A CASA MAL-ASSOMBRADA

Contos

Por Marcello Ricardo Almeida

O dia igual aos outros. As músicas da rabeca acordam as serras em Santana.
A Rua da Cadeia não se diferenciava das outras em Santana. Isto antes da vingança de fogo que amedrontava Bé do Algodão a cada noite.
Cada amanhecer vinha sob a voz da mãe de Sabuz – como Bé do Algodão era chamado quando era criança – cujo trabalho dela era lavar roupas de ganho. Na manhã clara de sol, a mãe de Sabuz descia a ladeira do rio com o fardo de roupas.
Outra noite de bacuraus. Outra manhã de rabecas.
O cantarolar da mãe de Sabuz ganhava as casas. Era o seu cantar que preenchia as ruas, subia as ladeiras de Santana.
Espalhavam-se ao vento as roupas molhadas, e coloria a manhã.
Batia o pai de Sabuz com o martelo na sola dos sapatos, no trabalho que ficava na sala de estar. A casa era miúda com duas aberturas na parede da rua: janela de duas folhas e uma porta cortada ao meio.
O som do martelo na sola molhada plaft! pleft! plift! ploft! pluft! Este bater repetitivo provocava, na escala musical, a nota dó.
Clac! clec! clic! cloc! – com a língua, a mãe de Sabuz, amaciava a nota do velho. E estendia as roupas na frente de casa. A mãe cantarolava:
“Se uma história era feita de ré, a música mudava com mi. Vida transformada com fá, lá, si celebrava outro dia de sol.
“Na felicidade vivida, eu botei fé na abertura da janela de casa onde habitava no jarro uma flor. Veio o infortúnio e carregou o meu amor. Caiu a fé, a flor avoou.”
O filho embalava-se ao canto da mãe. Sabuz ajudava o pai a bater as solas dos sapatos.
O Panema enchia-se de lavadeiras.
Na Lagoa, o sol chegava cedo qual laranja-da-baía.
Depois do dia, caía a noite feito chicote que estalava sobre a terra e tudo se tornava breu. Mulheres na porta de casa costuravam o tecido da noite, as lavadeiras lavavam a Lua e ela ressurgia. Crianças faziam escadas em busca de alcançarem as estrelas, e talvez habitá-las.
Uma noite, apareceu um vaga-lume; outra noite, outro vaga-lume voou; e noites e noites chegaram mais vaga-lumes. O vaivém dos vaga-lumes encantava as crianças. Elas pediam aos pais, imploravam-lhes repetidas vezes “por favor”, e rogavam, gritavam, esperneavam. Queriam ter ao menos um vaga-lume de estimação.
Qual era o teu nome? quis saber um vaga-lume.
Sabuz! respondeu-lhe.
E o teu pai e a tua mãe não te deram ainda um vaga-lume?
Não!
Os vaga-lumes voavam de casa em casa, de porta em porta, de poste em poste, de janela em janela. Os pirilampos tomavam o emprego dos acendedores de lampiões.
Era verdade! riu o vaga-lume que se dobrou de tanto rir. O teu pai nunca te permitiu ter em tuas mãos um vaga-lume?
Não! disse Sabuz.
E vivias de fato sem luz?
Sabuz demonstrou ao vaga-lume a sua angústia. Aquele vaga-lume voou, foi juntar-se a outros pirilampos, e todos riam da angústia de Sabuz.
O sapateiro tinha a boca cheia de pregos azuis, vermelhos, pretos, brancos, dourados, amarelos, verdes, roxos, cinzas. Eram pregos de múltiplas cores que combinavam com os vaga-lumes criados pela imaginação de Sabuz.
As roupas ao se soltarem das mãos da mãe de Sabuz, que trabalhava dia e noite, voavam e cortinavam e descortinavam o céu. Sabuz e o pai batiam solas de sapatos. Sabuz criança não brincava, e quando não ajudava o pai no trabalho, ajudava a mãe.
Pai e filho atravessavam todas as eternidades. Confeccionavam sapatos que exploravam ruas, que subiam ladeiras, serras, cidades. Sapatos que faziam estradas em busca de novos caminhos ao povo que sonhava em mudar de planeta.
O povo sonhava em sair de planeta em planeta. Viajar de Marte a Júpiter, pular até Saturno, alcançar Urano e morrer em Netuno.
