Praça do obelisco, um homem sentado a um banco. Se Drummond, o poeta, tivesse nascido santanense, talvez, quisesse ali, sua estátua. É simples, pequena, mas arbórea, como toda praça deve ser. Fica meio escondida. Tantos passam, insensíveis, nem se dão conta dela. Tímida, recatada. Não se impõe como praça. Mas tem obelisco. Pra tapar a boca dos difamadores de praça: - Ela ostenta um Obelisco, viu! E é, o cartão de entrada do Comércio de Santana do Ipanema, de quem vem para o centro, pela avenida Coronel Lucena Maranhão. O homem tem um livro à mão. É um livro de poemas. Abre uma página, aleatoriamente. E lê, mentalizando as palavras:
“Navegar é preciso
Viver não é preciso
Fernando Pessoa”
Nos versos do poeta português, “preciso” refere-se a exatidão, diz o livro. De fato, viver é tão imprevisível. Ontem mesmo, não estava o homem, tão apreensivo, como agora. Algo o preocupa. Espera alguém. Alguém que talvez não venha. Tira cigarro e fósforos do bolso. Acende um. Pensativo. Em que pensa, o homem? É pouco mais de oito da manhã. Olha e admira-se da ousadia de um casal de pardais, que veem até bem perto de onde está. Brincam. Esvoaçam. Rodopiam. E se permitem a algazarras, sem se importar com sua presença. Afinal, quase imóvel. O sol derrama seu calor e sua luz ofuscante pela praça. O obelisco visto assim resplandecente, espetando o céu, poderia perfeitamente ser comparado a espada de Zeus. Como se emergida das entranhas do calçamento da praça. O homem pensa na amada que não chega. É bem provável que não venha. Se não vier está tudo acabado. Consulta o relógio sem intenção de saber as horas. Apenas pra ter com que ocupar as vistas. Acompanha o movimento compassado e preciso dos ponteiros.
Seu pensamento já está ocupado. Totalmente preenchido. Não há espaço pra mais nada, além dela. Rumina palavras que dirá, se ela vier. Repete frases mentalmente. Muda algumas palavras. Percebe que pode alterar o sentido da frase. Talvez possa ser mal interpretado. Pensa. Não pode esquecer nada, de cada coisa que pensa em dizer a ela, que não chega. Lê outros Versos:
“O pensamento é triste; o amor, insuficiente;
E eu quero sempre mais do que vem dos milagres
Cecília Meireles”
A praça até em tão calma, muda de cenário. Alguns estudantes que gazetearam aulas, chegam fazendo burburinho. Falam alto. Gritam. Dizem palavrões, entre eles mesmos. O homem perde a concentração. Não é mais, só pensamentos. Agora virou espectador. Analisa como àqueles se divertem, uns, as custas dos outros. Acha bela a juventude, mas só nos outros. Em si, não achara nada interessante, quando ele próprio era adolescente. Chato, a condição de submissão aos pais, não ter liberdade. Chato, ver o próprio corpo mudando sem nada poder fazer. Impotente diante do inexorável, e emaranhado, fatores biológicos. As espinhas no rosto. Chato, achar o próprio pênis pequeno, ao ponto de ter vergonha de despir-se, junto aos outros meninos nos banhos lá no “panema”. A necessidade vexatória da circuncisão. Os sonhos eróticos. A primeira ejaculação nos lençóis. O excesso de masturbações, por ter visto a vizinha tomando banho, nua, no quintal. Mais Versos, lhes veem aos olhos:
“Meus olhos se abriam insones como flores no escuro
Até que longe, no horizonte eu via
Mario Quintana”
Rememora o último encontro com sua amada. Pensa na discussão que tiveram. Tinha certeza que tivera razão. Ela não o entendia. Não adiantaria continuar o namoro com alguém que não o entendia tão desconcertantemente. Afinal porque brigaram. Não quer se martirizar remoendo os fatos que levaram a briga. Já reprisara milhares de vezes e sabia que tivera razão. Ela, é que é cabeça dura. Talvez nunca tivesse gostado dele, nunca. Naqueles anos todos de namoro. Onde já se viu uma namorada após uma briguinha de nada. Uma discussão boba. Abandoná-lo às próprias reflexões. E ir concomitantemente pra uma festa, em outra cidade com as amigas. Deixando-o jogado as traças. Sem ter com quem desabafar. Ela tinha sido muito incompreensível. E lá estava ele, rememorando os fatos. Precisava ocupar a mente, com algo mais que aqueles pensamentos, enquanto ela não chegava. Versos do livro lhes socorriam:
“De repente não mais que de repente
Fez-se de triste o que se fez amante
Vinícius de Moraes”
Pensou, em um mundo distante. De Elfos e Ninfas, saídos da mitologia grega ou romana. E que talvez, aquela pracinha já não estivesse mais em Santana do Ipanema. Imaginou-a, tele-transportada pra um lugar tão distante no tempo e no espaço, que remontaria a Era Antiga, quem sabe na Grécia. E que ele, talvez fosse, um daqueles senadores. Discursando em público, no púlpito. Em nada tinha a ver com os senadores de hoje em dia. Corja de ladrões! Ladrões, duplamente, triplamente qualificado. Roubam consciências de pessoas. Mas há, os que se deixam roubar também. E imaginou-se um grande orador. E fez pose de orador. E de braço erguido recitou em alta voz, poesia de Lêdo Ivo, que sabia de cor:
“Cala-te boca!
