A RELIGIÃO E EU

Pe. José Neto de França

Vez ou outra, flagro-me a pensar sobre o que vi e vivi no passado. As diferenças culturais/temporais são muitas, mas cada uma com sua devida importância na contemporaneidade em que se viveu.

Um dos momentos que mais aproveito para “divagar” sobre o passado próximo ou distante é quando, humanamente só, me desloco de um lugar a outro, ocasião das idas e vindas às comunidades. Numa dessas, fiz um retrospecto da religiosidade do passado.

Recordei da lembrança mais antiga de meu contato com o sagrado, um mesclado da religiosidade popular com a oficial, quando era ainda criança e residia com meus pais em uma casa no povoado (hoje cidade) de Carneiros: um quadro com a estampa dos Sagrados Corações de Jesus e de Maria que ficava na parede oposta a porta de entrada da casa, um crucificado, também nessa mesma sala; outros quadros e/ou imagens nos diversos cômodos... o Santo Terço em família, rezado diariamente antes do jantar, devoção que durou até minha adolescência, quando fui residir na capital paulista, onde permaneci por doze anos.

Lembrei-me da capela da Imaculada Conceição, à frente de minha residência, ainda em Carneiros. Inúmeras vezes acompanhei meus pais para participar das Missas celebradas pelo Padre Cirilo (in memoriam), vindo de Santana do Ipanema. Como não entendia ainda a importância da fé, fixava-me nas músicas litúrgicas que eram cantadas em latim ao som de um órgão. Ficava fascinado. Eu, simplesmente, “viajava” no tempo; mergulhava num mundo de fantasia... aquelas músicas religiosas tocavam profundamente na minha alma.

Já em Santana do Ipanema, a partir de meados da década de sessenta, continuei indo às missas com meus pais. O ponto alto era nas festas da padroeira, Senhora Sant’Ana. Nesse mesmo período duas capelas instigavam meu pensar: A das Tocalhas, com a história que a envolvia (esse nome em função de uma tocaia que foi armada para alguém que resultou em morte) e a de Santa Terezinha na Serra do Cruzeiro. As duas eram pontos de referência para pagamento de promessas por parte da população. Foi nessa última que aconteceu um terrível acidente com uma de minhas irmãs, Terezinha. Mas essa é outra história...

Quando comecei a trabalhar (no Bar Santo Antônio), já pré-adolescente, isso por volta de 1970, fui convidado pelo meu patrão, Antônio Pacífico, um homem muito católico, a acompanhá-lo às reuniões bíblicas que ele fazia com outros católicos às casas de famílias nas periferias da cidade. Lá era rezada a oração do Santo Terço e proclamada e explicada a Palavra de Deus. Também eram cantadas músicas religiosas. Eu achava fantástico. Aos poucos ele foi fazendo com que eu não somente o acompanhasse, mas participasse rezando um mistério do Terço ou proclamando a Palavra de Deus. Tímido que era, ficava tenso, gaguejava um pouco, mas cumpria o que me era proposto. Foi nesse período que começou a passar pela minha cabeça a possibilidade de um dia ser padre, ou seja, foi aqui que a semente do sacerdócio ministerial foi plantada. Embora, mesmo pensando, ficava assustado. Achava que jamais chegaria a isso.

De 1971 a 1974, influenciado pelo um amigo, José Heli, tornei-me coroinha da Paróquia de São Cristóvão, território que foi desmembrado da Paróquia de Senhora Sant’Ana no ano de 1964.

Diariamente ia a Missa. Ao chegar à Igreja e abrir às portas, antes de qualquer coisa, tocávamos a chamada (repicar contínuo do sino), como forma de anunciar à comunidade de que haveria missa. Depois, preparava, junto com os outros coroinhas, o altar organizava tudo que era necessário para a celebração, víamos se naquele dia havia alguma memória ou festa litúrgica, isso porque era nossa função ver a cor das vestes que o Padre iria utilizar e deixá-las já dobradas no ponto de ele vesti-las... Entre um afazer e outro, por vezes brincávamos, no caso de desentendimento estapeávamos, mas logo estávamos de boa novamente.