Cantarolava o pai de Sabuz:
“Uma criança parada observava o seu pai agachado, que trabalhava. Era assim que o seu pai trabalhava. Como se fosse um samba. Pra lá, pra cá corria a escova sobre os sapatos até eles brilharem. Pra cá, pra lá a graxa nos sapatos. O pano roto nos sapatos pra lá, pra cá. E os sapatos eram espelhos. Falava o pai trabalhador, os sapatos faziam as ruas, e acordavam o mundo...”
Cantarolava Sabuz, na segunda voz:
“...Os sapatos subiam nas ladeiras de Santana, iam na chuva, caíam no barro, e os sapatos voltavam sujos.”
Em dueto, Sabuz e o pai:
“Que seriam desses pés se não fossem os sapatos? Que seria do fuxico se não fossem os boatos?”
Retomava o pai de Sabuz:
“O guarda com o seu apito: fio! Fiiiiiii! Pedia ajuda o guarda, pedia com o seu estridente apito.”
Cantarolava Sabuz, na segunda voz:
“Ninguém parecia ouvir ninguém; os gritos do guarda aflito assoviavam com o seu apito; o guarda aflito...”
Ambos:
“Fio! Fiiiiiii!”
Voltava a cantar sozinho o pai de Sabuz:
“E o guarda chorava, chorava com o seu apito: fio! Fiiiiiii! E o guarda corria, corria com o seu apito: fio! Fiiiiiii! E o guarda tropeçava, caía com o seu apito: fio! Fiiiiiii!”
Cantarolava Sabuz, na segunda voz:
“De repente, o guarda engoliu a noite.”
Voltava a voz do pai de Sabuz:
“Das tripas delgadas ouvisse o som do apito: fio! Fiiiiiii! E era através da lagoa da sua roupa encharcada: fio! Fiiiiiii! Cada mexida do guarda, duma veia, dum músculo, a mistura do apito e das tripas sofriam e faziam: fio! Fiiiiiii!”
E eram tantos os sapatos que iam limpos, logo voltavam sujos, rasgados, furados. Nas mãos do pai de Sabuz, sapatos recuperados se eles ameaçavam levar os pés à cova.
Os sapatos perseguiam vaga-lumes. Batiam os sapatos, voavam os vaga-lumes. Os sapatos fortes, pesados; os vaga-lumes alados, leves.
Os vaga-lumes voltavam ao céu, na Lagoa, em loucas piruetas.
Filho de sapateiro! provocava um vaga-lume. Tentasse me alcançar, filho de lavadeira, se fosse capaz.
Em casa, Sabuz largou as ferramentas do pai, e saiu em disparada atrás do vaga-lume provocador.
Abraçavam-se e riam dourados vaga-lumes. Viam a criança correr atrás deles, ganhavam ruas, becos, praças como se preenchessem corações vazios, na Lagoa.
Ó, vaga-lume! corria Sabuz. Descesse, descesse!
Com bracinhos finos em direção ao céu, Sabuz, corria atrás dum vaga-lume. Suplicava-lhe:
Por que foge? as perninhas de Sabuz não o alcançavam. Volte aqui, vaga!
Ria-se o vaga-lume. Sabuz corria mais e mais sem alcançá-lo. Ria o vaga-lume louco que dançava no ar.
Aonde foi o nosso filhinho, Xântipe? o pai de Sabuz, soltava pregos, couro e tesouras, ganhava as ruas iluminadas por vaga-lumes. Sabuz! Sabuz! gritava o pai aflito.
Desconhecia o pai que Sabuz havia se tornado vaga-lume de tanto que o desejava ser. O pai saiu de casa atrás de seu filho; andou, virou, mexeu. Foi-lhe buscar a lavadeira nas ruas; após usar todas as suas forças, perdeu o filho, só conseguiu trazer de volta o marido.
Nem os amigos conseguiram ajudar os pais de Sabuz a reencontrá-lo.
Com os vaga-lumes, as crianças, míseras escravas. Passavam noite e dia como se estivessem congeladas, a admirar as cores dos vaga-lumes, como se estivessem hipnotizadas.
O pai e a mãe de Sabuz jamais desistiram de procurá-lo.
Na abertura da janela, só o velho jarro de jasmim. Uma abelha cercava-o com zunzum, zinzim dia a dia.
