NOVESFORA NA FEIRA DO PASSARINHO

Contos

Por Marcello Ricardo Almeida

A casa de Cleobulina ameaçava ruir. Cada vez que chovia, naquela parte da cidade, as pessoas alertas passavam a noite em vigília, ouvidos atentos. Os relatos horríveis costumavam paralisar os moradores.
Ao lado das casas residenciais, barreiras altas cobertas por vegetação rasteira irregular que ia dos pés ao chapéu onde o vento balançava as folhas vivas das bananeiras. Cleobulina morava em uma casa ao lado de uma das íngremes barreiras.
A casa caiada onde morava era comprida igual a uma igreja. O reboco irregular, as paredes tortas. O cheiro dentro da casa se misturava aos produtos vendidos na feira.
Os degraus redondos eram largos e se estreitaram antes de alcançarem o sótão. À noite, o chão de cimento bruto era lugar de baratas, de ratos, de besouros e, nas arestas das paredes, as aranhas no mais absoluto silêncio teciam teias à caça de mosquitos. 
Madrugada, Cleobulina risca outro palito na caixa e reacende o mundo preso à lamparina. Lá fora, nas imediações da Great Western, ouvia-se:
Letztes Jahr habe ich hier in dieser Stadt Karneval verbracht.
E outra voz:
Persönlich hat mir dieses heidnische Fest nie gefallen.
Amarelas eram as manhãs sob o sol de ouro em Maceió, e o meio-dia era branco, todas as tardes vermelhas e as noites azuis. O verde gasto nas janelas de madeira, na casa alugada de Cleobulina. A porta cinza. A casa ficava próxima à Feira do Passarinho.
A velha casa geminada se destacava numa calçada que dava acesso à outra rua. Habitação de paredes grossas, coberta por telhas escuras apoiadas em caibros irregulares tingidos pela fuligem do fogão a lenha sobre o qual a chaleira apitava numa imitação limitada à linha férrea da Great Western.
Cleobulina dormia tarde. Cedo, no centro da sala, acordava na cama de rede.
A noite era curta.
O céu de ouro em Maceió era uma pintura num quadro. Iluminado o quadro com o desenho da lua cheia.
Amanhecia cedo na Feira do Passarinho.
O silêncio quebrado pelo pregão da vendedora de peixe de água salgada. O pedinte Engabelado tinha lugar cativo na feira.
A cidade estava cheia de marinheiros:
Sei sicuro che questo sia il posto giusto?
Ecco! 
I didn't find what I came looking for. And you?
Not yet! disse o marinheiro. But I'll keep looking.
Bom dia, Sr. Chucho! desejou Cleobulina, num rosto cheio de sorrisos, ao vê-lo aproximar-se de sua banca. Merecia ser castigado o meu menino! Ele não foi à casa do senhor, Sr. Chucho? O diabo hoje ainda não veio aqui.
Bom dia, Srta. Cleobulina! a cumprimentou com o chapéu à mão. Ele foi, sim, mas, como vinha hoje aqui de qualquer maneira, dispensei.
Chocho, filho do violeiro Pragmático, era ex-soldado egresso do cerco à Grota do Angico. Ele conheceu a família de Cleobulina no dia em que levou as cabeças dos cangaceiros a Santana. A imagem de Chocho saiu em todos os jornais mundo afora; ele e as cabeças nos degraus da capela defronte ao quartel.
O garoto ao qual se fazia referência era Cético, que passou a ser menino de recado de Cleobulina. Ele, nas ruas de Maceió, conheceu Cleobulina e se afeiçoou a ela como se dela fosse nascido.
Se perguntado, Cético respondia ser filho de Agnosia. Ninguém sabia quem era esta tal de Agnosia. Ele assegurava ser a mãe. E o pai? Nunca soube quem era. 
Bom dia, Sr. Grotesco! cumprimentou o velho na calçada.
Bom dia, Sr. Chucho! retribuiu-lhe.
Grotesco, amolador de facas, trabalhava próximo à banca de sortidos de Cleobulina. Chucho e Grotesco eram velhos amigos. A feira conhecia Grotesco, irmão de Burlesco, um soldado que tombou na luta contra o cangaço do Cangaceiro do Rei.
