Final da década de 60, eu estudava em Recife capital pernambucana, onde a princípio morava com meus avós maternos no Bairro Campo Grande, e, posteriormente, passei a residir de favor na casa de um amigo na Avenida Norte próximo ao Bairro Macaxeira, o qual conhecera por intermédio de um bigu, que consegui em um cursinho pré-vestibular de Agronomia no Colégio Salesiano. A condição financeira era o principal problema em minha vida e que às vezes me entristecia, alimentando o falso desejo de retornar a Santana do Ipanema com a mesma sandália com que havia partido. Porém, fui resistente, não permiti que os desgastes da vida corrompessem as minhas aspirações, segui em frente, mesmo tendo que comer o pão que o diabo amassou. A ajuda que o meu velho e querido pai, com todo sacrifício, enviava para mim, dava apenas para manter os meus estudos até o meado do mês, vez por outra tinha que usar a solércia de estudante para superar a fragilidade que o destino havia me concedido como uma prova da minha resistência, sofri muito. Os dias se passavam com lentidão, o horizonte que eu sonhava era pálido e mostrava um caminho sinuoso com obstáculos que eu teria que trilhar para alcançar a vitória. Às vezes, no início da minha trajetória estudantil, caminhava alguns quilômetros, do Bairro Campo Grande até o Parque Treze de Maio no centro de Recife, onde ali, à sombra das árvores dedicava grande parte do tempo concentrado em uma apostila ou caderno de anotações, deglutindo as horas para não sentir a indolência do tempo.
Certa vez, mês de fevereiro, o carnaval de Santana me aguardava para mais uma apresentação do bloco carnavalesco Pau D’arco com suas marchinhas próprias. A Grana que eu dispunha não permitia viajar de ônibus, tentei alguma carona, como de costume, com alguns amigos santanenses que sempre viajavam ao Recife a negócio, mas não obtive sucesso. Decidi então ir até a estação ferroviária a fim de uma tentativa. Deu certo, o preço da passagem de trem até Maceió me fez economizar alguns trocados do velho cruzeiro. Um dia depois, tomei o destino da estação de trem já com um pequeno desfalque nos cobrinhos que possuía, pois, havia pago o coletivo até a estação onde embarcaria de trem à capital alagoana às cinco e meia da manhã. De Recife a Maceió eram aproximadamente cinquenta estações, ou seja, cinquenta paradas que o trem fazia até chegar ao seu destino final. A minha passagem concedia o direito de viajar no vagão de segunda classe. Pois bem, já na locomotiva, assento colado à janela para me permitir a contemplação dos cenários que surgiam, iniciei mais um regresso temporário ao paraíso que sempre me acolheu, minha cidade.
Após três horas viajando na locomotiva, o estômago começou um alerta de fome. Até ali, apenas um cafezinho teria sido a minha primeira refeição do dia. Mais uma parada, passageiros descem enquanto outros sobem. De repente uma jovem senta-se no assento ao meu lado, me cumprimenta ao que lhe retribuo com apenas um sorriso de boa tarde. Minutos depois a companheira de viajem retira da bolsa peras, maçã e biscoitos achocolatados com recheio, me oferece, agradeço dizendo não, enquanto o estômago reclamava emitindo um barulho de fome. Tossi cada vez que o bucho manifestava o seu desejo de se alimentar. Preferi virar o rosto ao contrário e fingir que estava dormindo para não cair na tentação da gula. Resolvi fazer uma excursão pelos vagões do trem, quando dei de cara com a pequena lanchonete. Aproveitei o momento, consultei os trocados e pedi um cafezinho, ao mesmo tempo em que comprei um saco de pipoca. Após aquela refeição de faquir, peguei um palito e retornei ao assento fingindo esgravatar os dentes, Pedi licença, me sentei e ainda tive fôlego para dizer: “o restaurante desse trem cozinha mal e cobra caro”.
Após algum tempo em mais um cochilo disfarçado, estava quase chegando a Maceió. A jovem ao meu lado iniciou um questionamento, trocamos nomes, endereços, etc., me parecia ser uma pessoa da fina sociedade. Antes de o trem fazer a sua parada final, a manceba me ofereceu carona no carro do seu pai que a aguardava na estação. A agradeci mais uma vez, dizendo que meu irmão viria me apanhar. Despedimo-nos e minutos depois quando eu estava em uma parada de ônibus, encostado a um poste de luz tendo a maleta presa as pernas, em frente à estação de trem, um carro de luxo faz uma parada e eis que surge da janela aquela jovem que viajou ao meu lado, e mais uma vez renovou o seu convite. Agradeci de novo enquanto ocultava a maleta, até que o luxuoso carro conduzindo a linda moça se perdeu na curva da avenida. Depois de alguns minutos estacionado ao poste, dei partida em direção a loja da Brasil gás, situada a Rua do Comércio, onde o amigo Mindinho Barros exercia ali as suas atividades. Tamanha foi a sua surpresa a me ver entrando na loja rebocando uma maleta. Cumprimentamo-nos e em seguida partimos para o Bar Sete Portas na Levada, para beijarmos os copos. Aproveitamos aquele curto espaço de tempo para atualizarmos os acontecimentos santanenses, contei a história da minha viagem e, finalizando pernoitei na casa do amigo Mindinho que ficava próximo a Praça da Deodoro, para prosseguir a viagem no dia seguinte, conforme o combinado.
Obs.: A continuação desta crônica fica para o próximo capítulo.
Aracaju/SE, 16/11/2013.
FRAGMENTOS DE MINHA VIDA ESTUDANTIL – Uma viagem de trem
CrônicasPor Remi Bastos 17/11/2013 - 12h 32min

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