Em seu interessante livro "O liberalismo antigo e moderno", José Guilherme Merquior, em certo momento, quando trata das três escolas de pensamento (em relação ao conceito de liberdade), refere-se a Immanuel Kant. Diz o pensador liberal brasileiro que Kant "afirmou que o homem, não como animal, mas como pessoa, devia 'ser considerado um fim em si mesmo' (remetendo o leitor ao livro Fundamentação da Metafísica dos Costumes). A seguir, ele afirma que "isso era outra dimensão-chave dos conceitos alemães de liberdade: autotelia ou realização pessoal" e que "Kant colocou a autotelia no centro da moralidade".
Para mim, parece que Merquior cometeu um equívoco. E, neste sentido, tentarei mostrar, com base nos próprios textos kantianos, principalmente o citado por Merquior, que esse entendimento sobre a liberdade em Kant está errado. Vejamos:
1. Se Merquior considerar autotelia e realização pessoal como sinônimos ou equivalentes conceituais, isto me parece um erro. A palavra grega antiga αὐτοτελής tinha em seu sentido original diversos significados, entre os quais: completo, perfeito, independente, autossuficiente, com poderes absolutos, etc. Por que então um erro? Porque, para Kant, quando ele diz que o homem deve ser considerado um fim em si mesmo, ele deixa claro que se trata da humanidade. É a própria humanidade o princípio supremo da moralidade, não mais Deus ou a natureza ou a felicidade. Nesta perspectiva, Kant se afasta da moral dos antigos e dos utilitaristas.
Na Segunda Secção da Fundamentação, Kant afirma que "a felicidade não é um ideal da razão". Ora, por que faz-se importante apontar essa passagem? Porque antes Kant já afirmara que "todo conceito moral tem origem e sede na razão". Ou seja: no centro da moralidade, só pode estar o que a razão dita ser mais importante, necessário e universal. Em Kant, só os fins objetivos têm recanto na razão, pois só esses podem ser universalizados. Ao pôr a humanidade como valor absoluto, ao dizer que as pessoas têm dignidade, que a vida tem dignidade, Kant assevera que a natureza racional existe como um fim em si mesmo, já que "a moralidade é a única condição que pode fazer um ser racional um fim em si mesmo". E que "a moralidade e a humanidade, enquanto capaz de moralidade, são as únicas coisas que têm dignidade". Ainda, para Kant, somente fins universais, não meramente subjetivos, compõem um Reino dos Fins, sob os ditames da razão. Pois "a moralidade consiste na relação de toda a ação com a legislação, através da qual somente se torna possível um reino dos fins". Tais ações precisam estar de acordo com uma máxima da razão, obviamente. Logo, se autotelia for tomada como "realização pessoal", está-se indo contra o que Kant defende na Fundamentação da Metafísica dos Costumes.
Mas há mais neste sentido. Merquior, na secção "Liberdade e Autonomia", relaciona a liberdade de realização pessoal como "a liberdade de aspirar a viver como nos apraz". Essa seria uma liberdade plenamente subjetiva, ou seja, uma liberdade que não se relaciona com o sentido de "fim em si mesmo" que Kant emprega em seu sistema filosófico moral. Seria contraditório viver como se apraz e creditar isso ao centro da moralidade kantiana.
2. Parece que Merquior desconhece que Kant emprega uma distinção quando trata de liberdade. Para Kant, há uma liberdade interna (relacionada à moralidade) e uma liberdade externa (relacionada ao Direito), distinção melhor evidenciada em seus livros posteriores a Grundlegung zur Metaphysik der Sitten (1785), isto é: Kritik der praktischen Vernunft (1788) e Die Metaphysik der Sitten (1797). Dessa distinção, segue-se: liberdade moral (aquela em que a razão dá leis a nós mesmos) e a liberdade jurídica (faculdade de agirmos no mundo exterior).
Para Kant, na Fundamentação da Metafísica dos Costumes, a liberdade é uma "propriedade da vontade de todo ser racional". Logo, Kant interliga a liberdade à razão. A razão passa a ser fundamento da liberdade. E essa liberdade racional implica o respeito absoluto à vida e à humanidade como um fim em si mesmo. Nesta perspectiva, o filósofo alemão afirma, na Metafísica dos Costumes, que
"é um dever, tanto para consigo mesmo quanto para com os outros, ensejar o intercurso dos homens entre si com as suas perfeições morais (oficium commercii, sociabilitas), não isolar-se (separatistam agere); com efeito, fazer de seus princípios um centro fixo, mas considerar este círculo traçado à sua volta como um círculo tal que faz parte de um outro que, abrangendo tudo, constitui a intenção [Gesinnung] cosmopolita; não para promover como fim o melhor do mundo, mas apenas para cultivar o encontro recíproco, que a isso conduz indiretamente, a amenidade na mesma, a concórdia, o amor e respeito recíprocos (a afabilidade e o decoro, humanitas aesthetica et decorum), associando, assim, a gentileza à virtude; o que é mesmo um dever de virtude."
Se liberdade fosse viver como se apraz em Kant, talvez não fosse possível essa respeitabilidade mútua desejada, sob os ditames da razão. Pois em Kant, os fins podem ser subjetivos (relativos) e objetivos (universais, sempre bons). Também é na Metafísica dos Costumes que Kant diz que "o conceito de liberdade prova a sua realidade através de princípios práticos". Ora, na Fundamentação, Kant diz que "a vontade é a razão prática". Mas vejam: se a vontade não se rege plenamente pela razão (como acontece plenamente com as pessoas!), a ação prática não pode ser tomada como livre, no sentido em que Kant utiliza sistematicamente as palavras Freiheit/Libertas. Neste sentido, um dos Imperativos Categóricos dita que “age sempre de tal modo que a máxima da tua vontade possa ao mesmo tempo valer como princípio de uma legislação universal”. Como atesta Antonio Cicero: "em primeiro lugar, penso que Kant, de fato, pensa que o homem deve se consciente de que possui autonomia moral; porém, em segundo, penso que, segundo ele, essa autonomia deve ter por princípio escolher sempre de tal modo que a mesma volição abarque as máximas da nossa eleição como lei universal. Esse é o imperativo moral. O que escolho deve ser aquilo que deve ser escolhido por qualquer um que se encontre na minha posição. Esse é o imperativo."
Vamos adiante: liberdade em Kant também tem dois outros significados e duas qualidades relacionadas: "liberdade de" (a independência de qualquer forma de dependência) = espontaneidade como oposta à receptividade. E "liberdade para" (liberdade como o poder para legislar si mesmo) = autonomia como oposta à heteronomia). Ou seja: Kant insiste numa liberdade inteligível baseada na autonomia da vontade. Assim, a liberdade (como espontaneidade) é absoluta em dar a si leis da síntese, mas é intrinsecamente qualificada pela receptividade.
Adriano Nunes
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