Bom dia, Sr. Autoverdade! cumprimentou Chucho o sujeito na outra calçada.
Bom dia, Sr. Chucho. Quer arriscar a sorte? propôs.
Autoverdade vivia de canto em canto, sem esquentar canto, com os seus truques. Fazia compras em bodegas e as deixava penduradas. Ele foi expulso de todos os circos onde trabalhou com mágica. O seu ganha-pão era o jogo da tampa de garrafa sob as três cabaças.
Não quer arriscar a sorte? insistiu. Debaixo de qual cabaça está a tampa da garrafa?
O céu de ouro em Maceió ganhou o tom de vermelho. Logo cedo, era sob ele que Cleobulina transitava outra vez, e outra vez, e outra vez, e outra vez o seu eterno retorno, como costumava dizer o padre Velho, que ouvia a citação do Cel. Dr. Cicrano, o proprietário do antigo semanário O Liberdade de Expressão.
Cleobulina conversava com o colega de feira. Novesfora, entusiasmado, explicava à feirante como ampliar a sua banca na Feira do Passarinho.
Novesfora era considerado o Pitágoras alagoano. Na feira, todos recorriam a ele quando surgiam negócios com a troca de dinheiro em lugar de escambo.
Um dos primeiros comerciantes na Feira do Passarinho. Novesfora, sergipano, filho de pais alagoanos e avós pernambucanos, no lado paterno, e baianos, no lado materno.
Atravessaram as fronteiras alagoanas as habilidades matemáticas de Novesfora na subtração de nove e de seus múltiplos. Ele desprezou todos os empregos no Banco do Brasil, meteu-se em negócios de cabras e porcos.
Cleobulina comparava Novesfora à sua irmã Temistocleia. Se Pitágoras convivesse em nossa época alagoana, ele renderia todos os tributos à Temistocleia. Ela, parecida com ele em contas de cabeça, brincava com número múltiplo de nove. Somava algarismos e deles apresentava o maior múltiplo dos noves nele escondido.
Dessemelhante do sertão, de Santana, tudo era diferente e longe em Maceió. Antes de estabelecer-se na Feira do Passarinho, Cleobulina foi ao inferno e retornou.
Em Maceió, a busca pela amiga Pragmática chegou ao fim no dia em que Cleobulina entrou em um beco fedorento e sujo e, na imundície, ela encontrou um recém-nascido em trapos úmidos grudados a um líquido vermelho. Caminhou até Mangabeiras. Os dias de solidão, depois que chegou ao Orfanato São Domingos, se dissiparam.
Por três meses, Cleobulina lavou, passou e engomou. Por este trabalho, ela recebeu um saco de farinha de 60 kg, em Mangabeiras, que vendeu na Feira do Passarinho. Com o que recebeu, ela comprou mais três sacos de farinha de mandioca.
Cleobulina fez freguês no orfanato no qual deixou o embrulho com o recém-nascido. Na feira, ela comercializava três dias por semana; e, nos outros dias, lavava roupa de ganho. Antes da Feira do Passarinho, Cleobulina passou por todo tipo de humilhação.
Ao fugir da violência do marido, a cozinheira Pragmática, amiga desde a época de Santana de Cleobulina, fugiu com a filha Cleobulina. Aproximaram-se, depois de semanas nas ruas, de uma mulher agachada no jardim de uma pensão.
A mulher no jardim avaliou e viu que elas eram novas e fortes. Queriam trabalho? perguntou ainda acocorada. Quebrou a aba do chapéu com o dorso da mão e franziu a testa por causa do sol de ouro no céu de Maceió.
A lavadeira Cleobulina nunca viria a conhecer esse episódio na vida da amiga Pragmática e de sua filha Cleobulina. Disse a mulher da pensão:
Eu tinha muito serviço aqui e, ultimamente, não dava conta; nem eu nem o marido. Era roupa suja, muitos quartos, muitas camas, batatas a serem descascadas; panelas no fogo e louça suja, café da manhã; churrasco a cada fim de semana.
Pragmática e a filha Cleobulina ficaram diante da mulher da pensão. Ela não parava de falar:
Vocês duas foram atraídas pelo cheiro do churrasco! riu. Eu tinha certeza.
