CONTO DE NATAL

Contos

Por Fábio Campos

Um velho homem se fazia, sentado numa velha cadeira de balanço, no alpendre duma rude casinha desaprumada, lá no sopé do serrote da Camonga. A colossal “Baronesa”, do escritor Clerisvaldo B Chagas compunha o fundo dessa cena. O sol a pino, em todo seu esplendor, de raios, a tudo desnudava, tornando livre de qualquer poesia. O rei dizia que já ia o meio dia. Crudelíssimo sol, a muito estriando o seio do árido solo moreno do sertão. A craibeira semelhante a uma gigantesca mão de uma bruxa, brotada dantescamente do ventre da terra. Crispada, pedia clemência pelos seus pecados. Um carro de boi na estrada, violino rústico compondo a melodia do sertão. O carreiro fez os animais, unidos pela canga, pararem a marcha. Apoiando a vara de ferrão no chão quente, olhou pra lá. Os bois da dianteira, um fio de baba se esticando do espelho da bocarra. Sopravam das ventas hálito de mato rumino. Meneio de cabeça, e um dos bois, olhou pra lá. O cachorro, negro de cor, lá adiante parou. Tentou morder umas pulgas que lhe incomodava nos genitais. Endurecendo as sobrancelhas brancas, olhou pra lá. E Deus que a tudo assistia, olhou pra lá. Olhavam todos para lá. Para o homem sentado na velha cadeira de balanço, no alpendre da casinha no sopé da montanha. E era Deus aquele homem.

O homem solitário. Barba branca, de alguns dias por fazer, olhava o horizonte, na direção donde o azul do céu se ia misturar com o lago do Bode. Onde caprinos pastavam na relva, e galinhas selvagens flutuavam na superfície d’água. Olhando pra lá, Ele apenas piscou os olhos, na própria lentidão da cena. Um milésimo de segundo talvez. Foi o suficiente. Os cílios das pálpebras, mal tocaram os cílios de baixo. Sequer os olhos se fecharam, e dez gerações haviam se passado. Um século adiante era o que o calendário dali por diante dizia. E Deus olhou pra estrada. Carro de bois, carreiro, cachorro pulguento, estrada, craibeira, nada mais havia lá. Nada do que antes existia tinha mais. Porém, O Homem, ainda estava lá. Sentado calmamente a cadeira de balanço, no alpendre da casinha. O solo continuava, castigado de sol causticante, inclemente. O escritor não mais existia, porém a senhora “Baronesa” continuava lá. Em toda sua imponência, de pedra, granito, ervas, envolta de clorofila. Ainda mais rica de lendas, histórias e mistério. E o limiar do primeiro ano que dera início aquele século, talvez parecesse com aquele que culminaria com o início da primeira grande guerra, cujos jornais do mundo noticiaram:

“28 de junho de 1914, o assassinato do arquiduque Francisco Fernando da Áustria, o herdeiro do trono da Áustria-Hungria, pelo nacionalista iugoslavo Gavrilo Princip em Sarajevo, na Bósnia, foi o gatilho imediato da guerra, o que resultou em um ultimato Habsburgo contra o Reino da Sérvia. Diversas alianças formadas ao longo das décadas anteriores foram invocadas, assim, dentro de algumas semanas, as grandes potências estavam em guerra; através de suas colônias, o conflito logo se espalhou ao redor do planeta.”

O Homem agora ia pela estrada que levava a cidade. Era dia, porém o céu que cobria o mundo se fazia plúmbeo. O ar pesado carregado de partículas poluentes era quase palpável, pouco respirável. Densa neblina de gás que anuviava as coisas todas que existiam. Cheiro forte de resíduos queimados, como se o mundo tivesse se transformado num imenso lixão. E a densa neblina cinza, escondia o céu, de um quase azul, azul sujo, encardido. Muitos elementos que no passado era abundante, passaram a ser precioso. Água era um deles. Os alimentos agora eram sintéticos. O combustível dos únicos transportes existente, os ônibus espaciais, era de origem atômico nuclear. Quando chovia, e isso só ocorria algumas vezes por ano, era chuva ácida. Água potável, só havia nos polos da terra, no que restava das calotas polares.