Era madrugada alta, os pais de Sabuz, na cama, lamentavam a sua perda:
Outro ano sem saber o que aconteceu ao nosso filhinho! disse o pai à mãe de Sabuz.
Nossa fome era uma saudade no vazio que nunca se preenchia! disse a mãe de Sabuz.
Lá fora, a lua; a luz batia na janela sobre o velho jarro de jasmim. A lua foi encoberta por nuvens migratórias quais enormes e pesados rios voadores.
Surgiu, no quarto, antes que a lua voltasse, o vaivém reluzente dum vaga-lume que logo se apagou. Pulou Bé do Algodão assustado no meio da noite com o pesadelo recorrente.
Os sonhos conturbados roubavam o descanso noturno de Bé do Algodão, filho de D. Xântipe e do marceneiro de muletas, depois que o fogo os destruiu. Os corpos deles foram encontrados nas cinzas, carbonizados, irreconhecíveis.
Houve comoção na cidade, mas o fato não se tornou notícia no semanário O Liberdade de Expressão. Aquele era um jornal seletista, disse o Dr. Cicrano, e esta opinião do bacharel contaminou os colaboradores Tudão, Polissíndeto e o padre Velho.
As pessoas começaram a noticiar que ouviam diferentes pedidos de ajuda quando vinha à noite, na Rua da Cadeia, defronte a casa queimada. A fumaça à época invadiu a saúde dos moradores da localidade, e muitos adoeceram.
Com o tempo, a cidade evitava a Rua da Cadeia, onde foi a moradia de D. Xântipe e do marceneiro de muletas com as suas filhas Cleobulina Lavadeira e Aspásia Doceira, além da neta Asioteia. Ouviam-se ruídos de serrotes sem que houvessem serrotes, e o bater de pregos em madeira.
O disse-me disse correu Santana. Ao passar na frente da casa queimada, paus eram jogados e pedras. Não se identificava quem arremessava a saraivada de pedras e paus. E caminhar na frente da casa queimada era arriscado, o chão da casa mal-assombrada agia como se tivesse vida.
Todas as vezes nas quais Bé do Algodão tentou vender o terreno onde foi construída a casa de seus pais, o negócio não se concretizava. A Rua da Cadeia nesta época passou a ser chamada de Rua do Sebo.
A crendice assegurou que a casa mal-assombrada deixaria de assombrar se as pessoas começassem a chamar a Rua da Cadeia de Rua do Sebo. Assim houve a mudança no apelido da rua.
Aquela casa de alegrias, de festejos com gargalhadas que tomavam ruas e becos na cidade, não existia mais. A solidão e a tristeza em cada canto.
A casa sequer existia. A casa de D. Xântipe, do marido, das filhas, do filho Bé do Algodão e da neta Asioteia, filha de Temistocleia, que fugiu de Santana com Eufemismo, um homem casado que usava suspensórios, não confabulava mais sobre os seus desencantos.
Foi a casa despedaçada pelo fogo. No chão repousava só o espanto.
Pilhas de madeira queimadas. Os restos de vidas ali agora esmigalhados.
A casa sem amor, sem sonho. Os entes estranhos desnudaram todas as esperanças de D. Xântipe e do marido marceneiro de muletas que queriam ficar velhos, e não ficaram.
Eram outros tempos em Santana, as feirantes na Rua da Cadeia, – D. Xântipe, Temistocleia, que fugiu com Eufemismo, e a filha dela, Asioteia, que foi trabalhar na bodega do tio Bé do Algodão – elas, que vendiam coentro e outros temperos cultivados no terreno da casa que descia até a calha do rio, não mais existiam como antes. O lugar mudou com a vingança de fogo.
A feira de temperos verdes que circundava o templo de Santana perdeu D. Xântipe. As amigas dela, na feira, lamentavam a sua trágica morte.
A casa que existia na Rua da Cadeia, agora Rua do Sebo, que D. Xântipe, deu-lhe tijolos novos e telhas, abriu 12 janelas fronteiriças, azul à guarnição e as paredes caiadas, calçada alta de pedras, ruiu. O fogo veio, fê-la numa pilha de cinzas.
Santana ignorava como o incêndio mudou a paisagem, na Rua da Cadeia. As hipóteses amontoavam-se em balaios. O cortês Mil-Ciências apresentou uma hipótese estranha, disse que o marceneiro de muletas fumava e adormeceu; veio uma faísca e queimou a sua Roma.
