Enredos nas narrativas infantis: Branca de Neve, A Bela Adormecida, Rapunzel, Cinderela, e tantas outras

Crônicas

Morche Ricardo Almeida (*)

Vão-se os séculos, no mínimo dois séculos ou mais, do tempo em que foram escritas as histórias onde a menina
era torturada, explorada, desrespeitada, conduzida por entre florestas escuras, pelas mãos da madrasta. O pai,
normalmente, fazia o papel de um homem ausente, que entregava toda a responsabilidade dos filhos a uma nova
companheira para criar seus filhos, já que a mãe de suas crianças havia falecido e deixado ele sozinho em um mundo em
que o homem era apenas o provedor do lar.
Era cultural o viúvo buscar uma nova companhia e entregar a esta nova companhia suas crianças do
relacionamento anterior. Como as mulheres, muitas vezes morriam de parto, morriam novas, ou à época sem muitos
avanços da medicina, várias doenças que levavam a óbito, estas jovens mulheres partiam e deixavam seus filhos ainda
pequenos para passarem às mãos das novas esposas dos viúvos, ou seus maridos que ficavam encarregados da criança.
As narrativas encontradas na literatura infantil, como Branca de Neve, A Bela Adormecida, Rapunzel, Cinderela e
tantas outras, apresentavam o mesmo enredo. Um pai que ficou viúvo e que se casou para garantir os cuidados das
crianças por uma nova mulher. Nestas histórias, estas novas mulheres apareciam, normalmente como bruxas, como
mulheres invejosas, egoístas, ciumentas. Elas temiam e odiavam as crianças por sua inocência, por sua beleza, por sua
bondade. Sempre havia um motivo para justificar os sentimentos mais perversos que surgiam nestas novas esposas em
relação aos filhos do viúvo, ou as filhas, pois as questões ocorriam justamente em relação às mulheres. Não apareciam
homens vivendo estes dramas, pois a posição dos homens, nestas histórias, era a de salvador das pobres moças – ou
adolescentes entrando na puberdade – das garras da madrasta má.
Os que escreveram estes contos de fadas, com enredos de Branca de Neve, A Bela Adormecida, Cinderela, e
tantas outras, usaram, como cenário familiar, uma família rica ou um líder de um reino.
O salvador das donzelas é sempre um príncipe que, em algum momento, vê a jovem e desenvolve uma paixão
fora do comum por ela. A ponto de enfrentar todos os tipos de avareza para salvá-la das garras da madrasta.
O reforço do machismo está presente, permanentemente, nestes contos. A posição do homem e da mulher é bem
definida nestas histórias. A mulher bruxa, a mulher invejosa, ciumenta, a mulher que não consegue conviver com a
juventude, que não consegue conviver com a beleza, que só pensa em seu bem-estar, desrespeitando a inocência, a
fragilidade da outra diante de seu poder de madrasta. Madrasta, normalmente, sem a presença do marido, o pai, que, em
alguns casos, viajou para terras distantes, para guerras de conquista, ou que, logo depois faleceu e deixou, não só sua
riqueza material com a mulher, também sua riqueza espiritual, sua filha, a continuidade de sua história.
E o homem? O homem no papel de príncipe, de herói, de guerreiro, de salvador. Sempre montado em um fogoso
alazão. Pronto para, com a espada, vencer qualquer guerra, batalha, luta, seja enfrentando, diretamente, a madrasta bruxa,
ou os monstros por ela criados para o enfrentamento daquele que se aventura em tirar dela sua vítima preferencial.
Normalmente, este homem vem de um reino distante, vem de um reino que parece ser só dele, pois raramente ele tem
familiares, raramente tem história.
A história é da mulher submissa, a mulher entregue às maldades de outra mulher, a mulher que enfrenta o
sofrimento, a mulher que não consegue superar a situação se não tiver ao seu lado o príncipe defensor, o herói, o homem.
Estas histórias foram elaboradas há séculos, porém continuavam povoando o imaginário da cultura do tempo
presente. Como se a história da humanidade não andasse a passos largos, como se tudo o que aconteceu, acontecesse
como uma jornada de uma lesma.
A história vai se transformando a cada milésimo de segundo, de forma imperceptível muitas vezes. Sabe-se que,
nos tempos atuais, a posição homem e mulher, ou mulher e homem na sociedade, têm transformações profundas. Não
param as mudanças, as conquistas. Tudo evolui. As posições se invertem em vários lugares onde estão presentes os seres
humanos. Alguns, ainda procuram manter os ideais e as ideias do tempo dos contos da madrasta má; porém, a grande
maioria, já não aceita ou concorda com este tipo de cultura. Até mesmo para alguns grupos, as histórias mencionadas
anteriormente já não estão tão presentes em suas bibliotecas.
Com as transformações que foram ocorrendo ao passar das décadas, dos séculos e, automaticamente, das relações
entre os seres humanos, a posição das mulheres e homens na sociedade, várias situações mudaram. Uma delas, que
poderia se observar com tranquilidade, eram os fatores independência e autonomia que a mulher alcançou, principalmente
nas últimas décadas. Foram muitos enfrentamentos para que suas relações na sociedade mudassem. Nos dias atuais, ainda
estavam presentes algumas das ideias de um passado não tão longe em relação a posição de cada um dos gêneros, no
entanto mudanças ocorreriam e continuavam ocorrendo, e aquela mulher com posição de Cinderela, ou de Branca de
Neve, ou de Rapunzel, Bela Adormecida, aquela já não se encontrava com muita facilidade.