A aba do chapéu da mulher quebrada com o dorso da mão. Ela franzia a testa por causa do sol de ouro que cobria Maceió.
Se as duas quisessem trabalhar pela comida, disse a mulher da pensão, até pensava em ajudar. Mas essa menina, que acompanha a senhora, não a quero porque menina dá trabalho e dá despesas.
O sol de ouro em Maceió, as lágrimas e a fome na mãe e na filha, os trajes sujos e os pés no chão, os cabelos sem pente, as unhas grandes. Neste quadro, a mulher disse à mãe e à filha:
Amolecia o coração, e o meu era dado a molezas.
A filha e a mãe entraram com a mulher das rosas pelos fundos da pensão. Banho tomado, roupas limpas, penteadas, unhas cortadas, pés calçados.
Na cozinha, mãe Pragmática e a filha Cleobulina sentaram-se à mesa. Diante delas os pratos cheios de sopa quente. Espalhados pães, litro de leite, queijos, frutas, cuscuz, bolachas, manteiga, milho cozido. Elas não mexeriam mais em latões fedorentos, não dormiriam mais na rua, não comeriam lixo nas calçadas, não pediriam esmolas.
A mulher da pensão cercou Pragmática e Cleobulina com pães recém-saídos do forno, queijos do sertão, leite deixado à porta da pensão pelo leiteiro como fazia todas as manhãs, açúcar de rapadura vendido na Feira do Passarinho, café que chegou de Minas. Trouxe-lhes ainda à mesa banana-da-terra, ovos, banana-prata, banana-ouro.
A filha, Cleobulina, olhava a mãe Pragmática, olhava a comida. A mulher da pensão disse que podia comer, se quisesse, e ela comeu. Ria por estar alimentada.
A mãe, quando ficou só com a filha, admirou tudo o que os olhos podiam alcançar. E a filha perguntou à mãe se elas iam voltar às ruas, e a mãe lhe respondeu que isso não poderia acontecer nunca mais.
Elas receberam as orientações da mulher da pensão, e não poderiam ficar paradas. O trabalho na pensão exigia muito delas, a mãe disse à filha, e a filha correu; começou a ajudar a mãe a tirar a louça da mesa, a levá-la à pia. E a mãe correu e começou a lavar a louça, a secar a louça, a descascar batatas. E a filha correu e começou a varrer; pôs em ordem as cadeiras desordenadas. E a mãe correu e começou a fazer comida, a sonhar com o seu bem-estar.
Diferente de Pragmática, Cleobulina dizia-se um papel sujo de jornal que o vento carregava. Ninguém na capital a olhava como ela era vista em Santana.
No labirinto que a feira de rua formava no centro de Maceió, uma jovem com cheiro de rapadura foi levada à barraca do vendedor de carvão. Ela entrou. Saiu lambuzada por ter deixado o seu cheiro nele e ele deixado nela a poeira de sua sobrevivência na Feira do Passarinho.
Mais tarde, Cleobulina soube que o nome daquela jovem com cheiro de rapadura era Promiscuidade. E o dele? ela quis saber. O velho Exploração! disse-lhe. Formou-se nela a imagem de ganhar dinheiro em Maceió com promiscuidade e exploração.
Isso, aí, disse Cleobulina, era reservado em Santana. Isso ficava longe dos olhos do padre Velho.
Maceió era diferente.
Cleobulina começou a gostar de Maceió. Com sorte, ela talvez alcançasse o irmão Cel. Bé do Algodão em poder e influência, caso ficasse longe dos olhos do padre Velho.
Desde criança, Cleobulina corria do padre. Ele não falava mais latim, e o seu asno Esperança-de-Nunca-Mais-Empacar virou carne seca.
Cleobulina soube que o padre Velho não era mais o que costumava ser em Santana. Ela recebeu a notícia com alívio.
O padre Velho numa cama em seu casarão ao lado do riacho tributário do Panema. Quem cuidava dele era a sua irmã Prequência Prequela, que estava idosa e lúcida.
Era a freira Prequela quem alimentava o irmão com pratos gelados de umbuzada. Ele sentado à cama, os braços moles, a barba branca, recebia as colheradas da irmã; escorria na barba do padre o leite de cabra, e a irmã a secava com o pano que trazia da cozinha.
