Canto canções de esperança, canto melodias de aquecer o coração.
Adormeço ouvindo, na antiga vitrola, a canção: “Olhei um dia de chuva, vi que mais triste era eu, que sem estrelas, sem lua te procurava no céu. Fiz do piano, a viola. Fiz de mim mesmo o amigo. Fiz da verdade uma história, fiz do meu som meu abrigo...”.
Arapiraca-Maio/2006
Conto Publicado em 30/07/06
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