Djalma de Melo Carvalho
Membro da Academia Santanense de Letras, Ciências e Artes
No período entre fevereiro de 1957 e julho de 1961, tive como meu primeiro empregador, com carteira profissional legalmente assinada, o Departamento Nacional de Obras Contra as Secas – Dnocs. Uma vez admitido e empossado, fiquei lotado no escritório administrativo de sua Residência em Santana do Ipanema, jurisdição do então Distrito de Palmeira dos Índios, Alagoas.
O Dnocs foi criado em 1909, como Inspetoria de Obras Contra as Secas; em 1919 passou a denominar-se Inspetoria Federal de Obras Contra as Secas; finalmente, em 1945 passou a chamar-se Dnocs. Desde todo esse tempo, a autarquia federal vem prestando relevantes serviços às populações nordestinas, construindo açudes, grandes barragens e reservatórios d’água, canais e promovendo a irrigação de vastas áreas produtivas, minorando, efetivamente, os danosos efeitos das periódicas secas.
No final de março de 1960, muita chuva castigara fortemente o Ceará, com o transbordamento de rios e açudes, prejudicando plantações, roçados, estradas e rodovias. O rio Jaguaribe, por exemplo, com sua histórica enchente empanzinara a barragem do Açude Orós, gigantesca obra ainda em construção. O parcial arrombamento do paredão desse grande açude, em 26/3/1960, provocara a chamada “Tragédia de Orós”, levando pânico e sofrimento às populações ribeirinhas, fato que tomou conta então do noticiário nacional. Nesse período, aconteceu que um engenheiro do Dnocs, de cujo nome não me lembro, uma vez cumprida sua missão oficial, retornava ele a Alagoas e tivera avariado o motor do veículo em que viajava, deixando-o para conserto na cidade do Crato, Ceará.
Designado pelo chefe da Residência do Dnocs em Santana do Ipanema, coube-me a tarefa de viajar àquela cidade em meados de abril de 1960 (meu Deus, quanto tempo faz!), com o objetivo de acompanhar os serviços de reparação do referido veículo. Uma vez concluídos os trabalhos, a mim caberia efetuar o pagamento dos serviços realizados.
Viajando em caminhonete oficial, tive a boa companhia do motorista Guilherme Fontes, homem educado, gentil e competente profissional.
Por quase uma semana, ficamos hospedados em modesto hotel no centro de Crato. Nesse espaço de tempo, tivemos a oportunidade de visitar a vizinha cidade de Juazeiro, cujo turismo religioso já começava a se intensificar. Em algumas noites ali estivemos à procura de lanchonetes, bares e boates. Uma vez identificada nossa procedência, curiosas e sabidas garçonetes diziam: “Alagoanos. Gente boa!” Ouvindo isso, Guilherme, o motorista, prevenia-me: “Cuidado com a conta.”
Ainda em Crato, ao cair da noite de 21 de abril de 1960, ouvimos pelo rádio, no quarto do hotel, a reportagem da solenidade de inauguração de Brasília, incluindo o discurso do presidente Juscelino Kubitscheck, feliz e orgulhoso com a conclusão da grande obra do seu vitorioso governo. O visionário presidente havia pronunciado, por ocasião do lançamento da pedra fundamental de Brasília, a seguinte frase, histórica e lapidar: “Deste Planalto Central, desta solidão que em breve se transformará em cérebro das altas decisões nacionais, lanço os olhos mais uma vez sobre o amanhã do meu país e antevejo esta alvorada com fé inquebrantável e uma confiança sem limites em seu grande destino.”
Grande estadista, o ex-presidente Juscelino foi perseguido pela ditadura militar, até a cassação do seu mandato de senador e a suspensão dos seus direitos políticos, perseguição como a que hoje ocorre com o ex-presidente Lula.
Cumprida nossa tarefa em Crato, restava-nos apanhar um casal de operário no canteiro de obras do Açude Banabuiú, também no interior do Ceará, e trazê-lo para Santana do Ipanema, conforme nos fora recomendado. Nesse deslocamento, pernoitamos em Quixadá, onde fomos acomodados em largas e confortáveis redes, porque nenhuma cama havia nos dormitórios da pousada.
Assustou-nos, naquela noite, o persistente ribombar de trovões que reverberava nos rochedos das cercanias da cidade de Rachel de Queiroz. Os trovões de cá eram muito diferentes dos de lá. Logo ao anoitecer, o luminoso piscar dos incessantes relâmpagos varava as vidraças da pousada. Logo a seguir vinha o ensurdecedor trovejar, dando-nos a sensação de que um pedaço do céu cearense iria desabar sobre a pacata Quixadá.
Durante a longa viagem de retorno, algumas vezes tivemos de cuidar do recorrente mal-estar do casal que viajava conosco e se acomodava na carroceria da caminhonete. Descobrimos, depois de muitos quilômetros percorridos, que não se tratava de doença, mas de fome mesmo, porque em jejum estava o casal desde o início da viagem. Tão logo liberadas, do nosso bolso, duas providenciais refeições, vimos restabelecida, a partir dali, a saúde do humilde casal de operário.
Afinal, não existe mal maior do que a maldita fome, que em nossos dias castiga e mata contingentes humanos, sobretudo crianças, pelo mundo afora.
Maceió, março de 2017.
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