Foi o que Cleobulina soube, na Feira do Passarinho, pela boca de uma conterrânea. O medo não voltaria a lhe apavorar com a presença e a força do padre Velho. As ameaças ao fogo eterno, disse, vivia numa camarinha escura, num colchão suado, numa cama de percevejos, num corpo sem banho, esquecido de quem foi, de quantos ameaçou com o inferno.
Na vasta cabeleira do padre Velho! disse a conterrânea de Cleobulina, na barba, os piolhos corriam livremente.
Sem temer o medo da condenação perpétua! concluiu Cleobulina.
O sol de ouro no bioma da Mata Atlântica de Maceió. Na Feira do Passarinho, os vendedores de peixe apressados com o balaio na cabeça, com os gritos apressados, com os nomes apressados do pescado da vez.
Ei, menino! disse o velho entre as barracas sortidas com as últimas novidades do Oriente. Quanto cobras nesse canário-belga?
O canto do canário-belga transportou Cleobulina até a sua maternal Santana. Ela era a imagem borrada na Rua da Cadeia, antes de ser a Rua do Sebo.
Cleobulina, naquele momento de satisfação que a livrava do medo do fogo eterno, foi assaltada pelo calor de seus pais mortos em casa durante o incêndio criminoso, como já era falado em Santana. Os pais, no mesmo caixão, foram transformados em dois gravetos queimados.
Eu conheci os seus pais.
Conheceu, Prof. Monótono?
Conheci o padre Velho.
E toda aquela fábula de levitação do padre Velho, de cura dos doentes, de recuperação à vida de quem gastou a própria energia, era só fabulação de uma cabeça prodigiosa. Não era, professor?
Não.
Levitação! riu. Coisa de circo de monturo. 
Não, não, não, Cleobulina, disse o Prof. Monótono, que vendia tabuada na Feira do Passarinho. Levitação não era truque circense. O padre Velho, quando era novo, levitava.
Era, professor?
Era! respondeu-lhe com o entusiasmo típico. Outros que levitavam eram os pais de Novesfora. Um casal de santos que aconselhava pessoas, na Levada.
Ouvi falar! interrompeu Cleobulina. Eram os pais de Novesfora?
Sim, senhora! chegaram a Maceió num navio estrangeiro. Hoje, eram belas e respeitadas as previsões que faziam. Adorados como deuses. Precisava vê-lo$. Um espetáculo os conselhos dos...
Falaram que era uma farsa teatral! antecipou-se.
Farsa? indagou com cara de protesto. A farsa induz à mentira. Mentira não é. Provarei não haver logro naquele casal adorado pelo povo.
Não é um embuste?
Não, senhora.
Quis dizer, Sr. Prof. Monótono, uma peça de gracejos, uma pequena peça cômica.
Por algum motivo, durante o diálogo direto, Cleobulina transportou-se dali. Viu-se diante do padre Velho, como se tivesse a impressão de ouvi-lo. Ele disse:
A infância era mais próxima da velhice do que se dizia. Infância e velhice eram sempre dependentes do espírito samaritano alheio.
Cleobulina suspirava. A conjuntura mudou. A vida trabalhava com o medo. Forrado o chão com cascas de banana. Os quadrúpedes eram lentos como uma manhã de chuva em Maceió, na segunda-feira.
A imagem com a qual se vem ao mundo não era radicalmente oposta à que, no futuro da juventude até à velhice, se apresentava, se comparada à infância.
Em Maceió, Cleobulina era uma grande novela repleta de complexidade e riqueza de sonhos. A sua crônica permeia a sua existência de feirante, e não mais de lavadeira.
Identidade e tradição familiar que a ligava com a falecida mãe D. Xântipe, no rico cenário da Feira do Passarinho. A vida de Cleobulina oscilava entre o excêntrico e o cotidiano de Maceió sob o sol de ouro.
Sob o lixo debaixo das toldas, os ratos corriam porque temia a presença da morte. Cãochorros cochilavam, coçavam com violência as chagas. E os gatos dormiam tranquilos como àquela manhã de quarta-feira.