Após tudo pronto, nada mais a fazer, gostava de ficar num banco da praça à frente da Matriz, para ver o Padre quando vinha, a pé, de sua casa. Ele gostava de usar uma batina cinza. Ao movimento de seu andar e do vento, ela esvoaçava, o que chamava minha atenção. Isso denotava em mim algo de místico.

Naquele tempo era costume tocar o sino durante um funeral. No enterro de adultos, o sino era tocado de forma lenta: um toque, espaço e mais dois seguidos; um espaço e repetia tudo novamente. Isso da saída da casa do morto até o cemitério. No caso de crianças, a diferença era que o toque era um “repicar” contínuo. Nós coroinhas éramos quem fazia esse trabalho.

Encantava-me com os ritos litúrgicos, embora, por vezes, ficasse assustado em alguns momentos paralitúrgicos que acontecia no final das missas de sétimo e trigésimo dia. Antes da bênção final, era colocado um tapete retangular de cor predominantemente preta com a estampa de uma cruz à frente do altar. Na extremidade de cada canto desse tapete era colocado um candelabro com velas acesas. Várias pequenas velas eram distribuídas aos presentes. Com todas elas acesas e com as luzes da Igreja apagadas era feito, pelo sacerdote, um pequeno rito em memória do falecido.

As reuniões bíblicas com a reza do Terço nas famílias e nas comunidades era muito interessante. Quaresma, mês de maio, mês da Bíblia, Festa do Padroeiro e Natal eram os pontos altos.

Viajei muito para as comunidades com o Padre Alberto e outros ajudantes do altar...

Os batizados e casamentos daquele tempo não tinham tantas “pompas” como hoje... Tanto na Matriz como nas comunidades, a maioria destes eram celebrados de forma comunitária. Recordo de que numa viagem à Serra do Poço, que na época pertencia a Paróquia de São Cristóvão aconteceram mais de cinquenta batizados e dois casamentos. Lá não havia capela (igreja), logo esses Sacramentos foram realizados à frente de uma residência.

Minha viagem à capital paulista em dezembro de 1974 foi um divisor de águas no que diz respeito a minha religiosidade.

No dia dessa viagem, dia que iria cortar meu cordão umbilical existencial com a família (emancipar-me), meu pai me entregou alguns papeizinhos com orações transcritas por ele mesmo, exortando-me a rezá-las, cada uma de acordo com um determinado momento. Segundo ele, se eu seguisse seus conselhos – em relação as orações e ao meu comportamento pessoal e social – eu jamais teria problemas graves ao longo de minha permanência, não somente naquela cidade, mas por toda minha vida. Obedeci, literalmente, o que ele me disse. Nos doze anos que ali residi, o que ele falou cumpriu-se. Passei por situações limites, isso faz parte da vida, mas livrei-me de tudo. Ainda hoje tenho e rezo essas orações.

Foram doze anos pausa na prática comunitária da fé. Passei muitas vezes à frente de algumas Igrejas, particularmente a Catedral da Sé, mas entrava, rezava um pouco e saía. Minha prática de fé limitou-se as essas visitas relâmpagos às igrejas e as devoções/orações diárias, incluindo as que me pai me presenteou ao sair de casa.

Tudo que quis fazer, fiz! Porém, a religiosidade fruto da educação cristã, que recebi de meus pais me fustigava constantemente, como que a me provocar, instigar para o sagrado. Foi nessa época que aflorou mais forte a vocação sacerdotal. Procurava afastar de mim esse pensamento a todo custo. Acrescentei às petições que fazia ao rezar, que me mostrasse qualquer outro caminho, menos o sacerdócio. Não me achava competente para tal vocação. A timidez, a falta de confiança em minha capacidade de falar em público. O sentimento religioso me incomodava. Amava a igreja, mas não admitia entrar nela de uma forma tão radical como a vocação me fustigava.

Foi quando, finalmente, em 1986, resolvi jogar tudo para o alto, quebrar a pausa que fiz ao deixar Santana do Ipanema em 1974 e retomar minha caminhada comunitária de fé.

Resultado disso, hoje sou Padre e me sinto muitíssimo bem. Entendi que era isso que Deus queria de mim.

Enigmas da vida!!!

[Pe. José Neto de França]

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