"Os ideólogos são perigosos"

Adriano Nunes

Vou contar-lhes uns fatos interessantes. Hoje, podemos perceber bem a importância da crítica e das liberdades de expressão, de prensa e de imprensa. Não somos obrigados mais, ainda que tentem, a aceitar filosofias quaisquer, teorias políticas, morais moralizadoras, crenças religiosas à força ou sob ameaças. Não que antes, também, fossem obrigados, sem ter uma escusa, uma recusa ou negação peremptórias ou delas não fizessem uso. Talvez, não tivessem a mesma consciência sócio-histórica que se passou a ter, que temos, que penso ter ao escrever este ensaio.

De algum modo, atualmente, podemos contestar e criticar, com certa liberdade e com certas proteções, ao menos formais, teorias, crenças, comportamentos, dogmas, ideologias, tudo que há ou houve. Mas o mundo (principalmente sob as rédeas das religiões!) não era bem assim, de algum modo. Vejam um exemplo: em 1624, o Parlamento de Paris aprovou um decreto que proibia veementemente ataques e críticas não ao próprio parlamento ou à política (como se poderia esperar também!), mas a Aristóteles! Isso mesmo! Quem falasse mal de Aristóteles e de seus ensinamentos (ainda que esses pudessem estar errados!) estaria sujeito a quê? À pena de morte!

Por essa época, pasmem, o cardeal Richelieu baseava muitas de suas decisões políticas em horóscopos e esoterismo. Ai de quem ousasse fazer o mesmo! Muitas pessoas foram acusadas de pertencer à irmandade Rosa-Cruz porque, diziam, ficavam invisíveis! Até Descartes foi! Hoje, sabe-se que Descartes deixou a França (1629), partindo para os Países Baixos, algumas semanas depois de uma entrevista privada com o cardeal Bérulle, passando 21 anos exilado e só retornando após a morte de Bérulle. A Holanda tão perto da França! Que ameaças teria feito tal cardeal a Descartes?

Muita gente foi para a fogueira por causa da ideologia religiosa na França. Em verdade, por causa de religiões, muita gente foi assassinada e ainda é em diversos lugares. A história dos Papas está recheada de luta por poder, riqueza e luxúria. A Inquisição foi uma mácula funesta que nos deveria servir de atenção para o que o fanatismo religioso é capaz de fazer. Atrás de bons modos e títulos, esconderam-se inúmeros assassinos.

No entanto, há também aqueles que não se calaram e não se calam perante a censura, as arbitrariedades e autoritarismos. Por exemplo: em 1644, John Milton, na Inglaterra, publicava “Areopagitica”, um elogio brilhante e uma defesa à liberdade de prensa, de publicação, uma ode aos livros, se assim puder ser dito, sendo tal escrito o primeiro neste sentido específico.

Pah! No século XX, quando se pensou, de algum modo, que o progresso, as ciências, as tecnologias, as defesas das liberdades poderiam invariavelmente engendrar um mundo melhor, vieram o fascismo e o stalinismo e reinventaram a nova face do horror, uma nova caça a seres humanos. Livros foram novamente queimados à vista de muitos. Pessoas foram exterminadas em campos de concentração e em gulags. A ciência produziu a bomba atômica para ficarmos, posteriormente, mais e mais à mercê das tensões entre as superpotências que se veem, agora, despreparadas para uma pandemia, com sistemas de saúde precários e ineficazes, porque investiram em armas, em matar. Não sabem bem como salvar vidas! Um paradoxo torpe e cruel. Tudo parece que é esquecido facilmente!

Em 2020, no Brasil, numa democracia constitucional, temos um Chefe de Estado que grita para que o jornalismo se cale, clama por empresas e economia e, com indiferença, diz "e daí?" ante a constatação de inúmeros mortos por covid-19. E quando pensamos que o século XXI viveria a separação plena Estado-Religião, ouvimos um ministro chamar o Presidente de "profeta", este mesmo que, com ironia, constatou não poder fazer milagres. O horror sabe pedir desculpas, quando é conveniente, enquanto busca novos meios de extravasar-se como horror, enquanto faz seus cálculos utilitaristas.


Adriano Nunes

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