CINE ALVORADA, O TEMPO E EU

Pe. José Neto de França

Certo dia, fazendo uma visita a minha prima Gleide, eis que acabei percebendo uma relíquia – assentos do antigo Cine Alvorada. Como minha irmã, Auta, disse outro dia: “cada assento desses tem carimbado milhares de personagens(pessoas) até repetido o mesmo personagem, que com muita alegria sentava para assistir aquele mundo mágico, um tempo bom, inesquecível”

Segundo Gleide, ela ganhou de alguém há muito tempo! Ela tinha seis desses assentos; me presenteou três, ficando com os outros três. Fiquei tão feliz com o presente que imediatamente providenciei para a devida restauração.

Assim que meus olhos fixaram nesses assentos, o arquivo de minha memória começou a processar as imagens arquivadas nele; produzindo um “filme”, mesmo amarelado pelo tempo.

O Cine Alvorada fez parte da minha infância, adolescência e juventude como de tantas outras pessoas amantes da “telona”.

Foram memoráveis os momentos da minha vida que teve como palco o Cine Alvorada!

Nele, acompanhado ou não, assisti inúmeros filmes; shows como os de Sérgio Reis, Evaldo Braga, Jerry Adriany… ou mesmo os inesquecíveis Shows de Calouros nas tardes de domingo…

Jamais saiu de minha memória a expectativa que eu ficava ao ver se aproximar da hora de dar início as projeções. Ouvia o sinal sonoro, se não me engano num espaço curto; três vezes... a música: “Tema de Lara”... o apagar das luzes... meu coração acelerava... as cortinas abriam-se... enfim, a magia do cinema...

Entre tantos filmes que assisti no Cine Alvorada o que mais me marcou foi “O meu pé de laranja lima” (lançado em 1970, exibido no Cine Alvorada entre 71/72, acho), adaptado da obra de José Mauro de Vasconcelos. Já tinha lido várias vezes a obra escrita (lançada em 1968, quando eu tinha 10 anos), tendo me identificado muito com “Zezé”, a criança protagonista da história. Se antes não tinha um “rosto” a não ser o meu próprio rosto criado a partir da obra física, agora não precisava mais. Deixei de ser o “Zezé” e o rosto do personagem do filme passou a ser o rosto do meu amigo imaginário! Vivemos muitas histórias, contadas por mim e a mim mesmo! Surreal!

Nesse cinema iniciei amizades, reatei outras que pelas obtusidades do existir tinham sido desfeitas; foi na entrada desse cinema que uma de minha irmã Gerusa discutiu com seu Costinha (uma espécie de juiz de menor) porque o filme era habilitado para pessoas acima de 16 anos e eu que a acompanhava só tinha 13; e meu cunhado tinha dito que ela só iria se fosse comigo (Gerusa venceu a discussão, acabei entrando e assistindo com ela o filme)… Era um filme, se não me engano, de terror... Ora, como se isso me assustasse mais do que minhas experiências sobrenaturais!

Foi também no Cine Alvorada que durante uma seção de cinema, pelo fato de eu estar tenso por estar ali de forma irregular (faltei aula para assistir ao filme), enquanto saboreava balas (confeito), amassei a carteira de estudante e depositei na cadeira ao lado, colocando o papel da bala (confeito) no bolso. Percebi essa falha ao retornar para casa. Depois de uma noite de angústia – se meus pais soubessem dessa minha arte, certamente acabaria apanhando, ao amanhecer, dei um jeito de retornar ao Cine Alvorada e lá, na cadeira ao lado da que sentei estava ela. Só falei para minha mãe na minha vida adulta.

A sorveteria que ficava anexa ao Cine Alvorada, acessada tanto para quem já tinha passado pela entrada, como também para quem estava fora do prédio, era um ponto de encontro para pessoas de todas as idades. Saboreei muitos sorvetes misturados com Coca-Cola, Fanta, Pepsi-Cola ou Laranjada… não me pergunte quem me ensinou essa mistura, pois não me lembro, mas que era chique e legal na época, era.

Com o avançar do tempo o prédio foi sendo pouco a pouco desfigurado até ser transformado em um prédio comercial.

Restou a saudade, sentimento que tempera a alma de quem não deixou que esse “templo das artes” morresse ou fosse transfigurado pelo chamado “progresso”.

Enigmas da vida…

[Pe José Neto de França]

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