TEMISTOCLEIA E EUFEMISMO

Contos

Por Marcello Ricardo Almeida

E enquanto a Terra vivia os seus conflitos bélicos, corpos interestelares em velocidade que superavam milhões de quilômetros por hora viajavam em direção à Via Láctea. Quem se importava com a estrada de leite era o leiteiro, irmão de Eufemismo. Este que, antes da rósea aurora, como se dizia no sítio, com o balde de madeira sob os úberes de pesadas tetas, extraía o seu e o alimento alheio.

Eufemismo era o homem casado com quem Temistocleia fugiu. Ela era a filha de D. Xântipe com o marceneiro de muletas, a quem deixou a filha Asioteia. Na manhã de feira, Temistocleia demonstrava as suas habilidades matemáticas, os dedos ágeis ao sonhar com a chegada de cada mil-réis à banca dos temperos.

Asioteia ficou sob a responsabilidade dos avós maternos, paternos eram ignorados, quando Temistocleia fugiu com o padeiro Eufemismo. Asioteia, neta de D. Xântipe, desde bebê de colo, ouvia de sua avó:

Cocó botou quantos ovos hoje? a avó D. Xântipe teatralizava uma voz que não era a dela, uma voz aguda e estridente que impressionava Asioteia no colo da avó. Esta falava como se uma galinha gorda, e à caça de alimento nos ramos verdes jogados ao galinheiro, se comunicasse com outra.

Uma dúzia! respondeu-lhe a Cisco. Esta era a outra galinha com a qual a galinha gorda, e à caça de alimento, conversava.

Dizia a avó à neta como as aves conversavam. Asioteia a observá-las.

Cisco, disse Cocó, ontem Coricocó foi levada daqui pelas pernas.

Quem viu?

Eu vi.

Que fez Coricocó?

Não reagiu, contou, saiu daqui resignada.

Não reagiu? surpreendeu-se Cisco com o que lhe contava Cocó. Nem rasgou à unha quem veio aqui violar o seu sossego?

Disse apenas: “Chegou a minha hora!”

D. Xântipe, com Asioteia entre os braços, caminhava em volta de casa, e imitava passarinhos, mostrava-os à neta que acompanhava o indicador da avó em direção às árvores. Voltava D. Xântipe ao galinheiro, que era o seu xodó.

Ontem, Cisco, Ligeira foi degolada!

Foi? ficou incrédula e quis saber de Cocó como aconteceu. Viu?

Vi! e jogou poeira com os pés. Foi parar na cabidela.

O tempo passou. Asioteia cresceu. E durante a sindemia do Complexo de Caramuru, surgiu Eufemismo. Foi este quem levou embora Temistocleia, e deixou Asioteia com os avós.

Eufemismo chegou à banca, olhou Temistocleia, e ela retribuiu o olhar. Eufemismo, naquele dia, mudou todos os fatos. Ele veio com as mãos leves, ele falou com voz de veludo, ele fitou Temistocleia com os seus olhos claros, próximo ao meio-dia, durante a feira, e segurou as mãos de Temistocleia e disse-lhe estas palavras, e fez questão em acentuar o seu sotaque:

Y yo la siento ahora. Y estoy cual una llama brujuleante em la cabaña de un mismo prado, Leia, frio y sombrio, Leia. Un grito ronco sofocado en la garganta de un poso, Leia, una barcaza en la soledad de un puerto, enegrecido y muerto.

Não se lamentasse tanto assim, Eufemismo! pediu-lhe Temistocleia, por ele reduzida a Leia. Não assim. Não aqui, na tolda. Não na frente do povo.

Temistocleia ao perguntar se o padeiro Eufemismo não era casado, este lhe respondeu ter-se casado, mas não viveu, e quando vivera, vivia mal. Ao ouvi-lo, Temistocleia abandonou a tolda, abandonou a feira.

Observado por joão-de-barro, voou bem-te-vi e alimentou-se do louva-a-deus. Litoral movido à cana-de-açúcar, e usava a mão de obra compulsória, que tangia o gado às águas do São Francisco, e o gado espelhava-se sertão adentro.

Largo era o destino que alargava a Rua da Feira. Toldas multiplicaram-se quão formigas num pote de melaço.

Vendia-se buchada, poesia de cordel, cachaça, sonhos, beiju de tapioca, sarapatel, bolo de puba, rapadura. E tapioca em pedra quente, que era feita na hora – recheada à escolha com as suas fatias de queijo ou coco recém-ralado.