O padre Velho foi chamado e aspergiu água benta no que restou no chão. A hipótese era a de que o local deveria ser exorcizado. E o padre Velho escreveu ao bispo.
Patacão, que acompanhava o padre Velho, ficou estarrecido.
Apenas algumas paredes teimavam em ficar de pé. Estavam firmes as 12 aberturas das janelas sobre o calçadão de pedras.
Era um pedaço de casa devastada. As árvores destruídas, aves voavam sobre a devastação.
Atrás de restos de paredes, ecos de vozes eram ouvidos por quem andava na velha Rua da Cadeia, agora Rua do Sebo. Mesmo durante o dia. Os animais que passavam na casa destiorada manifestavam comportamento estranho.
Os vizinhos deduziram um conjunto de consequências que levou o fogo a destruir a casa da feirante e curandeira D. Xântipe. Os corpos do marceneiro de muletas e de sua mulher foram levados à cova sob o silêncio do povo que seguia lentamente o enterro.
Bé do Algodão não se encontrava em Santana no dia da vingança de fogo. A sua sobrinha Asioteia tinha viajado ao Recife com ele.
As irmãs de Bé do Algodão, Cleobulina Lavadeira e Aspásia Doceira, na noite do fogo, estavam na casa dele, na Camoxinga; faziam companhia à mulher de olhos grandes e pés pequenos casada com Bé. A mulher de olhos grandes e pés pequenos se encontrava no último mês, e a criança poderia vir àquela noite.
A virtude não alcançava a todos no sertão. Os iniciados reconheciam virtù apenas no anular dos bacharéis.
O Liberdade de Expressão era escrito semanalmente. O dono da farmácia e o padre Velho confabulavam à porta fechada sobre ter boa sorte e ter fígado à má sorte.
Aquele que tem boa sorte, disse o padre, este se prepare para ter sorte ruim! o padre Velho folheava Maquiavel entre os livros do Dr. Cicrano. E tão-somente este permanecia no poder.
Polissíndeto, também dono de farmácia em Santana, discutia com Tudão sobre o título do artigo. Tudão inebriado com a semântica de Polissíndeto e o latim do padre Velho.
O número da semana trazia matérias sobre o significado de liberdade de expressão. Os quatro cavalheiros, como costumava chamá-los o padre Velho, discutiam o uso lexical.
Assegurou um dos cavalheiros que a liberdade era o que dissesse que a liberdade era, segundo o Dr. Cicrano. Este riu de orelha a orelha. E a expressão? o padre Velho perguntou.
O Dr. Cicrano gargalhou sobre a expressão:
Este, padre, era o desejo em desmontar e remontar a liberdade na Roída. Quando não era na Roída, era na Desvalida.
No solar do Dr. Cicrano os troféus nas paredes das salas, dois corredores enfeitados. Cabeças de animais empalhadas por Fruição, mulher de Inferência.
Na juventude, disse o Dr. Cicrano, acompanhei a ruína de aristocratas e a revolta do que sobrou com a legislação de 1888.
Parecia ao senhor, disse Tudão, que as narrativas convergem ora a Ilíada e ora a Odisseia?
Prosopopeia, casada com Polissíndeto, vivia com a barriga no balcão da farmácia. No outro lado da rua do comércio, Prosopopeia cochilava. Santana estava cheia de prédios com três pisos, no centro.
O Dr. Cicrano andava cansado! disse o padre Velho a Polissíndeto.
E a Pharmacia? quis saber Polissíndeto se o Dr. Cicrano queria fechá-la.
Ontem, ele contratou a menina Anistia! disse o padre. Não soube?
Ultimamente, comentou Polissíndeto, o Dr. Cicrano girava daqui a Maceió, Maceió até aqui, daqui a Paulo Afonso, Paulo Afonso aqui. Com o Bigodudo por estas estradas furava o mundo.
Depois, amigo Polissíndeto, disse o padre, fazendas só eram engordadas com os olhos dele. Não a Ruída, que era aqui na rua; o problema era a Desvalida que ficava na Mata Pequena.
Covil de cangaceiros!
Psiu! advertiu o padre com o indicador. Se quiser experimentar a fúria do Dr. Cicrano, Polissíndeto, falasse que a Desvalida era isto que o senhor falou.