1 Autor, editora da Universidade Federal de Santa Catarina, 2012, do livro de contos “A Pândega do Boi” sobre folclore brasileiro.

A mulher é dona de sua liberdade. Não precisa mais de um príncipe encantado, montado em um cavalo garboso,
com espada na mão e pronto para enfrentar a madrasta má, a bruxa. A mulher vai à escola em nível de igualdade com o
homem, vai ao mercado de trabalho da mesma forma, ocupa espaços na sociedade onde se destaca com muita
desenvoltura. Ainda falta batalhas para serem vencidas? Faltam. Mas este processo sempre lento, continua, porém não se
pode negar suas vitórias a cada nova luta por novos direitos e novos espaços.
Porém, voltando aos enredos nas narrativas infantis: Branca de Neve, A Bela Adormecida, Cinderela, e tantas
outras, quando se voltam os olhares aos contos de fadas de madrasta má, uma bruxa, um pai que ao perder sua esposa,
entrega seus filhos a uma nova mulher e parte em busca de novas possibilidades, ou falece, pois o tempo é cruel em
relação à ciência que possibilita uma vida mais longa, percebe-se que a realidade vivida pelas crianças inocentes, puras,
bonitas, ainda está cercada de maçãs envenenadas, torres altas sem acesso, e apenas com uma janela, lá no alto, ou um
borralho aos fundos na casa velha, agulhas envenenadas, e tantas outras maldades, desenvolvidas pelo ser humano, a ser
usada contra o ser humano que está sob sua responsabilidade.
Os homens, sempre os heróis, os salvadores das donzelas, os provedores das necessidades básicas, os guerreiros
que partem em busca de novas terras e novas riquezas para sustentar sua prole. Estes homens parecem não serem os
padrastos cheios de maldades, de inveja, de ciúmes, de egoísmo. A história vai se transformando sempre, vai se
construindo outras vivências com o passar dos tempos. A mulher ocupa espaços diferentes e deixa de ser dependente do
homem, da forma como há algumas décadas, há alguns séculos – tendo por parâmetro, nesta crônica, os enredos das
narrativas infantis: Branca de Neve, A Bela Adormecida, Rapunzel, Cinderela, e tantas outras. A mulher é livre. O
homem, para a mulher, pode ser um companheiro, um momento, um relacionamento curto ou duradouro, depende de
muitas situações.
Sendo assim, nas relações homem e mulher, são geradas crianças; não diferente de outra época. A diferença é a de
que, com o espaço conquistado por mulheres, já não precisa haver príncipe encantado com seu cavalo e espada para
defendê-la. A mulher separa, o homem separa, as crianças, filhas destes pais separados, ficam com um ou outro, para que
se garanta seu desenvolvimento intelectual, educacional, social, cultural, enfim, que a criança cresça e transforme-se em
um adulto pronto para viver em sociedade, transformando e construindo seu mundo.
Nesta nova vivência da humanidade, as mulheres se casam, ou passam a conviver maritalmente com outros
homens, diferentes dos pais dos seus filhos. Agora, as crianças, ao contrário do que ocorra na época dos contos de fadas,
não tem mais uma madrasta; agora, elas têm um padrasto. Não se pode negar que também alguns vão ter madrasta e
padrasto, pois a mãe entra em novo relacionamento, e o pai também vai entrar em novo relacionamento. Como,
