PROCISSÃO DE SENHORA SANT’ANA

Contos

por Fábio Campos

“Nos vossos dias de alegria, vossas festas e vossas luas novas, tocaris a trombeta, oferecendo holocaustos e os sacrifícios pacíficos, e elas vos lembrarão a memória de vosso Deus. Números 10 – 9,10”
Fui à casa de minha mãe, havia as férias de julho. Outra vez, encontrei-a revirando coisas, objetos antigos, álbuns de fotos. Coisas guardas com muito carinho. Tentativa vã de reter o que era, não é mais. Se fora, não volta. Nunca mais. Nunca mais, dói. Como é doída, a dor do nunca mais. Dizia. Falava a respeito de papai. Mostrou-me velhas fotos. Um retrato da “Procissão de Senhora Santa Ana -1968- Santana do Ipanema”, assinalavam letras cursivas brancas, como que escritas a giz - e se encontravam espaços brancos, desapareciam - no roda-pé do postal. Conseguidas, gostaria muito de saber como.
Estranha capacidade essa de petrificar momentos possui as máquinas fotográficas, pintores gravuristas idem. A foto em preto e branco concebida, amajentou. O tempo, somente ele, capaz de esmaecer, desbotar, amadurar. E o que já não tinha nuance, de sem nuança se acerbou. O flagrante captado à Avenida Martins Vieira, de quase meio século, de quase a mesma idade.
Quis estar dentro daquela gravura, e fui. Os foguetes de Zuza fogueteiro subindo, lá em cima explodindo. Angariando os olhares pueris dos infantes, olhar enfadado dos caminhantes idem e aturdido dos matutos, volvidos todos lá pra cima, pra o céu de Senhora Santana. Céu cheinho de nuvens. Muitas delas plúmbeas, grávidas d’água. Outras, carneirinhos de alvura. Estas de cá, de véspera haviam derramado suas graças sobre o sertão. De resto, anil de veronese, esmaecido dum amarelo alaranjado, pras bandas das tocaias.
Aquele ar, aquele áurea, tal estado de coisa, tudo aquilo já o havíamos vivido antes. Fora meu. De novo era. Antes num corpo reduzido, na terna inocência de oito anos de idade talvez. Em mim mesmo, dormidas sensações voltavam. A casa de esquina de Seu Domício Silva, a casa dos pais de Roberval Nóya, a de Seu Abílio Pereira. Poucas eram as habitações na via andante de então. Calçamento, projeto ainda, nos documentos do Paço Municipal. Promessas de político, nos discursos dos comícios eleitorais. Barro vermelho, úmido, grudando no solado dos calçados, no passo a passo, e saltando. Barro salpicado na boca das calças de brim, cambraia e ciroco. Ensanguentando os sisudos Passo Double, propositadamente engraxados para ocasião memorável. Silicato de argila, volatilizando pras narinas, lama viscosa, gélida. Respigando nas meias alvinhas dentro dos sapatos envernizados das meninas de longos rabos de cavalos. Em vestes brancas e boinas das cruzadas, de faixas da catequese, de dona Marina Marques. Com esmero desenho dum cálice, um ramo de trigo e um pão à faixa ao ombro. O botão pregueado de dúbia flâmula à cintura. Ao fundo projetando-se sobre o céu pálido, a serra da microondas, que até então era apenas serra. Ricamente, densamente aureolada de mata branca, no momento verde invernal. Amofinada de neblina. Grânulos de cristais de gelo disperso no ar, percebido na derme, no eriçar dos pelos, no soprar do ar quente dos pulmões. Tudo, tudo, trazido da memória.
A procissão, organizada em duas fileiras. De um lado homens, do outro, mulheres. Adornada de véu, as zeladoras do sagrado coração de Jesus, revestida de marinho intenso, fechado, fita vermelha e broche ao colo. A procissão, significado profundo. A todos igualando. Avança num só intuito, cada um sendo o que é, de si. Vida retratada, detalhes. Encabeçam o cordão, políticos, autoridades. Homens familiarizados ao jugo dividem, se solidarizam ao peso do andor. Olhar pio. Na rebarba os desimportantes. Os tipos. Boêmios, jogadores de cassino, prostitutas, delas que iam descalças, em expiação dos pecados. Ali, de si próprio se colocam, pra não ferir, não causar indignação.
Coroinhas avançam à frente com os sírios e lanternas acesos. Negro major todo de branco, balouçava em frenesi a matraca. Padre Luiz Cirilo, adiante do andor, ladeado do padre Alberto da paróquia de São Cristovão em paramentos preto e branco. Prefeito Adeildo Nepomuceno Marques e o tabelião Pedro Bulhões, trajados de paletó e gravata. À retaguarda destes, Major Estevan, de farda e quepi debaixo do braço, desfila como se nas fileiras de um pelotão. Serenos acompanham comerciantes, agricultores, pecuaristas, vez outra, volvem os olhos à imagem, como se agradecessem, pedissem graças. Alunos portando flâmulas e buquê de flores, no peito o brasão de sua escola. Professores à guisa observam seus pupilos. No ar sons de clarins, troar de bombos, da filarmônica Santa Cecília. Das bocas, enchendo os ouvidos, inflamando corações, brado uníssono, o hino a excelsa padroeira:
“Santa mãe da mãe de Deus
Recebeis filias corações
Derramai de lá do céu
Graças mil sobre nossos sertões
Vossa glória da virgem de mana
Protegei-nos Senhora Sant’ana”

E seguia o cortejo pela rua da Cadeia. Céu nublado prenunciou chuva – cerca de duzentas almas caminhantes volveram seus olhos para lá - e se descortinou tênue e fria. As sombrinhas se abriram propiciando um brotamento rico de cores. Do alto, o formigueiro humano louvando Senhora Sant’Ana, arremedava um canteiro de flores serpenteando no chão do sertão.

Fabio Campos

Comentários