Quando boa parte da sociedade fica inerte às medidas, práticas, ações e aos discursos que, de algum modo, são contrários não só ao processo civilizatório, mas atingem o cerne da dignidade humana bem como atacam direitos e garantias fundamentais, a outra parte, ainda que consiga perceber tais atentados sociais e humanos, parece contaminar-se pela irracionalidade, pela incapacidade de reação crítica, como se toda a sociedade aceitasse tudo o que parece lhe fazer mal, como se fosse uma manada em marcha, sob bitolas, em direção ao matadouro, em êxtase.
Neste sentido, as pessoas aceitam que direitos sejam restringidos ou retirados, aceitam o presente espúrio como se fosse o porvir redentor certo, como se todas elas fossem creditadas e certificadas "as escolhidas". Compactuam com a opressão como se fosse uma necessidade vital. Nestes estados de irracionalidades, percebe-se que paradoxos complexos e antinomia cruéis alicerçadas em contradições a priori passam a coexistir, tais como professores(as) que defendem o sucateamento da educação, que aceitam e legitimam ser vigiados (as) por estudantes, como negros que passam a ser contra políticas de cotas e a negar até a escravidão, como LGBT apoiando políticos LGBTfóbicos, como mulheres atacando o feminismo e defendendo políticos misóginos, como cristãos defendendo a política armamentista e mesmo a pena de morte, como artistas clamando por ataques à cultura e à arte, enfim, toda uma série de absurdos éticos e morais que parecem dizer, de alguma maneira, que a civilização está flertando com a barbárie e o obscurantismo.
Por que isto ocorre com frequência em países democráticos? Por que as pessoas flertam com o horror sem se darem conta de que a realidade fatual sempre lhes dirá que as suas opções, práticas e discursos são perigosos e sub-reptícios? As múltiplas causas, que têm origem desde o período colonial, na figura do ser autoritário e de mando e nos processos de invasão e imposição de crenças e adequação ao estilo opressor do homem branco europeu, parecem, na atualidade, indicar apenas que os processos de socialização forjam há séculos o espírito subserviente, principalmente nas classes menos materialmente favorecidas.
Dizer isto não significa afirmar que os processos de socialização não funcionaram para criar o homem moral, ético, civilizado, significa, de certo modo, reconhecer que herdamos a violência rabugenta dos antigos colonizadores e também as más intenções dos primeiros jesuítas que não só preconizaram o extermínio indígena como, tanto em poemas como em cartas, comemoravam tal feito em nome da Coroa.
Quando Anchieta, em seu poema "De Gestis Mendis de Saa", canta, em honra de Mem de Sá, que "Cento e sessenta as aldeias incendiadas/Mil casas arruinadas pela chama devoradora" e quando o padre Nóbrega, com o seu plano civilizatório, afirma, como um verdadeiro pseudocristão cruel, que "porque terão escravos legítimos", devemos então compreender que a cegueira ideológica consegue apagar, anular, muitas vezes, os ditames da razão. Não nos surpreende agora ver muitos (as) contemporâneos(as) agindo sob tal perspectiva, tal qual insetos que procuram festivamente por inseticidas. Sempre nos perguntamos criticamente: por quê?
Responder simplesmente que é a busca por poder, por salvação, por status, por posses e propriedades, quaisquer tipos de bens, ou devido a uma natureza humana, por descontentamento e decepção com partidos de esquerda, etc e tal, por cansaço de tanta corrupção, parece ser mesmo uma resposta simplória, pois não explicaria o surgimento do moralizador, dos antípodas tropicais, dos carrascos voluntários, dos milicianos, dos capitães do mato, dos oprimidos que idolatram os opressores, da massa acéfala que bate panelas e faz dancinha.
Talvez, falhas nos processos de reconhecimento, falta de amor ao próximo, incapacidades psicanalíticas de amar as liberdades e todos os seus matizes, a reificação, complexos de inferioridade, os complexos de vira-latas, as crenças em entidades metafísicas que nunca chegam para dar paz e sossegos aos aflitos, a Wille zur Macht, as frustrações, os rancores, a ignorância e muito mais pudessem fornecer o fio da meada para esse processo complexo que é compactuar com o horror, ainda que seja uma legitimação à base do silêncio ou da indiferença.
Esta inércia absoluta, esta falta de capacidade crítica, esta paixão cega e estúpida por populistas, salvadores da pátria, paladinos da justiça e o Übermensch, tipos ideais do poder carismático weberiano, tudo isso tem engendrado uma miríade de violências, não só simbólicas, mas físicas e até letais.
O culto à ignorância, à desinformação, à alteração de verdades fatuais como uma forma de satisfação prazerosa e ilusória tem construído não só carrascos voluntários, mas todo um séquito de homens e mulheres distanciados da realidade. Pior: tem gerado uma sociedade que odeia a realidade, as verdades fatuais, as ciências, a filosofia, a crítica, a cultura, as artes. Um séquito de gentes que busca entre os pares das suas bolhas a esperança de que, cedo ou tarde, estarão certas. Do quê? Nem elas mesmas sabem! Gentes que não se importarão em marchar sorridentes para os carrascos de si mesmas, com a corda e o banquinho nas mãos. Não são zumbis, pois sabem estar vivas, ainda que pouco se importem com as vidas alheias, principalmente as dos mais vulneráveis.
As mortes de Marielle, de tantas outras mulheres, de negros, de LGBT, de ativistas, refletem e expõem a semente de um kriptofascismo. O indivíduo humano à mercê de um poder que não tolera o diferente. Quando os jornais do mundo expuseram, ontem, que o Brasil acompanhou as votações de países islâmicos extremistas contra os direitos das mulheres, dos LGBT, das minorias vulneráveis, era para todos e todas gritarem alto que não deram legitimidade para isto!
Pessoas racionais não compactuam com quaisquer tipos de violações a direitos humanos! Na Itália fascista e na Alemanha nazista, a percepção de atos símiles a esses só foram possíveis quando tudo era treva, violência extrema, horror. A denúncia dessas arbitrariedades, desses atos isolados, que pretendem passar despercebidos, podem trazer luz à civilização. Todavia, não é fácil para muitos admitir que estão errados, que cometeram erros, enganos. A crítica racional, a liberdade de imprensa, os pensadores apartidários devem, por uma questão ética e moral, dizer: "Je t'accuse, homme irrationnel!"
Adriano Nunes
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