As grandes nações haviam se apossado dos territórios gelados do planeta, formando a Triple Aliança: Estados Unidos da América e seus aliados se apossaram do polo Ártico. Alemanha e China, mais outras potências europeias e asiáticas, se apossaram da Antártida. Os países emergentes, depois da revolução religiosa agruparam-se em dois blocos. Um deles explorava o Oceano Atlântico, a água do mar, era parcialmente dessalinizada. Do mar se sustentavam. Outro bloco era formado por países africanos, e mulçumanos do oriente médio, formavam a maior organização terrorista do planeta. Exploravam o Pacífico. As notícias chegavam ao sertão com alguns anos de atraso. A rede internacional de computadores não havia mais. Como naqueles inícios de séculos do passado, o mundo passava por mais uma revolução industrial. Os grandes rios haviam secado. As usinas hidrelétricas não funcionavam mais, por falta de água. A energia ainda existente era de origem eólica ou solar.

Senhor Josevel e dona Mirian tiveram seis filhos. Belchior, Baltazar e Gaspar que tinha três irmãs Francisca, Jacinta e Lúcia. O ano de 2113 estava terminando. Havia sido um ano muito difícil. Naquele ano Seu Josevel faleceu. A família ficou amparada com os recursos que tinham. Prédios, que alugavam na cidade. E a exploração de minas de alumínio, cobre e enxofre. Instaladas num lugar inóspito. Perto de uma região que no passado, chamada de agreste. Descobriram mananciais de vários metais, próximo a uma urbanidade chamada de Jaramataia. A divisão dos bens causou grave desunião entre os irmãos. As irmãs queriam reter os prédios alugados somente para as três. Sob sua responsabilidade ficara a guarda da mãe, sofrendo mal de Alzheimer, em idade avançada e viúva. Os irmãos achavam injusta a divisão, pois as minas davam sinal de esgotamento.

O mês de dezembro, do primeiro ano do início daquele século, estava quase no fim. A uma casinha alpendrada, fincada no sopé da montanha da Camonga morava Donana e Seu Joaquim. Eles tinham uma filha única, chamada Maria. Eram devotados cristãos. Nesse tempo os cristãos eram perseguidos pelos Mulçumanos. A prática da religião católica era proibida. Padres, missionários e cristãos eram perseguidos e mortos. Tratados como bandidos. Missas eram celebradas as escondidas, em grutas e cavernas em lugares secretos. Os governantes recompensavam quem denunciasse o que eles chamavam de rituais, que atentavam, segundo os que comandavam, contra a lei, a moral e os bons costumes. Maria fora desposada por um rapaz chamado José. E a quase menina estava grávida. Estava para se completar os dias de dar à luz. José fora embora pra São Paulo. Viajaria dizendo que só voltaria quando tivesse juntado dinheiro, o suficiente para comprar uma casa. Carpinteiro de profissão pensava em montar uma marcenaria. Trabalhava com madeira sintética, produzida a partir de plásticos, prensado com outros materiais recicláveis.

Lá pras bandas do pôr do sol. Uma estrela mais brilhante que as outras surgiu no céu. E os filhos de Seu Josevel, amigos de Seu Joaquim e Donana, quiseram ir visitar Maria que estava para ter bebê. Levariam presentes. E pegaram seus cavalos, e rumaram pras bandas do Serrote da Camonga. Um carro de boi na estrada, violino rústico compondo a melodia do sertão, tendo ao fundo magnífico por de sol. O carreiro fez os animais, unidos pela canga, pararem a marcha. Apoiando a vara de ferrão no chão, olhou pra lá. Os bois da dianteira. Fio de baba se esticando do espelho da bocarra. Soprava das ventas hálito de erva ruminada. Meneio de cabeça, e os bois, olharam pra lá. O cachorro, negro de cor, lá adiante parou. Tentou morder umas pulgas que lhe incomodava. Endurecendo as sobrancelhas brancas, olhou pra lá. O homem sentado a cadeira de balanço assistia a tudo. E Deus olhava pra lá.

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