A primeira coisa que faço no início do ano é trocar de agenda. Essa tarefa, cuidadosamente executada, leva-me bom pedaço de tempo no primeiro dia do ano. Faço-o, vivendo, ainda, os bons momentos da festa de Natal e os melhores flagrantes da virada do ano-bom.
A cada anotação feita na nova agenda, reluto em destruir a página antiga. Como conservador, faço isso com tristeza e, por que não dizer, saudade das boas coisas que ali foram anotadas e que ficaram para trás. São páginas viradas, recheadas de registros de compromissos honrados, reuniões realizadas, projetos de viagens e festas. Festas que marcaram horas de lazer, encontros com amigos, boa conversa, drinques, boa música, vida vivida. Em fim, o gostinho de saudade sentido nas páginas viradas.
É, também, o grande momento de reflexão. De elevação do pensamento, de grandeza do espírito e da alma. De íntima e reservada prestação de contas, na calada da noite, no leito, no sagrado recesso do lar. Reflexão diante das desigualdades, das diferenças, das injustiças sociais.
A agenda é o roteiro de uma vida medida em determinado espaço de tempo. Também repleta de anseios, aspirações e realizações. Até de decepções, de desencontros, de lamentos, de ansiedades, de sonhos não realizados ou parcialmente realizados. De promessas não cumpridas e de palavras não honradas, num mundo cada dia mais complexo e hostil. Numa sociedade cheia de artimanhas.
A nova agenda dá-nos a ideia de recomeçar tudo. Recomeçar tudo com entusiasmo, a par do clima de amor e de paz expresso nas mensagens natalinas e de ano-novo. A nova agenda dá-nos a ideia de que a vida tem sentido e continua repleta de esperança. Esperança de um mundo melhor, de harmonia, de entendimento entre os homens. De homens que esqueçam a guerra e possam construir uma sociedade mais humana, fraterna e justa.
Logo no início do ano vêm as anotações das infalíveis obrigações financeiras: IPTU, anuidades de entidades de classe, escolas, clubes de serviço, clubes sociais, cartões de crédito, assinaturas de revistas e jornais. Logo depois, a declaração de imposto de renda, mais prestações, mais obrigações, mais tributos, renovações de seguro, etc. Em fim, um mundo de impostos, taxas e contribuições que ultrapassam o número de meia centena e chegam a quase 40% do PIB nacional. Quando se pensa aliviado, eis que surgem o IPVA, férias e o 13º de empregado. Aí o ano termina, e começa a mesma roda-viva.
O repassar de datas de aniversários e de números de telefones de amigos, de pessoas queridas, de familiares, é sempre um salutar exercício de renovação e de reafirmação de amizades que o tempo consolidou. Também, cada nome ou número não mais anotado ou riscado representa amizade perdida, esquecida, sentida, que o tempo levou.
De qualquer forma, a Terra continuará girando, girando, indiferente aos nossos desejos, às nossas anotações, aos nossos melhores sentimentos. As ondas do mar continuarão lavando a areia da praia. As estrelas continuarão brilhando no firmamento. E a lua cheia, prateada e bela, continuará inspiradora de grandes romances. Afinal, muitos e muitos primeiros de janeiro haverão de vir carregados de esperança.
(*) Crônica publicada em dez/2002, ora revisada.
(Livro Águas do Gravatá, páginas 115/116)
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