Cronistas santanenses
Lúcia Nobre
“Deus criou os céus e os desdobrou, que firmou a terra e toda a sua vegetação, que dá respiração a seus habitantes” (Isaías, 42,1-7). Assim, a terra se valoriza. Não há beleza maior que respirar em ambiente beneficiado por uma suntuosa vegetação.
Cronistas santanenses, inspirados como poetas sertanejos, plantam e implantam raízes de umbuzeiros, juazeiros, quixabeiras, craibeiras que de tão folhados e frondosos, nos presenteiam com seus frutos, além de oferecer sombras para um merecido deleite.
Maria do Socorro Ricardo dialogando com Santana iconográfica de Zabé Brincão aos nossos dias, nos diz que:
Cronistas têm a importância da fauna, do oxigênio
em uma cidade, são quase sapos que anunciam chuva
e as folhas das craibeiras. Nas noites um vento, talvez
cresçam as folhas dos umbuzeiros; no curral, as estacas
de angicos e aroeiras são caminhos de lagartixas; nas
altas horas a quixabeira no alto de sua idade observa o
tatu, o peba, o porco do mato, o tatu-bola, a raposa (...) ( p. 79,80).
Diante de tudo isso, somos convidados a nos deliciar ao sabor dos frutos que nossa terra nos oferece. Histórias contadas por antepassados, por negras, como Zabé brincão, ou, por mitos criados por moradores, que nos fazem acreditar em contos de fadas, ou, mesmo, em histórias dos próprios moradores da cidade.
Em Santana tinha uma família de pretos e o povo falava que comia urubu. Diziam que fediam porque urubu come carniça. Como é farta a imaginação do povo que também é povo. Contavam que ali, um negro ermitão virava lobisomem. As pessoas, principalmente, as crianças, acreditavam e receavam aproximarem-se do homem.
O brasileiro é descendente das diversas culturas aqui enraizadas. Povo híbrido, só podia ter assimilado tudo que lhe foi imposto, tudo que lhe foi ensinado. Os elementos apreendidos e amalgamados deram origem às crenças, aos hábitos e à poesia do povo. É a sabedoria prática do povo.
Conta uma menina da época, que vinha do Ginásio Santana no horário noturno e o avistou. O medo cresceu. Fatalmente, os dois se encontrariam. Não dava mais para desviar do caminho. Devido ao horário, os moradores da rua já fecharam suas casas. Armou-se de coragem e resolveu enfrentar o perigo. −Boa noite seu Fulano. Cordialmente, o homem respondeu o cumprimento. Para a menina, desfizeram-se o mito e o medo.
Afirma Socorro: “desde pequenos, habituamo-nos a conviver com Zabé. Ela tinha um carinho especial com todos nós” e “quando Zabé chegava em nossa casa, todos nós corríamos e fazíamos aquela festa. Ela sentava-se ao chão e a gente também se sentava em volta dela. Ali, as horas se passavam que nem percebíamos; tantas eram as histórias que escutávamos” (p. 17).
O que aconteceu entre Zabé e a família de Socorro, lembram os versos de Marília de Dirceu, de Tomás Antonio Gonzaga. Eram cantados pelas negras aqui no Brasil, de engenho em engenho. No território brasileiro e, em particular no Nordeste, os escravos vindos para cá tinham seus trovadores e também o hábito de contar suas histórias, cantando ou narrando. Segundo Luiz Câmara Cascudo, a África ainda conserva seus escritores verbais, oradores das crônicas antigas, cantores das glórias guerreiras e sociais, antigas e modernas. Silvio Romero diz que no tempo da escravidão, os negros cantavam suas saudades da terra que ficou atrás. As canções dos negros, arraigadas na memória do brasileiro, ficaram como mais uma prova de afetividade e ternura que demonstravam pelos filhos dos brancos.
Zabé brincão nutria essa afetividade pelos brancos que a recebiam com carinho. Retribuía essa afeição contando suas histórias. As crianças aprenderam desde cedo a respeitar a cultura do outro. Enfatiza a escritora Socorro: “escutam-se com ouvidos de ouvir e jamais se esquecer, pois o que se ouve repete-se a outros ouvidos em uma espécie de campo metafórico infinito das possibilidades memoráveis” (p. 17).
Já não é de agora, que os poetas santanenses cantam sua terra. Replantam árvores que se multiplicam. E os conterrâneos sedentos de novos e bons frutos, de uma boa colheita, saboreiam esses frutos. Como um autor só é um autor quando encontra o seu leitor, e esse encontro se dá pelo livro, os poetas transformam em livros suas inspirações, para que o leitor participe com ele a beleza de sua poesia.
Com certeza, o contador de histórias, o poeta, ou mesmo, o contador de tretas herdaram o dom dos antepassados que vinham de terras distantes e cantavam suas saudades. Tornou-se costume e a poesia volta dialeticamente aos seus começos que terão sido os próprios inícios da linguagem, o homem descobrindo e abordando a natureza, marcando com o signo verbal a sua pose e guardando-a pela memória. Estilizando a cantiga do povo, o escritor traz o tempo para sua história, aquele tempo que passou, mas que ficou transformado em poesia por meio da literatura, porque o tempo passa, a poesia não.
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