Projeto Fábula no Atacama (Semifinal)

Outras Peças Literárias

por Fernando Soares Campos(*)

Urucubaca significa azar, infortúnio, má sorte, caiporismo... Vem de “urubu”, ave agourenta, e “cumbaca”, um peixe tão azarento que, se pescado, o pescador deve mudar de profissão, pois será condenado a sete anos de má pescaria. Agora imagine um urubu que tenha comido uma cumbaca. O vocábulo teria surgido em 1918, quando ocorria a gripe espanhola, uma pandemia que ceifou a vida de aproximadamente 100 milhões de pessoas.

Hoje, aqui no Brasil, já se pode criar neologismo baseado no mesmo fato, uma pandemia, associando o agouro do urubu ao infortúnio de uma nação que tem um presidente inconsequente. Daria “urubonaro”, o cúmulo do azar.

Dizem que, quando um urubu pousa num telhado de uma residência, os seus habitantes devem se preparar para o pior. Ainda não se sabe se o urubu tem poder de premonição ou se é apenas dotado de natureza agourenta. Para algumas pessoas, ele tem o dom de identificar energias mórbidas que estejam atuando em determinado ambiente, por isso se aproxima de localidades envolvidas por um baixo astral. Também existem os que acreditam que o urubu seja o próprio agente da desdita, portador de maus fluidos. Nesse caso, supõe-se que a sua aproximação agravaria as probabilidades da ocorrência de sinistro.

O nosso fabuloso urubu malandro veio para o Deserto do Atacama contratado pela nossa editora. Talvez seduzido pela expectativa de sucesso fácil. Fica assim descartada a possibilidade de que tenha vindo atraído por cheiros, sons, cores ou qualquer outro estímulo sensitivo. Nem ao túmulo do putrefatíssimo general Pinochet pode-se atribuir a presença do brasileiro urubu faminto no Chile. Mesmo porque putrescências genéricas abundam e medram no seu próprio solo pátrio.

Como diria o mito sucupirano da Bahia de Todos os Deuses, o lendário prefeito Odorico Paraguaçu, se um urubu excretar sua borra fecal na cabeça de alguém, esse alguém deve estar bastantemente urucubaquizado, envolvido na desdita e no desgostamento pela vida.

Mas, apesar dos pesareandos, vamos botar de lado os entretantos e partir logo pros finalmentes...

Luz! Câmera! Claquete... Ação!

009 — Deserto do Atacama — Vale da Morte — buraco-abrigo do preá — noite

Sobre a cabeça, o céu estrelado; sob os seus pés, o solo esturricado, assim, o preá entrega-se à lembrança de seus companheiros de excursão: córneos e mochos, emplumados e peludos, caudados e anuros como ele próprio. Imagina que todos devem estar aflitos com o seu desaparecimento. A arara taramela, o bode bodeja, o burro zurra, a ema geme, o gambá regouga, o gavião crocita, o lagarto farfalha, o macaco guincha, a onça esturra, o boi muge e a perereca da companheira do preá se agita freneticamente, contraindo-se e dilatando-se ao ritmo de seus soluços.

010 — Deserto do Atacama — Vale da Morte — topo de um monte — manhã

A calorenta manhã atacamenha faz o urubu faminto observar que se acordar no topo de um monte no Deserto do Atacama tem algo em comum com o despertar num luxuoso hotel em Nova Iorque, Moscou, Londres ou Paris, pois, lá distante ou ali onde ele se encontra, a primeira coisa que se faz ao acordar-se é abrir os olhos.

O urubu alça voo e logo está surfando numa corrente de ar...

Sonoplastia: Tema musical do urubu, “El condor pasa”.

011 — Deserto do Atacama — Vale da Morte — buraco-abrigo do preá — manhã

O urubu pousa na borda do buraco-abrigo do preá e solta um “Craaachiii”. (Tradução legendada: “Vim, vi, venci e vou devorar”.)

O preá agonizante tem uma brilhante ideia para fazer o urubu faminto ajudá-lo a sair daquela deprimente situação.

Preá falando alto:

— O que me causa maior tristeza é morrer sem ter oportunidade de resgatar o tesouro.

Tesouro é o tipo de palavra que desperta curiosidade.

O aziago urubu faminto ligou as antenas:

— Do que você está falando?!

— É que a minha excursão por estas bandas tinha um objetivo mais proveitoso do que simplesmente me banhar com águas dos gêiseres...

— Sei, mas a que tesouro você se refere?

— Eu falei “tesouro”?

— Sim, com todos os chiados. Por acaso, isso tem alguma coisa a ver com o Tawantinsuyo?

— Com o quê?!

— Tawantinsuyo, o império inca!

— Ah! não propriamente, mas tem tanto valor quanto um tesouro inca.

O urubu abre as asas, mexe-se banzeiro, pigarreia.

