"A campanha da Natura e o entendimento racional de família"

Adriano Nunes

Desde a sua origem latina, o conceito de família vem sofrendo transformações, no decorrer das épocas, para tentar englobar o real significado que o termo encerra em si. Do latim "familia, ae", conjunto de pessoas de uma casa, abrangendo também os "famulus" (os servos, os criados), cujas derivações originam "familiaritas" e "familiaritatis" que querem dizer amizade, intimidade, e originam também "familiariter" que significa como amigo íntimo, intimamente, a fundo, perfeitamente, poderíamos desde já perceber que a própria definição dada ante a criação linguística não se resume ao homem e a mulher, tidos como entes de gênero. O termo se refere a liames íntimos de convivência no lar. Não se precisa de um microscópio léxico para perceber que a origem da palavra se relaciona com a origem das palavras "amare" (amar) e "amicitia" (amizade), o que nos leva a concluir que família é todo laço íntimo que compreenda amor e amizade, independentemente de conformidade sexual.

Com o avanço histórico, o conceito que tendia ser abrangente, ficou cada vez mais reduzido devido à perniciosa influência religiosa que, retirando os "famulus" do seio da própria família, restringia a família ao patriarca e a sua mulher e a seus filhos, ambos meros objetos sem quaisquer poderes políticos. A partir daí, a religião católica ideologicamente disseminou a ideia do pecado e da procriação, instituindo um modelo de família rigorosamente pautado no casamento entre um homem e uma mulher. Então este passou a ser considerado uma instituição, pois foi "instituído" pela ação humana, visando, de modo calculado, afastar dois inimigos da igreja: os hereges e os pretendentes a herdeiros de terras e riquezas, propriedades. Para a igreja, a redução imposta ao conceito de família tornaria mais fácil a aquisição de riquezas alheias juntamente com o apoio da legalidade estatal que estabelecia restrições nas leis de herança.

Não se espantem com essa relação com a propriedade e a herança. Volto a falar dela adiante quando tratar do casamento homoafetivo. Aqui, quero só evidenciar a base histórica desse reducionismo pernicioso e programado. Portanto, estando a família institucionalizada, pelo casamento, pelas leis, os filhos fora do casamento passaram a ser discriminados, bem como as mães solteiras. O báratro das humilhações estava sendo cavado pouco a pouco.

Vamos dar um salto temporal: século XXI. Nos países civilizados, digo, onde impera um Estado democrático de direitos, em que há leis constitucionais que garantem direitos individuais e sociais, a família não é mais considerada o homem e a mulher apenas, pois viu-se que o casamento era uma instituição falida. As pessoas não têm mais necessidade de papéis, certidões ou bênção religiosa para viverem juntas. Não importa mais de que opções de emoções e desejos sexuais tenham as uniões. Logo, com o número crescente de mães e pais solteiros, de relacionamentos homoafetivos, de indivíduos heterossexuais (até casados!) sem atender ao anseio de reprodução, com os movimentos igualitários e de ampliação e proteção da dignidade humana, não mais faz sentido moral nem legal reduzir o conceito de família. Família há muito deixou de ser um laço de sangue para ser um laço de amor e amizade, de empatia, de reciprocidade. Não é à toa que o ensinamento cristão mor de Jesus é que somos todos irmãos, na irmandade do amor, obviamente. Ou não era a família de Cristo os apóstolos e todos os peregrinos?

Pois bem, chegamos ao cerne do problema: a campanha da Natura para o dia dos pais e as reações lgbtfóbicas desencadeadas por causa da presença de um pai trans, aliás um bom e amoroso pai, o Thammy. Pergunto-lhes: o que está por trás dessas animalescas e irracionais reações? A religião mais uma vez. Mais uma vez a querer impor um reducionismo ao conceito de família para poder aplicar, através do seu séquito de radicais, fanáticos e até mesmo fundamentalistas perigosos, as suas regras de conformidade social, sem perceber (ou melhor, sem querer perceber) que a sociedade é dinâmica. Esse pessoal acredita, acha que, assim fazendo, isola, põe à margem os tantos casais homoafetivos. Um erro! Porque não há família só entre pessoas tidas casadas ou que vivem juntas e mantendo relações de sexo. Há família quando um pai vive só com os seus filhos. Há família quando uma mulher vive só com seus filhos. Há família quando pessoas vivem juntas sem laços sanguíneos. Há família quando filhos vivem sem pais, enfim: há família quando há amor, amizade, respeito, convivência, consideração. Impor que a família seja definida apenas como homem e mulher é querer impor, consequentemente, o casamento como um padrão institucionalizado para os relacionamentos, claro, heterossexuais.

É preciso que se amplie o conceito de família por causa, também, de questões jurídicas as quais implicarão numa proteção constitucional de respeito, dignidade e garantias. Tais pessoas sequer, ao que parece, atentam para a consideração e a ampliação do conceito de família de matiz vinculante feito pelo Supremo Tribunal Federal. Sei que uma definição pode ser tomada como uma mera tolice. Ninguém vai deixar de considerar quem quer que seja como família. Porém, faz-se de suma importância a construção legal de que família é muito mais que um homem e uma mulher numa relação institucionalizada. Família é uma forma livre de escolher aqueles com quem se quer passar a ter liames íntimos de amor e amizade. Aquele ser sozinho, com o seu cão, com seu gato estará destituído de ser uma família? Família é um cosmo aberto.

E, a partir dessas considerações, constatamos que um pai heterossexual pode ser tão desastroso e danoso a seus filhos quanto qualquer outro pai não heterossexual. As crianças abandonadas são filhas e filhos de heterossexuais, em sua quase totalidade. Com a abertura do conceito de família, está-se a dizer que família é um cosmo aberto ao amor. Há mães que fazem o papel de pai sozinhas melhor do que muitos pais heterossexuais casados, por exemplo. Há casais homoafetivos que têm filhos e filhas bem educados, amados, felizes. Não é a sexualidade da paternidade que definirá se alguém será um bom pai. Agora: assumir responsabilidades, doar-se com amor e respeito, educar virtuosamente, proteger os filhos e filhas contra abusos e violências, estar presente, efetivamente presente como família, isso sim pode, de algum modo, fazer com que alguém seja um bom e digno pai.


Adriano Nunes

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