geralmente, as crianças ficam sob a tutela da mãe, o padrasto vai estar mais presente na vida desta criança. Nesta relação
padrasto e enteado, passa a acontecer situações do passado entre a madrasta, nos contos de fadas, e enteadas vítimas.
Inveja, ciúmes, violência e tantas outras maldades desenvolvidas pelos seres humanos.
Os noticiários estão repletos de maldades praticadas pelos padrastos contra seus enteados nos dias atuais. São
histórias que podem se relacionarem às histórias contadas nos contos de fadas escritos em séculos passados. Crianças
lançadas na rua, por padrastos, para enfrentarem todas as espécies de monstros que a rua apresenta; crianças presas em
castelos assombrados, sem acesso nenhum a outros espaços, e com apenas uma janela para observar um mundo que
poderia ser seu mundo, porém a criança está presa às maldades. Obrigada a comer maçãs envenenadas e dormir até que
alguém a desperte, se é que vem alguém que a desperte. Crianças jogadas aos piores espaços, nos contos de fadas, para
fazerem todos os tipos de trabalho, na satisfação do padrasto mal, aquele que tem ciúmes, inveja, egoísmo em relação aos
seus enteados. Tudo isto está presente. Ninguém denomina estes padrastos de bruxos, pois a sociedade mudou, com o
tempo, mas parece que a posição do homem nesta sociedade continua tão forte, tão poderosa como foi há séculos.
E a mulher, como está nesta situação? Pergunta-se para que haja paralelo aos enredos das narrativas infantis:
Branca de Neve, A Bela Adormecida, Cinderela, e tantas outras.
A mulher saiu de casa, como saíam os homens, no passado, para irem em busca do sustento à família, para irem
em busca de novas conquistas? Algumas, sim, vão à luta, e deixam seus filhos sob o poder do padrasto, outras, ficam em
casa e terminam por acobertar todas as maldades e atrocidades que o padrasto mal faz contra as crianças.
Já não são as meninas inocentes que sofrem as maldades de quem deveria garantir seu desenvolvimento, não
existe mais uma vítima preferencial, para o padrasto maldoso, diferente da madrasta má. Para o bruxo, que não é taxado
de bruxo pela sociedade atualmente, a vítima pode ser a menina, ou o menino que vive na inocência. O tratamento é o
mesmo em relação a todas as formas de tratamento de violência, de falta de respeito, de falta de cuidado.
Nos tempos então passados, as histórias aconteciam nos castelos, grandes, cercados por fossos que protegiam as
maldades que ocorriam lá dentro. A história apresentava como personagens, dentro daqueles espaços, a madrasta má e a
jovem que ela torturava e fazia o que lhe dava satisfação. Nos tempos atuais, as questões acontecem em casas pequenas,
ladeadas por outras casas, onde os vizinhos ouvem tudo, tudo sabem, em alguns momentos, tudo observam, mas se negam
a denunciar, por medo da reação do padrasto mal nesta simbiose entre os enredos nas narrativas infantis: Branca de Neve,
A Bela Adormecida, Cinderela, e tantas outras histórias nos telenoticiários e nas redes sociais.

(*)Autor, editora da Universidade Federal de Santa Catarina, 2012, do livro de contos “A Pândega do Boi” sobre folclore brasileiro.

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