Segundo a reportagem da Folha de São Paulo, de hoje, Bolsonaro afirma, sobre crimes na ditadura, que "não pode valer um lado só da história". Presidente, a verdade histórica vale por si, independentemente do lado que qualquer um esteja!
A extrema direita ainda insiste na perigosa tentativa de destruir verdades fatuais através do discurso relativista de que verdades fatuais têm interpretações. Numa ignorância sem precedentes, evita compreender que a História é o que é e jamais o que gostaríamos de que ela fosse. Os fatos em si não atendem a desejos ideológicos. Somente tiranos tentam alterar fatos a seu bel-prazer ou destruí-los.
De acordo com Hannah Arendt, "a verdade fatual, ao contrário, relaciona-se sempre com outras pessoas: ela diz respeito a eventos e circunstâncias nas quais muitos são envolvidos; é estabelecida por testemunhas e depende de comprovação; existe apenas na medida em que se fala sobre ela, mesmo quando ocorre no domínio da intimidade."
Foi Friedrich Nietzsche quem, de algum modo, ergueu a bandeira desse tipo de relativismo nefasto. Assim o filósofo alemão expressou-se: "gerade Tatsachen gibt es nicht, nur Interpretationen"( não há fatos, apenas interpretações). Esse "perspectivismo" (assim o chama Nietzsche), além de ser perigoso, é destituído de qualquer racionalidade e mesmo de verdade! Está em sua obra "Der Wille zur Macht" (Vontade de Poder).
E é justamente essa obra em que Nietzsche ataca a razão e as verdades, num extremo relativismo, pois afirma que "não há verdades". Ora! Se ele diz que não há verdades, então, por dedução lógica, a sua própria afirmação é falsa! Logo, existem verdades, principalmente as dos fatos! Os relativistas sempre cometem o erro fatal de acharem que tudo é relativo e, por isso, caem na própria armadilha!
Nietzsche se contradizia constantemente, mas isso não retira o seu brilho e sabedoria! Todavia, devemos ter, portanto, consciência dessas questões. Porque é também de Nietzsche outra frase (e esta sim é impactante e realista e encontra-se em "Also sprach Zarathustra: Ein Buch für Alle und Keinen"): "Aber der Staat lügt in allen Zungen des Guten und Bösen; und was er auch redet, er lügt – und was er auch hat, gestohlen hat er's." (mas o Estado mente em todas as línguas do bem e do mal; e o que quer ele diga, mente - e o que quer que ele tenha, roubou). Aqui, precisamos compreender a relação do Estado com a verdade.
Para o Estado, a verdade interessa enquanto forma de poder, de manutenção de poder, isto é, de uma perpetuação de uma Wille zur Macht. Por isso, em Estados autoritários e totalitários, as verdades são vulneráveis. E os fatos também! Por quê? Porque só interessam como fato histórico real se atenderem a desejos e anseios ideológicos.
Hannah Arendt tinha uma preocupação intensa com esta questão sociológica e político-filosófica. Em sua obra "Between Past and Future", ela afirma que "na medida em que a verdade fatual se expõe à hostilidade dos defensores de opiniões, ela é pelo menos tão vulnerável como a verdade filosófica racional."
Neste mesmo livro, ela diz que "vista do ponto de vista da política, a verdade tem um caráter despótico. Ela é, portanto, odiada por tiranos, que temem com razão a competição de uma força coercitiva que não podem monopolizar, e desfruta de um estado um tanto precário aos olhos de governos que se assentam sobre o consentimento e abominam a coerção."
Para não me alongar: quando se quer dar à verdade um lado, não só se mente, como tenta-se esconder o que ela traz à tona, porque parece incomodar, de fato e in totum. As verdades fatuais desmascaram as pretensões de populistas, autoritários e todos aqueles que se pretendem semideuses e deuses. Porque elas não se sujeitam às interpretações, aos interesses de alguém. Ao serem o que são, as verdades dão à existência aquele matiz de realidade inafastável. Uns queiram, outros não, a verdade dos fatos traz em seu cerne o espírito da liberdade: é o que é. E, claro, marca a História.
Adriano Nunes
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