— Acho que, por essas bandas, mais valiosos que um tesouro inca, só dois preás.

O preá empalidece, estremece, mas logo se recompõe.

— Primeiro, aqui no Atacama não tem preás. Estou de passagem. Segundo, o tesouro também não está aqui no deserto.

— Não?! E onde se encontra?

— Não muito distante daqui...

— Dispense os arrodeios, vá direto ao ponto!

— Nas montanhas bolivianas.

— Explica! Que tesouro é esse?

— São duas caixas...

— Caixas?

— Sim, caixas de rum cubano.

— E por que caixas de rum cubano enterradas nas montanhas bolivianas seriam consideradas um tesouro?

— Porque elas não têm rum de verdade.

— Pare com esses paralelos, você está me deixando faminto!

— Hein?!

— Quer dizer... é... estou ficando louco de curiosidade!

— É que elas estão recheadas de verdinhas, são três milhões de verdinhas. Se é que você me entende...

— Dólares?!

— Três milhões. Valendo mais de cinco reais cada um...

O urubu sacode as asas, recua alguns passos, risca o solo, faz ligeira conta, volta para a borda do buraco-abrigo do preá e fala:

— Isso dá comprar muitos preás... desculpe! É... frangos... muitos frangos. Onde exatamente a gente pode encontrar esse tal tesouro? Como soube dele? (O urubu demonstra ansiedade).

— Já falei que é na Bolívia. Quem me contou foi o Poletto, ex-assessor do Palocci.

— O Palocci ex-ministro do Lula e da Dilma?

— O próprio. O cara me deu todas as coordenadas do local onde as caixas estão enterradas.

— E por que ele mesmo não foi pegar o tesouro?

— Porque, já lhe disse, não tem rum cubano de verdade. Só dólares. E o Poletto não bebe dólares, claro!

— Mas quem teria deixado tanto dinheiro nas montanhas bolivianas?

— Quem?!

— Sim, quem?

— Pois é, quem?

— Hummm...

— Não é “hum”, é rum, tchê!

— Tchê?! Peraí, você é paulista ou gaúcho?

— Morei uns tempos na Argentina.

O urubu faminto, impaciente, dá uns passos para um lado e para o outro. Queria dizer que não estava entendendo bem aquela história, mas precisava deixar claro que sua falta de entendimento era por causa da pouca clareza com que o preá se expressava, não por suposta insuficiência cognitiva de sua parte.

Justificou-se:

— Apesar do meu QI de gênio, com predominância na área da Lógica, expressivo nos âmbitos de inter e intrapessoalidade, o que faz de mim a liderança que sou, com elevados níveis de percepção espacial e inspiração musical, além desse meu reconhecido talento para as artes cênicas, ainda assim, não consigo entender a origem desse “tesouro”. Dólares em caixas de rum cubano?! Você poderia expor isso de forma mais contextualizada, para que se faça mais inteligível?

O preá precisava ganhar tempo e a confiança do urubu. Só assim teria chance de sair daquele fim de mundo, postergando a sua passagem para o Reino de São Francisco de Assis.

— Pelo que vejo, valoroso vivente voador, você veio, viu e venceu, mas não via, de vez em vez, a Veja.

— Você quer dizer a revista Veja?

— Sim, a própria...

— Quando eu era pintor de parede, li algumas Veja de papel. Os donos das casas que eu pintava sempre me davam essa revista pra forrar o piso. E eu apreciava fotos e ilustrações em geral...

— Lembra de uma capa que falava dos dólares de Cuba para a campanha de Lula?

O urubu faz cara de surpresa.

— Como eu poderia esquecer? Lembro, inclusive, que acreditei que Fidel havia mandado os três milhões de dólares para ajudar na campanha de Lula para presidente, contra José Serra, em 2002, mas a notícia só veio a público em 2005, no pacote do escândalo do mensalão. Por isso, em 2006, votei no pobre do Alckmin...

Foi aí que o preá entendeu que aquele urubu não tinha nada de malandro, era na verdade um otário, acreditava em fake News antipetista, como qualquer pato bolsominion.

***

Moral parcial: O maior prazer de um preá malandro é bancar o otário diante de um urubu otário que quer bancar o malandro (Preá agonizante dando uma de Confúcio).

***

Breve, a finalíssima!

Episódios anteriores:
Projeto Fábula no Atacama (pouca carniça pra muito bico)

Projeto Fábula no Atacama (II)  

Projeto Fábula no Atacama (III) 

Projeto Fábula no Atacama (IV) 

(*)Fernando Soares Campos é escritor, autor de "Saudades do Apocalipse  ̶  8 contos e um esquete", CBJE, Câmara Brasileira de Jovens Escritores, Rio de Janeiro, 2003; e "Fronteiras da Realidade  ̶  contos para meditar e rir... ou chorar", Chiado Editora, Portugal, 2018.

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