“AS FONTEIRAS ENTRE A NORMALIDADE E A LOUCURA É UM FIO MUITO FRACO”

Pe. José Neto de França

Não somente alunos do Brasil inteiro estavam apreensivos com o tema da redação do ENEM-2020, realizado tardiamente na tarde de domingo do dia 17 de janeiro de 2021, em função da pandemia da COVID-19, como também “curiosos” e pesquisadores como eu mesmo.

Logo que o tema foi publicado na mídia, “O estigma associado às doenças mentais na sociedade brasileira”, lembrei-me de uma frase, se não me engano, de Sigmund Freud que diz “As fronteiras entre a normalidade e a loucura é um fio muito fraco.” Segundo ele, todos temos um pouco de loucos.

Não quero, aqui, me deter na perspectiva do pensamento Freudiano, nem, também dissertar sobre o tema da redação, mas no meu pensamento que é reflexo do meu dia a dia como sacerdote que acompanha inúmeros casos de pessoas que a mim acorrem tendo em vista problemas psicológicos/psiquiátricos/espirituais, além de mim mesmo como pessoa humana sujeita a todo tipo de intempéries. Vamos lá...

Somos seres pensantes, ou seja, dotados de uma razão; razão essa que está condicionada a nossa genética, a educação que tivemos de nossos pais, ao convívio sociocultural e as escolhas que fizemos ao longo do tempo.

Independentemente de nossa personalidade vivemos no limiar “entre a normalidade e a loucura”. Exemplificando, somos como um revólver que está engatilhado, só esperando um dedo para puxar o gatilho; ou ainda como uma flexa que está no arco pronta para ser disparada.

Logicamente que disparar ou não vai depender de muitos fatores. E esses fatores têm muito a ver com a personalidade que o indivíduo desenvolveu ao longo da sua linha do tempo.

Poderia dar muitos exemplos, mas quero me deter aqui em apenas dois.

O primeiro aconteceu comigo.

Pouco tempo depois que fui admitido como funcionário do setor SECC/Cadastro no Banco Econômico, na capital paulista, onde residi por doze anos, já tendo adquirido dentro do setor e do banco novos conhecimentos, e ampliado minhas amizades, fui convocado para substituir outro funcionário que estava afastado por motivo de doença, no setor de câmbio.

Nesse departamento, desenvolvi meu trabalho com tanta responsabilidade que, terminado o período, fui sondado pelo chefe local para uma possível transferência. Segundo ele, se eu aceitasse, seria o provável substituto do auxiliar de chefia que estava para ser transferido para uma agência. Em outras palavras, eu seria promovido. Esse reconhecimento pelo meu empenho foi motivo de imensa felicidade. Disse a ele que pensaria e ele me deu o prazo de uma semana para a resposta.

Ao retornar para o cadastro, conversei com o meu chefe imediato, sobre essa proposta. Ele pediu que eu não aceitasse, já que o atual auxiliar de chefia, também estava para ser transferido para outro setor e, em função de meu empenho e domínio nos diversos tipos de trabalhos, iria ficar no lugar dele. Pediu também que eu guardasse segredo para não gerar um clima de disputa entre os colegas. Radiante com a notícia, concordei e fiquei a sonhar.

Poucos dias depois aconteceu a transferência do José Roberto.

Passada uma semana, numa segunda-feira, durante todo expediente, desde a manhã, notei que meu chefe evitava me olhar ou falar diretamente comigo. À tarde, já se aproximando do horário de saída, ele chamou à mesa dele, um colega de trabalho e conversou longamente com ele. Foi quando percebi que havia algo incomum. Após a conversa, já às 18h, ele, o chefe, antes de liberar todo pessoal, deu o seguinte aviso: “João (nome fictício) vai assumir o cargo de auxiliar de chefia a partir da próxima semana”. Disse mais alguma coisa que não ouvi com clareza, tamanha foi a raiva misturada com decepção que brotou de dentro de mim, como uma flecha a cravar no meu peito. Senti um aperto no coração; como se ele fosse se despedaçar e, em seguida, uma sensação de formigamento subindo até a cabeça. Mesmo “cego” de raiva, permaneci em silêncio. Meus colegas e eu parabenizamos o João. Notei que o Celso, apesar de não conversar comigo, estava tenso. Minha raiva foi motivada pela expectativa que o chefe criou quando me comunicou que eu é que seria indicado, fazendo com que eu desistisse de pedir transferência para o setor de câmbio. Encerrado o expediente, fui para casa, arrasado.