Mas como posso calar
Se até as pedras da rua
Falam e gritam sem parar”
O homem, descobre-se uma pessoa poderosa, sabedora de coisas. Eloquente. Conhecedor de verdades que jamais imaginasse conhecer. Vê-se na obrigação de dizer coisas ao povo. De esclarecer verdades escondidas. Verdades maceradas. Engessadas. Mumificadas. Adormecidas dentro de baús velhos, como aquele bem grande, existente no Museu Darras Noya. Talvez aquele, nem fosse ainda, suficientemente grande, pra guardar tudo. É tanto, o que está escondido. Oculto. As pessoas lhes parecem alienadas. Mas será, que todos o sabem, dessa condição? E assim procedem por aceitar tal situação? Teriam sido levadas, arrastadas. Ludibriadas a isso. Viu-se, na obrigação de descobrir e esclarecer. As pessoas de Santana do Ipanema pareciam alienadas. Ou seria ele, o único alienado ali? Bem que sabia disso. Só não dera muito vazão a sua idéia. Mas o sabia. Talvez tivera um sonho assim: Em que via Santana, como cidade cenográfica. Todos, atores. E se alguém, se desse ao trabalho de olhar por trás das casas, encontrariam: Maquiadores, figurantes, contra-regras. Equipamentos de filmagem. Os transeuntes, o gari, o motoqueiro, o menino tomando sorvete. A velhinha indo à igreja. Tudo encenação. O poeta que recita poesia na praça (no caso ele) também, parte do espetáculo. Fazendo sua cena no show da cidade.
“Aqui ó Ninfas, vos pintei
Todo de amores um jardim suave
(...) Sem me ficar bonina, fera ou ave
Luiz Vaz de Camões”
Os estudantes fizeram anarquia dele. Pra ele, era como se fosse o povo, a lhe ovacionar, num antigo anfiteatro. Quem sabe, em Roma, ou na Grécia. Estaria ficando louco? Precisava por fim aquilo tudo. Talvez o melhor fosse suicidar-se. Trazia comprimidos de cianeto no bolso, para o caso de resolver tomar aquela decisão. Se fosse preciso, mil vezes faria, sem hesitar. Melhor cortar os pulsos. Quem sabe pular da ponte. Expunha-se ao ridículo, assim, tudo por culpa dela. Já não gozava de perfeita faculdade mental. Talvez sua família o internasse num asilo de loucos. Não estariam fazendo nada mais do que o correto. Considerava-se já, uma ameaça a ordem pública. Ou a segurança nacional, ou quem sabe, provocasse uma terceira guerra mundial. Delirava, suava frio. Não conseguia ouvir mais as pessoas. Todos pareciam espantalhos. Pareciam avançar sobre ele flutuando. Tudo feito geléia, derretendo àquela temperatura sufocante. O sol, lhes encandeava a visão. Esse sol com certeza, é um novo sol. Não mais o de manhãzinha.
“Vou-me embora p’ra Pasárgada
Aqui eu não sou feliz
Manoel Bandeira”
O homem da praça. Parece dopado, sob efeito de alucinógeno poderosíssimo. - Edilmar! A voz, lhes chega, como se estivesse no fundo de um poço úmido, escuro, profundo. É ela, chama-lhe pelo nome. Tenta em vão, recompor-se. Percebe-se com a cabeça apoiada ao colo da amada, no banco da praça. Está cercado de pessoas. Curiosos haviam se aproximado. E ao vê-lo recuperar a consciência começam a dispersar. Será que recobrara mesmo a consciência? Não tinha tanta certeza disso. Já não se sentia o mesmo Edilmar. Aquele que chegara ali pela manhã sozinho e pensativo. De uma coisa tinha certeza, que era agora outra pessoa. E saiu dali com uma convicção. Maior do que o amor da amada restabelecido. Precisava fazer algo pelo povo. Candidatar-se-ia, a vereador.
Veio o pleito eleitoral. E ele se elegeu. E continuou ganhando por vários mandatos seguidos. E agora o chamavam de louco. E disso, ele ria. Um riso largo, alucinado. Como o de João Urso, de Breno Accioly.
Acabou descobrindo que o conhecimento científico-filosófico, tão avidamente buscado, deixava-lhe por dentro, um grande vazio. Uma sede, de uma outra sabedoria, só existente nas Escrituras Santas. Um vazio existencial em seu coração, nunca antes preenchido. Nem mesmo pelo amor da mulher amada. E na sua retórica impregnada de acidez, aos de comando. Entremeada de loas e rebuscamento, aos paladinos de justiça. Do parlatório na assembléia dos nove. Exalava por todos os poros, inflamando a urbe, pelo fio do microfone:
-Hipócritas! São todos, hipócritas!
Fabio Campos 20/05/2010 É professor em S. do Ipanema – AL.
Contato: fabiosoacam@yahoo.com
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