Djalma de Melo Carvalho
Membro da Academia Maceioense de Letras
Lembro-me – menino eu era ainda – de quando pararam à porta lá de casa, no sítio Gravatá, quatro ou cinco cavaleiros, tendo à frente o padre José Bulhões, então pároco da cidade de Santana do Ipanema. Em boa montaria, os viajantes aproveitavam o belo domingo ensolarado para subir a serra do Gugy, onde, lá no topo, o vigário possuía sítio com muitas fruteiras e fonte perene de água cristalina.
Morando no sítio Gravatá com meus pais e meus irmãos, percebia que não era comum a passagem de importantes viajantes por aquelas bandas. Minha mãe recebeu a todos com atenção, solícita e admirada com a presença do vigário que celebrara seu casamento e batizara pelo menos oito dos seus dez filhos. O padre, que tinha sede, pediu-lhe água dormida.
Para mim o que seria água dormida? Água dorme? Água sonha? Água acorda?
Explicou-me depois Dona Lila, minha mãe, que se tratava de água fria, guardada de um dia para o outro em potes ou em quartinhas, porque então, ali, não existia geladeira.
Há poucos dias, em viagem de turismo a Aracaju, Sergipe, lembrei-me desse fato de tantos anos passados. Em companhia de bons e animados amigos, a viagem teve como motivação o evento junino chamado Forró Caju 2015. Dois dias de festa e de passeio marcaram nossa estada na bela e simpática capital do vizinho estado de Sergipe.
Na verdade, a lembrança do fato me veio após a leitura da crônica “O Enterro de Eudália”, publicada no Jornal da Cidade, de Aracaju. O termo “água dormida” pareceu-me que tivesse algo a ver com as inusitadas expressões usadas pelo autor da interessante crônica. O escritor José Lima Santana conta a engraçada e emblemática história de Eudália, donzela encruada, igrejeira de mais de 80 anos de idade e papa-hóstia tolerada pelo velho pároco da cidade de Cumbe, interior sergipano. Solteirona desesperada, Eudália falava de tudo e de todos; dos namoros na praça, dos beijos e das sem-vergonhices da moçada do lugar. Criticava os padres modernos que usavam calça e camisa em vez de batinas, parecendo-lhe que os papas haviam ficado doidos. Ela era da época em que, segundo o autor, “barriga de padre era cemitério de galinha” e caixão de defunto era conhecido como “pijama de madeira”.
Num belo dia chegou a Cumbe um seminarista, que deveria ajudar, por alguns dias, o pároco da cidade em missão pastoral. Eudália não aceitou hospedar o jovem seminarista, que se quer usava batina. Dar-lhe-ia, sim, as refeições, como combinado, mas dormida na casa da solteirona de respeito, nada!
Muito tempo se passou. Ordenado padre, e agora pároco provisório, o seminarista do passado voltou a Cumbe, justamente no dia da morte de Eudália. Celebrou a missa de corpo presente e se dispôs a assistir ao sepultamento do seu corpo. No trajeto entre a igreja e o cemitério, aconteceu que o caixão foi ao chão depois de desastroso tropeço de um dos carregadores.
Eudália, que sofria de catalepsia (distúrbios do sono e outras complicações psíquicas), acordou atordoada, provocando correria e alvoroço. Saindo do caixão e vendo o dito seminarista diante de si, perguntou-lhe: “Tá de volta?"
Parabéns, afinal,ao escritor José Lima Santana.
Maceió, julho de 2015.
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