Na Feira do Passarinho, Cleobulina era uma voz audaciosa. Ninguém duvidava das palavras do comerciante Novesfora. A experiência humana dessa mulher, disse, dessa jovem mulher, reforçou, dessa linda mulher, confessava, era profundamente mágica e corajosa.
Uma mulher desafiadora! concordava Chucho, na banca de Novesfora.
Em sua banca na feira Cleobulina vendia doce às crianças, fazenda de tecido às mães, novidades à juventude, folhas secas à culinária, e combatia as patologias, facas e arreios que chegavam do sertão. Meio-dia, serve almoço; e, à tarde, cachaça em copo de vidro grosso.
Na banca era vendida a melhor manteiga de garrafa de Terra Seca, queijo coalho, rapadura. Cleobulina vendia panelas de louça, vestidos de chita. Sapatos de couro, botinas. Utensílios de folha de flandres.
O dia era de nuvens. Passavam o pai, o filho e o tio na calçada ocupada por balaios de cipós, cangalhas de madeira, tecido e palha, selas, arreios. 
Com balaio na cabeça, o homem oferecia massunim, carapeba e sururu. A mulher com um tabuleiro de cocada.
O Carnaval, esse ano, cai no mês de março! disse Diacrônico, o vendedor de arreios, à Diatópica, a sua irmã, e às irmãs Diastrática e Diafásica.
A família de Variação Linguística chegou a Maceió já adulta. Diacrônico era exímio comerciante que dominava o conhecimento histórico e Diatópica, a sua irmã, viajava todo o Brasil, usava a aprendizagem nas pronúncias, nas diferentes palavras, nos falares, nos dialetos, nos sotaques aonde ia.
Na língua dessa família, as variantes eram populares. Essa variação ajudava a irmã Diastrática a conversar nos dissemelhantes estratos sociais de Maceió; diferente da irmã Diafásica que falava os registros mais formais da língua como meio de comunicar-se e ajudar o irmão a vender os seus arreios.
Na Feira do Passarinho era incomum comunicar-se pela língua de sinais. Exceto Cleobulina, que usava o conhecimento gramatical fonológico ao mudar a sinalização; tinha o domínio da morfologia ao referir-se ao tamanho, plural e ao modo; sabia usar a semântica com o significado, e a sintaxe com a organização. O seu contexto comunicativo entre todos os feirantes, mesmo a distância quando usava a língua de sinais, adotava a pragmática que aprendeu nas feiras de sábado com a falecida mãe Xântipe, em Santana.
Um carro de boi atravessou a feira. Carregado de pedra, gemia o carro. A vara de ferrão orientava o par de bois. 
Entre os vendedores de papa-capim, pitava cachimbo uma velha, prima de Diacrônico. Naquela manhã, ela chegou com gaiolas de galo-de-campina e canário-da-terra.
Sobre as brasas, que reviviam cada vez que Cleobulina atiçava, frenética, o abano de feito de folhas de ouricuri, a rolinha-fogo-apagou comprada da velha prima de Diacrônico que pitava cachimbo, no fim da manhã, ganha cor e invade a banca o cheiro de carne assada. Meio-dia. Cachaça e mais tira-gosto mergulhado na farinha de mandioca vendida na banca da sertaneja.
Cleobulina olhava aquela arma, dizia a si mesma, que a passividade era responsável pela maldade. A arma na mão dele, não que lhe assustasse, representava a continuação do que procurou afastar-se desde o dia em que foi esmagada pela cidade grande.
Se eu te trouxesse cadeiras de vime, perguntou, conseguiria vendê-las?
O exercício de poder se estabelecia entre o dominante e o dominado. Rapidamente, Cleobulina foi sugada por esse aprendizado. Em Maceió, longe a léguas de Santana, foi obrigada a aprender tudo de maneira acelerada, senão caía outra vez na Rua da Lama.
No cotidiano da cidade, eram as mulheres que definiam e festejavam a vida pública. Cleobulina prosperou com o método herdado da mãe, D. Xântipe, que tinha banca de feira em Santana.
Um dia, apareceu na Banca da Cleobulina, um dos 12 filhos de Camundongo. Este que pertenceu ao Bando do Cangaceiro do Rei, caçado e várias vezes preso em Santana. 
Que fazia? perguntou Cleobulina a Guabiru Lambujem.
