Trapiazeiro

Maria Lúcia Nobre dos Santos

TRAPIAZEIRO Lúcia Nobre


Era uma vez um grande e belo trapiazeiro de flores amarelas que sombreavam, com carinho, a bela casa das Lagoas. Trapiazeiro que parodiava o sol e encandeava a lua com sua beleza. Que maravilha poder ficar ali saboreando minha família. Meu avô, minha avó, minhas tias, meus tios, minhas primas e meus primos brincavam de ler. Cada um era leitor e também ouvinte, pois todos participavam da brincadeira.
Ali, naquela sombra tranquila, curtíamos belos momentos de felicidade. E parece que adivinhávamos que tudo aquilo não era para sempre. Ou melhor, nem pensávamos nisso. Tudo se vivia de maneira natural e o tempo era tão pouco, pois só acontecia nos domingos. Morávamos cada um em seu lugar e só nos encontrávamos nesse dia. Nossos avós sabiam que domingo era o dia da visita de todos. Vindos de Santana do Ipanema, do Batatal, do Alto Bonito, do Olho D’água do Amaro. Com a alegria do reencontro, seríamos recebidos com carinho por nossos avós.
Quem chegava atrasado já encontrava todos sentados embaixo do trapiazeiro, lendo e comentando a Bíblia ou outros livros. As crianças brincavam, mas antes passavam por lá para também contribuir com sua parcela de leitura. Vovô Pedrinho, vovó Angelina, sábios em amor para dar. Jamais esquecerei seus ensinamentos que marcaram minha existência. Tenho certeza de que toda felicidade que sinto em minha alma é o resultado do amor que deles recebi.
Alguém pode achar que pais e avós devem educar severamente. Tenho a prova do contrário. Nossos avós tratavam todos amorosamente. O que muito me chamava atenção era a maneira dos tios conversarem com os sobrinhos. Havia um respeito recíproco. Uma admiração mútua. Lembro que tia Júlia gostava de me consultar sobre alguma música ou pedir para olhar alguma palavra desconhecida no dicionário. Assim como eu recebia com bom grado os ensinamentos de minha avó. Ela não aconselhava, contava casos com mensagens para cada situação. Eu entendia e amava.
Benildo, meu primo, conta que os adultos gostavam de sua leitura e que era sempre um leitor constante nas reuniões da família, quase sempre embaixo do trapiazeiro, em domingos de sol, lá nas Lagoas. Saudades, muitas saudades, saudavelmente, pois só temos que agradecer os nossos felizes momentos que nos marcaram, positivamente, para sempre. Benedito, anjo querido, foi cedo e deixou muita ternura em meu coração. Costumo lembrar você como o bendito que veio em nome da paz e do amor.
As crianças amavam os fins de semana em que estavam com a família das Lagoas do João Gomes. Vovô aparentava ser um senhor sisudo e severo. Na verdade, em sua época, os senhores avôs, em sua maioria, causavam até temor. Bigodes longos, vestidos seriamente, fala firme e autoritária. Ali nas Lagoas, entre avós, tios e primos, tínhamos a liberdade de sermos felizes. Fazíamos fila para sermos abençoados. Depois da bênção, livres e soltos.
Hoje, entre ruínas e recordações, bailam as lembranças do trapiazeiro abandonado. Esse que ofereceu sua sombra, o conforto da família reunida. Remorso inflama nossa alma ao sentir que o abandonamos quando ainda estava viçoso. Então, trapiazeiro, por que foi nos deixar partir para nunca mais voltar? Partimos para mundos distantes, enquanto ele morria pouco a pouco do mal da saudade. O seu consolo era saber que fora amado pelos familiares que o viram nascer, crescer e viver por muitos anos. Os iniciadores da família que cresceu, evoluiu e valorizou uma vida harmônica, vieram de Pernambuco, logo que se uniram em nome do amor. Pedro Pacífico e Angelina Amélia, jovens, ainda, resolveram construir suas vidas juntos. E o lugar escolhido foi Alagoas. A região campestre do Estado recebia, afetuosamente, aqueles que desejavam construir uma nova vida.