Em casa, não quis jantar. Tomei banho e deitei-me. Não consegui dormir muito naquela noite. As poucas vezes que adormeci, sonhava assassinando o meu chefe imediato. Então, acordava assustado. Pela minha formação cristã, isso era inadmissível.

De manhã, levantei-me no horário de costume e ao me dirigir ao banheiro para a higiene pessoal e a arrumação para ir ao trabalho, tendo dado poucos passos, senti um grande cansaço e algo como que balançando dentro do tórax. Era como se o coração estivesse solto, tudo isso acompanhado de uma dor fortíssima como a da véspera. Parei, esperei passar esse mal-estar e, depois, continuei. Nesse dia, por pouco não cheguei atrasado ao banco. Nos intervalos que caminhei, do percurso de casa ao trabalho, tive de parar várias vezes. Estava muito mal.

Já no trabalho, o chefe percebeu que eu estava doente. Chamou-me, conversou comigo e pediu que um de meus colegas me levasse ao médico. Na clínica, o médico passou uma bateria de exames. Devido ao meu estado, fiz todos no mesmo dia. Todos deram negativo. Fui encaminhado ao psiquiatra. Este passou alguns remédios e me deu uma semana de repouso.

Retornei à minha casa e iniciei o tratamento. Os remédios eram terríveis, tinha um que tomava ao deitar-se. Eles provocavam em mim alucinações nada interessantes. A exemplo da primeira noite, a maioria de meus sonhos era assassinando o chefe. Aos poucos, rezando, pedindo muito a Deus, essa raiva foi passando. Do psiquiatra passei para uma psicóloga. Já sem os remédios essa psicóloga amiga me disse que eu procurasse controlar meus impulsos e tomasse cuidado para não somatizar problemas do dia a dia. Se eu tivesse qualquer reação semelhante à que aconteceu, no espaço de dois anos, a partir daquela data, haveria uma probabilidade muito grande de que eu enfartasse ou tivesse um AVC.

Mesmo possuindo uma personalidade impulsiva primária foi, a partir desse acontecimento, que eu comecei a mudar meu comportamento. Se antes eu explodia com mais facilidade, ou mesmo absorvia problemas de forma desmedida somatizando-os, agora, eu pensava mais.

Meses depois, pedi transferência do subsetor Cadastro, para o setor principal, a SECC. O Sr. Roberto, meu novo chefe, era um grande amigo. O Celso não gostou muito, mas foi obrigado a me ceder à SECC. Nesse setor eu me senti mais à vontade.

O segundo caso aconteceu com um amigo.

Esse meu amigo se chamava Felício (nome fictício). Fazia parte de um grupo de ajudantes do altar quando eu ainda era Diácono, na paróquia de São Cristóvão de Santana do Ipanema.

Dentre os trinta ajudantes, esse foi um dos poucos que nunca precisou de ser chamado a atenção ou suspenso por algum ato de irregularidade.

De personalidade introvertida, era muito calmo, obediente e atencioso com os afazeres a ele confiado.

Uns quatro anos se passaram, fui ordenado Sacerdote e assumi a paróquia de Nossa Senhora da Penha de Cacimbinhas/Minador do Negrão. Nesse período ele, Felício atingiu a maioridade e ainda continuava prestando seus serviços de ajudante do altar na paróquia de São Cristóvão.

Em um período de férias da escola, foi passar um final de semana na casa de parentes em Paulo Afonso/BH e lá, foi tomar banho às margens da barragem ali existente. Durante esse momento de lazer, um primo que estava com ele acabou se envolvendo em uma confusão e ele, também, acabou por envolver-se. Como consequência desse envolvimento, ele apresentou um transtorno de ansiedade que culminou em um surto. Surto que, meses mais tarde o levou ao suicídio.

Como se pode ver, foram dois gatilhos: o primeiro, em relação a mim que foi a traição por parte de meu chefe, associada a perda da oportunidade que tive em mãos. Minha origem católica, minha formação cristã fez com que eu me “segurasse” e superasse a queda. O segundo, mesmo o jovem sendo pacato, também de formação cristã, mas não tinha uma estrutura familiar como a que eu tive, além de, segundo soube, haver casos de surtos familiares...

Enfim, temos que saber controlar e equilibrar qualquer comportamento que possamos ter para que possa prevalecer o bom senso e, assim, não corramos o risco de cair numa “loucura” que, descontrolada, possa nos levar à morte.

Enigmas da vida...
EGO, ME IPSO!!!
[Pe. José Neto de França]

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