Escondesse, aí, depressa, escondesse na banca, depressa, Cleobulina, escondesse esse revólver. Mais tarde, venho buscá-lo! disse na linguagem do velho hábito dos cangaceiros, o filho de Camundongo.
Ele sabia que ela sempre estava esfomeada. Começou, em Santana, a chamá-la de Cleobulina Esfomeada; como a fome parecia não ter fim, depois a chamava apenas de Esfomeada.
Àquela hora, a cidade era tomada pelo chiar de cigarras. O dinheiro miúdo corria de bolso em bolso. Potoqueiro apontou no bico da rua com o balaio de vime na cabeça.
Quanto o litro de sururu, Potoqueiro? perguntou um dono de armazém de frente à estrada férrea.
Cleobulina furibunda com Guabiru Lambujem. Embora não lhe fugisse da fome a proposta das cadeiras de vime. Como ele conseguiu estas cadeiras de vime? Não queria meter-se em tuas canjicas! disse, e ele riu porque não levava Esfomeada a sério.
Era o início de janeiro, e as cigarras costumam cantar. Nas noites quentes de Maceió, falavam dois marinheiros recém-chegados:
Aujourd'hui, mon cher ami, j'ai l'impression d'être dans un tombeau.
C'est l'esprit des tropiques, vaillant compagnon, qui donne cette impression à nos corps fatigués par tant de mer. 
Pour la première fois, j’ai l’expérience de franchir les portes de l’enfer.
La lassitude, l'horreur, la lassitude.
On m'avait promis, glorieux frère, les après-midi bleus de l'été. 
Je ne retrouve pas l'herbe verte, ni la vie heureuse qu'on m'avait promise.
Seguiram sem rumo os dois estrangeiros; eles não tinham o destino certo. Caminhavam nas ruas de Maceió como se a vida no mar fosse ociosa.
Noutra manhã alegre de gente na rua, voltou o sol de ouro a Maceió. O homem gordo abria as portas no Cartório, a mulher com a cabeça sob o véu prata entrava na Igreja e levava com ela o sinal da cruz.
Uma moeda, por amor às nuvens; uma moeda, por amor ao sol; uma moeda, por amor às avenidas! rogavam meninos, homens, mulheres, velhos e jovens nas ruas da capital alagoana.
A presença deles na porta das padarias, das farmácias, dos pequenos mercados. As mãos estiradas na entrada das igrejas, dos armarinhos, das lojas. À procura de encantamento, e ninguém parecia encontrar o encantado.
Parte da vida é de plástico, cantava o repentista na porta da sorveteria, parte é de vidro. Os membros são elásticos; fique de olho vivo. A realidade é mágica, basta um sorriso; a mentira bombástica, sob os pés some o piso. Assim, o homem acocorado cantava os versos nas 12 cordas entre os dedos.
Ao certo, por que as coisas aconteciam assim, ninguém sabia nem soube, mesmo que as julgasse óbvias, sequer sabia justificá-las. As coisas continuaram porque tinham que continuar.
Nesse momento, como se fosse um aviso da natureza, na percepção de Cleobulina, todas as cigarras deixaram os seus lugares. Ocuparam as cigarras cada espaço vazio, o ar que se respira, a brisa do mar, as janelas das casas. As bancas de feira ficaram tomadas por elas, as ruas foram forradas por um longo e denso tapete de cigarras. Algumas delas voaram e, ao alcançarem o sol de ouro em Maceió, tudo escureceu.
Naquela noite, preparavam-se as bacias hidrográficas quais as lavadeiras com fardos de roupa suja nas ladeiras do Panema. Formaram-se nuvens sobre o oceano que banha a costa alagoana. A chuva forte e persistente não tardaria.
As mulheres plantariam joelhos em terra, com as mãos postas, as orações peticionadas à espera de milagres. E as barreiras atrás das casas que ameaçavam ruir, e a ameaça de soterramento, desastre e morte?
As chuvas de janeiro costumam inundar. Traziam com elas enxurradas. Não tardava, as enchentes chegavam como surpresas. Nas ruas, corria o povo em busca de abrigo. E as barreiras atrás das casas formavam valas quais protestos de barro líquido.

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