Santana me livrasse! fez Polissíndeto o sinal da cruz. Só em ouvir falar na Desvalida, padre, eu tinha medo.
O Dr. Cicrano, disse o padre, era do lado dos beatos, do padre Ibiapina e de Antônio Conselheiro.
Santana de sol.
O padre Velho falava em melhorar o templo de Santana. E dizia comprar imagens no mercado do Recife. Pedia sugestões à Polissíndeto de como fazer as reformas no telhado.
Polissíndeto falava em sua farmácia. Dizia ao padre Velho que acreditava fazer negócio com o Dr. Cicrano, ficar com a Pharmacia, fazer das farmácias em Santana um comércio só.
Tudão falava em regressar o mais breve possível ao DF, Rio. Convencido de que não conseguiria relaxar a prisão de Assíduo. O Liberdade de Expressão poderia sobreviver sem Tudão, ele disse de si mesmo.
Em Maceió, o Dr. Sicrano dava as cartas a Santana. O Dr. Cicrano, primo do Dr. Sicrano, jogava mal.
Estupefato e Esdrúxulo foram trazidos de Maceió por Dr. Cicrano. Ele não sonhava mais em destruir o poder do primo Dr. Sicrano. O seu sonho cedeu ao projeto, e o projeto à ação. O Dr. Cicrano começou a boicotar o primo Dr. Sicrano, ao invés de inação, a ação era destruí-lo.
Esdrúxulo e Estupefato vieram a Santana ajudar o bacharel Dr. Cicrano a tributar a região. Eles usavam o medo onde a mentira substitui a verdade.
A mando de Sua Excelência, Esdrúxulo e Estupefato vieram à cidade com as orientações do gabinete. O Dr. Cicrano dizia ter galgado outra condição. E ele não era mais o que foi, agora estava para além, dizia-se o super-homem lido na língua de Nietzsche.
O Dr. Cicrano girava no globo da morte de sua angústia. Diante do espelho, em um dos quartos do solar onde dormia, o Dr. Cicrano enroscava as pontas do bigode. Se o primo Dr. Sicrano não fosse cassado, seria caçado. Mais rosca nas pontas do bigode. Era o seu conflito cassá-lo ou caçá-lo.
O serviço na cadeia de Santana era patrocinado pelo espírito samaritano do Dr. Cicrano. Era um produtor rural benevolente com os seus. Criador de gado e cabras. Amigo do sertão.
O padre Velho acreditava no espírito samaritano como algo coletivo. Já o Dr. Cicrano acreditava tão-só em si e nas ações à caça de seu fortalecimento como super-homem.
Com adjutório irrestrito de Sua Excelência e Estupefato e Esdrúxulo, o Dr. Cicrano, primo do Dr. Sicrano, propagava cidade adentro novos valores. Novo tempo aquele no qual se desvinculou de legislações castradoras mesmo com a dura lex, sed lex.
O que conseguiu fazer com as suas andanças no Bigodudo de Maceió a Paulo Afonso foi a amizade com o criador da hidrelétrica na cachoeira do São Francisco. A ele o Dr. Cicrano vendia cabras.
O conflito em Santana, disse o Dr. Cicrano ao padre Velho, na varanda do casarão paroquial, não era resolvido pela conciliação. O padre concordou com o sinal da cruz.
Não se reconciliava na tragédia! disse o padre. Aprendi isto em Coimbra.
O papagaio do padre Velho falava uma língua estranha. Modulava a sua fala numa imitação aos humanos como se quisesse ultrapassá-los.
Só os loucos riam com a tragédia! disse o padre.
Longe do riacho tributário do Panema, lugar escolhido e erguido o casarão do padre Velho, Polissíndeto e Prosopopeia conversavam. A gente só sabia que ficou velho, disse o dono de farmácia Polissíndeto, quando se encontrava diante do espelho.
Aqui em nossa casa, comentou a mulher de Polissíndeto, o espelho nunca foi bem-vindo.
O Dr. Cicrano era um produtor de leite que entrou em rota de colisão com Bé do Algodão, que fazia queijo e vendia aos comerciantes do Recife. O padre Velho negociava a aproximação entre eles.
Um prometia ao outro o que não podia cumprir.
Na biblioteca do Dr. Cicrano, que ia do chão ao teto, cujos livros forravam paredes e transformavam espaços em labirinto. Perdiam-se nela os minotauros.