Os balaios eram comercializados no chão, caçuás, utensílios de couro de cabra, cabrito, bode ou de boi, bezerro ou de jumento. Banco de madeira, malas, mesas.

Estendia-se a feira circunscrita ao templo consagrado a Santana. E as mãos do povo em tudo. Cebola, batata-doce, caju, seriguela, manga, mamão.

Adiante, chapéu de couro, botas, luvas, guarda-peito, gibão, perneiras. O grito do vendedor preenchia a praça.

Santana era uma cidade musicista por natureza. O que promovia o ritmo a este mundo, por séculos, era o comércio; em Santana, por décadas, a feira.

Saía da feira um trabalhador rural, entre outros, que levava preso a uma embira dois quilos de pescoço. Sabia que este corte bovino era fibroso e cercado de gordura, carne de terceira, como se ouvia falar. Este era o peso que ele podia levar à sua casa.

Uma mulher anônima surgiu, ligeira, entre os feirantes com três quilos de acém, numa cesta de vime. Ela conhecia aquela carne de segunda. Comprava-a porque era magra se comparada a outros cortes.

Dr. Cicrano atravessou a feira como se não conhecesse ninguém. Todos o conheciam em Santana. Repetia ladeira abaixo:
A sorte favorece os estúpidos!

Enterrou a mão gorda na camisa e dela puxou a chave que a sepultou na fechadura. Girou. Abriu a porta. Sobre a qual estava escrito, numa tabuleta que se balançava com o vento da tarde, Pharmacia.

Destruísse o Dr. Sicrano, Dr. Cicrano! Como! duvidava. Ele era o meu melhor amigo. Amigo foi o teu avô que pôs a assinatura dele na Constituição de 1891.

No solar, olhava outro dia de feira na cidade e repetia que Santana era o lugar dos livros. Entre títulos na estante do primeiro capítulo de sua história, feita pelo marceneiro de muletas, marido de D. Xântipe, corria ele o dedo entre Gilka, Nísia, Clarinda, Delfina, Eurídice Eufrosina, Firmina dos Reis, e Júlia Lopes de Almeida, que acabara de publicar “Ânsia eterna”.

Ele viu entre elas, Kierkegaard, Schopenhauer e Nietzsche. Uma parede do chão ao teto com títulos em diferentes línguas.

Encontravam-se Cervantes à caça dos moinhos de vento, Dante à caça do Paraíso, Camões à caça das Índias, Shakespeare à caça das consciências às consequências do poder. Adiante, “Decamerão”.

Via, através da janela, o Panema. Aquela moldura na janela expunha um quadro Naturalista. Como se dissesse a imagem desenhada pelos contornos da janela não haveria nada que representasse a realidade senão a natureza.

Planejava como tirar a cadeira do primo, na capital. Fazer como o seu avô fez ao assinar a Constituição de 1891. E para que isto acontecesse a ele, rezava 90 vezes, todas as tardes, diante dos seus livros:

Mãe de misericórdia, vida, doçura, esperança nossa, salve!

Bibliografias científicas em diferentes idiomas. E livros de Medicina e de Química; presos a estes, realizava as suas alquimias. Dr. Cicrano acompanhava as publicações de Freud no idioma deste autor. Tinha nas mãos “A interpretação dos sonhos”.

Não criei filho para ser um simples dono de botica! repetia Dr. Cicrano. Se o teu avô estivesse vivo, jamais iria admitir um neto boticário. Não se esquecesse nunca que foi ele quem assinou a Constituição de 1891.

Dr. Cicrano mantinha uma empregada em casa com quem fornicava. E da luxúria veio ao mundo de Santana, Macambúzio, o faz-tudo de Dr. Cicrano.

A conversa que chegava a Santana em tempos de guerra era a de que havia gente que morava no mundo sem vivê-lo. A guerra de 1914 destruiu corpos ao se prolongar até 1918. Houve neste período o interregno de 1917 no qual se enfrentava o significado de interregno e a sua relação ao reinado hereditário.

Por Dr. Cicrano, Macambúzio cometia pequenos furtos, no início. Depois vieram os crimes banais.

Esperavam a vez o oiti, o juazeiro e a jurema. Facão balançava na bainha de Macambúzio, no movimento dos braços batia o machado veloz. Golpes não permitiam a sobrevivência das árvores.

A machadadas, baraúnas tombavam próximas ao rio. Morria a mata ciliar. Haviam pancadas de metal na árvore. Dentes famintos roíam, ouvidos não mais ouviam. A medula cedia à força da lâmina afiada. A casca externa cortada, surgia a casca interna, o câmbio, o alburno, o cerne, o tombo, a morte.

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