VIDA DE FLANELINHA

Djalma Carvalho

Para início desta conversa, escolhi a seguinte frase de autoria da escritora alagoana Rilda Rocha Ferro, extraída do seu livro Sementes do Meu Caminho (Edições Catavento, Maceió, 2003), coletânea de textos reflexivos de inspiração marcadamente religiosa: “Crescem os gemidos inefáveis dos injustiçados, dos desempregados, dos que têm fome, porque não têm nem vez nem voz.”
Por onde ando, o flanelinha é pessoa invisível, socialmente, mas visível, totalmente, nos semáforos e nos cruzamentos de ruas e avenidas dos grandes centros urbanos pelo Brasil afora. Aqui em Maceió, no retorno do Hiper Bompreço, na Gruta de Lourdes, por exemplo, ele antecipa-se a outros de igual destino para logo se achegar e jogar jatos d’água ao para-brisa do meu automóvel. Diz-me, então, abanando a boca com a mão: “Tenho fome!”
Enquanto, apressadamente limpa o vidro, fico a me lembrar, mais uma vez, das palavras do teatrólogo e filósofo Joracy Camargo, autor da peça “Deus lhe Pague”. Entre seus personagens, dizia um mendigo em diálogo com outro, à porta de uma igreja: “Uma esmola pelo amor de Deus, poucos compreenderão o valor dessa expressão. Fale em fome. Fome é mais impressionante.”
O flanelinha e seus companheiros de “trabalho” diário são desempregados que se juntam a outros milhões de desempregados, sem perspectiva, espalhados pelo Brasil afora, computados nas estatísticas oficiais, ultimamente em escala crescente (14,4%-out/2020), sobretudo depois do impeachment da presidente Dilma Rousseff. Isso sem contar com a população desiludida, que, tendo à mão seu bem-elaborado currículo, desistiu de procurar emprego no mercado de trabalho.
Considerados párias da sociedade brasileira, os flanelinhas são, socialmente e economicamente, invisíveis. Não roubam nem furtam, mas pedem dinheiro nos semáforos pelo “serviço prestado”. Com a “prata” amealhada aqui e acolá eles se alimentam e asseguram a alimentação da família. São trabalhadores precários, avulsos, sem patrões, sem registro profissional, sem contrato legal, sem nada.
O flanelinha Jonathan, de 21 anos de idade, por exemplo, é casado e pai de dois filhos. Tornou-se meu conhecido nessas abordagens de trânsito, sempre satisfeito com o pequeno valor da cédula que recebe. Às vezes, destinatário de uma ou duas camisas, de presente, para uso no seu trabalho, diariamente lutando pela sobrevivência. Ainda não lhe perguntei sobre ser beneficiário do Auxílio Emergencial, valor liberado, em parcelas, pelo governo, em função da pandemia do coronavírus. Se positiva a resposta, certamente deve ter tido dificuldade para cadastrar-se e, logo depois, enfrentado longa fila à porta da agência da Caixa Econômica, para receber cada parcela a que faz jus como desempregado.
Celso Furtado (1920-2014), saudoso economista, em entrevista à revista Veja, edição de 8/1/1997, disse: “Os grandes problemas do mundo atual, como o desemprego e a fome, são sociais, não econômicos. A humanidade pode estar às portas de inventar um novo modelo de sociedade por meio do qual se espante o fantasma que atualmente ronda tantos países.”
Em tempo real, neste mês de outubro de 2020, segundo a ONU, o mundo conhece o alarmante número de 820 milhões de pessoas desnutridas, que serão, fatalmente, candidatos a vítimas da tragédia da fome mundial.
Parece-me que esse fantasma – a fome –, de que tratou o brilhante intelectual Celso Furtado, continua a rondar o mundo, desafiando governos e sistemas econômicos, infelizmente.

Maceió, outubro de 2020.

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