A mãe de Macambúzio foi proibida de entrar no lugar sagrado dos livros, na ausência do Dr. Cicrano. Vivia rabugenta a mãe de Macambúzio porque não era mais convidada a dividir a cama com o doutor.
Com o Movimento Aliança Tempo de Estudar, reduzido à sigla MATE, à noite desceu da Xepa a professora Anistia, irmã da professora Amnésia, que já estava em Santana desde o ano passado. As irmãs professoras vieram à cidade por convite da professora de português e do professor de matemática.
Com a morte dos pais Sólon e Esparta, as irmãs Anistia e Amnésia ficaram sem nenhum espólio. Exceto o papel do Curso Normal emoldurado na parede; o diploma emitido da Escola Normal era a tábua de salvação às irmãs Amnésia e Anistia.
Hipérbole, que dava aulas de português, e Pleonasmo, com a matemática, trouxeram de Penedo a outra órfã Anistia. Amnésia encontrava-se em Santana, trabalhava com a alfabetização infantil.
Na sala de aula, naquela escola pequena, vociferavam Amnésia e Anistia. Lutavam no campo de batalha em busca da interação entre alunos, na tentativa de contê-los no processo alfabetizatório. Paredes de taipa estremeciam com os gritos.
Falavam Amnésia e Anistia a ouvidos moucos. As crianças preferiam risos e brincadeiras, agressões mútuas e mentiras por verdades.
A alfabetizadora Amnésia dizia à irmã Anistia que não veio com a sina de apartar contendas, arranhões, machucados, ameaças de alunos. E a normalista Amnésia jurava abandonar os alunos, a escola, o emprego, o convênio com este Movimento Aliança Tempo de Estudar.
E vai fazer o que da tua vida, disse Anistia, minha irmã?
Trabalhar numa farmácia!
Farmácia, Amnésia?!
Santana tem duas, disse Amnésia. Ficarei em uma delas.
No correr do calendário, quem recebeu o convite e começou a trabalhar na Pharmacia do Dr. Cicrano foi Anistia. Amnésia continuou na escola.
Na Pharmacia, Anistia conheceu o padre Velho. Começou a frequentar o tempo de Santana. Ela que era devota de São Francisco, segundo disse, por ter nascido em Penedo, se tornou devota de Santana.
Vivia Anistia de joelhos no confessionário. O padre Velho ouvia-lhe quase diariamente. Anistia era a primeira a entrar no templo de Santana, quando Patacão abria os portões altos de madeira pesada cujas dobradiças gemiam.
Pendurava-se Patacão na corda do sino. O povo de fé tomava o caminho das orações, das confissões, das penitências, dos hinos de louvores a Santana.
Anistia confessava-se três vezes por semana com o padre Velho. Dizia a ele ser atormentada por pensamentos impuros. Sugeria o padre Velho parar de se alimentar à noite antes de dormir.
Ela falava a ele sobre amplexos e ósculos. Era perturbada todas as noites por estes substantivos.
O jejum fazia milagres, disse o padre Velho, ao corpo e à alma.
O padre Velho ficou sabendo que Anistia era invadida por comichões cada vez que se deitava. Era tomada a sua pele por uma sensação desconfortável.
Desconfortável, Anistia? no confessionário, atrás do postigo coberto por palhinha, perguntava-lhe o padre Velho. Como assim?
À noite, padre, era de friccionar dos pés à cabeça. Isto não era tentação?
A amizade entre Anistia e o padre Velho fê-la mudar os hábitos. Vivia mais no casarão paroquial com o seu latifúndio do que em casa com a irmã Amnésia.
Como a professora Anistia só aprendeu de anatomia a metade, jurava que o padre Velho era homem da cabeça à cintura. Via na figura do padre Velho uma imagem singular comum nos livros sobre a mitologia que traziam os centauros.
Na avaliação que Anistia fez do padre Velho, ele tinha a cabeça, braços e dorso de um homem. Disto Anistia estava certa, pois o encontrou outro dia nas águas do riacho tributário do Panema. Ele lavava-se da cintura à cabeça. O seu tronco e pernas, Anistia avaliou, pertenciam a um homem santo.
Anistia ofereceu ajudar Patacão na faxina da casa do padre. E no quarto do padre Velho, o que Anistia viu a obrigou a fazer a promessa de não entrar na camarinha sagrada nunca mais.

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