O LATIM DE "TARDE FRIA"

Djalma Carvalho

O apelido que o simpático negrinho Dionísio recebera dos seus conterrâneos em Santana do Ipanema tinha tudo a ver com Tarde Fria, canção de grande sucesso a partir da segunda metade da década de 1950, interpretada por Cauby Peixoto, consagrado astro da música romântica brasileira.
Vejamos, pois, a letra de autoria de Henrique Lobo e música de Ângelo Apolônio:

“Tarde fria,
sozinho espero.
Só você, que não vem,
eu quero...

Tarde fria,
sinto frio na alma.
Só você, que não vem,
me acalma...

E o vento sopra frio,
gelando...
e eu, sem você,
até quando?

Vem o vento,
e a tarde é fria.
Estou só,
e minha alma vazia...”

Acabo de ler o livro Vida Boa, em que o autor, Bartolomeu Barros, também lembra, em interessante crônica, a figura do negrinho Dionísio, apelidado de “Tarde Fria”, que morava no bairro Domingos Acácio, ou Cachimbo Eterno, em Santana do Ipanema.
No meu livro Caminhada, publicado em 1994, dediquei três páginas à história do espirituoso “Tarde Fria”, boa gente, respeitador e educado. Tinha o magro e lépido negrinho a profissão de sapateiro, com oficina e tudo. Fora daí, exercia, nas horas vagas, a profissão de garçom. Quando nada disso havia, encaminhava-se para os bons momentos de boêmio, tomando seus homéricos porres de fim de semana, namorando e fazendo farra. Não trabalhava na segunda-feira, dia dedicado, segundo ele, a São Sapateiro. Dia de preguiçoso, afinal.
Voltemos ao criativo apelido. O esperto negrinho dizia-se bom cantor, depois que tomava vários copos de cerveja ou outra bebida qualquer. Em voz alta, a plenos pulmões, rua acima e rua abaixo, danava-se a cantar, interpretando “Tarde Fria”, sua canção preferida. Não se incomodava com o apelido.
Gostava de terno e sapatos brancos, na melhor versão de malandro carioca. Alegre, sorridente. Depois de contar uma piada, desmanchava-se em gostosa gargalhada, mostrando a alva dentadura. Engraçado e querido, seu nome ficou registrado na história da cidade.
Exímio nadador, em memoráveis enchentes do Ipanema atravessava o impetuoso rio, zombando dos perigosos remansos. Mas um dia, por ironia do destino, “Tarde Fria” veio a cair, tragicamente, da ponte que liga a cidade ao seu bairro. Foi encontrado estendido, sem vida, sobre as pontiagudas pedras do leito do rio.
Para concluir a conversa, diga-se que “Tarde Fria”, tendo o pai como fervoroso católico, puxador de fila de procissão, também ele assiduamente frequentava a igreja matriz da cidade, aos domingos, feriados e dias santos.
Aos sábados, padre Bulhões costumeiramente reunia ao pé do altar-mor, em semicírculo, casais do interior da paróquia para celebrar o chamado casamento coletivo. “Tarde Fria”, estava por ali, assistia à cerimônia e, vez por outra, ajudava o padre, que já se encontrava idoso, cansado e doente. Então, ouvia e anotava, a seu modo e trocando letras, as palavras ditas em latim. Certa feita, o vigário, ainda que nervoso, pondo a mão sobre a cabeça de um dos noivos, disse quase inaudível, “orate, frater” (orai, irmão).
Para “Tarde Fria”, o padre teria dito “oraiti, flaiti”. Perguntado sobre a tradução disso aí, respondia de pronto, com o devido gracejo: “Levanta-te, corno!”

Maceió, fevereiro de 2015.




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