Assim aconteceu. Pedro descendia de uma família de agricultores, lidava muito bem no trato com a lavoura. Desde cedo, adquiriu experiências e as levou na bagagem, de mãos dadas com sonhos e ideais. Embora jovem, passava o aprendizado que assimilara dos antepassados. Quando acontecia a falta d’água e, consequentemente, a seca, encontravam saídas práticas. Em época de chuva, acumulavam água em açudes que construíam. Armazenavam a lavoura colhida depois de separada para o consumo e para o comércio. Se acontecesse a falta de chuva, não havia problema para as famílias do sítio e para as que chegavam pedindo ajuda.
Tanto Pedro como Angelina construíram sonhos idealizados. Ele na agricultura e ela com sua escola. Professora, muito bem exerceu essa profissão. A princípio, a família da noiva fora contra o casamento dos dois. Ele, um agricultor, homem da roça, um trabalhador enfrentando grandes dificuldades em um sertão árido e sem nenhuma estrutura. Ela, uma professora que estudou na cidade, poderia sonhar uma vida mais amena. O pai, um fazendeiro, a mãe, dona de casa, desejava à filha uma existência menos agressiva. Angelina poderia continuar os estudos na cidade. Nenhum argumento fez a jovem desistir de seu propósito. Tinha se formado professora e sua vontade poderia se concretizar.
Nas Lagoas do João Gomes, faltava uma escola para as crianças ali residentes. Com ajuda do irmão de Pedro e esposa, foi construída uma escola para as crianças da região. Mesmo em terras íngremes, trabalhava-se com planejamento e tudo se multiplicava. Depois da escola instalada ao lado da residência que construíram, não faltaram crianças das regiões vizinhas. Angelina tornou-se uma professora querida. Ainda hoje, em 2010, alguns alunos que sobreviveram ao tempo falam com carinho da professora. Os irmãos Pedro Pacifico e João Clímaco formaram uma comunidade. Em conjunto, realizavam interesses em comum. A escola de Angelina contribuiu para que as crianças dali fossem alicerçadas e continuassem seus estudos em Santana.
Pedro e Angelina enraizaram-se em terras campestres alagoanas. Um dos filhos, Sebastião Pacífico, depois de emancipar-se economicamente da família, resolveu unir-se à bela Helena. O jovem das Lagoas enamora-se da menina do Batatal e, em comum acordo, decidem construir residência na cidade de Santana. O casal, que veio do sítio em direção à cidade, trabalhou duro para confirmar o sustento dos dez descendentes. Dificuldades normais para as famílias. O casal dedicava-se à família e priorizava a educação dos filhos. Ofereceu condições de estudo a todos. Trabalhava em companhia dos filhos. Um amor que deu certo. União que se transformou na grande família que é hoje. Torna-se até difícil contar entre netos e bisnetos.
Com mania de revolução, eu não aceitava as normas do ensino vigente. Insistia em não decorar as lições. Daí as reprovações no ginasial. Enquanto colegas decoravam grandes textos de geografia e história, eu pensava, pensava e não estudava a lição. Meu interesse se concentrava em português, matemática, francês... Os livros da Biblioteca Municipal da cidade não eram suficientes. Eu lia todos e queria outras leituras. Os emprestados pelos amigos completavam minha leitura. O professor Ernande Brandão foi o principal fornecedor de bons títulos. Sim, mas por que não estudava as tarefas da escola? Foi assim até entender o significado de um diploma para continuar os estudos. As palavras do conterrâneo Siloé Tavares contribuíram para mais um alerta: “vai ficar a vida inteira vendendo cafezinho?”.
Como filha mais velha, procurei conduzir meus irmãos a lugares que os levassem ao amor, à compreensão, sobretudo à dignidade. Todos trabalhavam com papai em horário diferente do colégio. Acordávamos bem cedo como era de costume. Cada um tomava o rumo que lhe era destinado. Já que não admitia o sistema escolar do ginasial, optei por trabalhar com a família em tempo integral. Nosso trabalho exigia-nos tempo. Preferia liberar meus irmãos para o estudo, enquanto ficava trabalhando em nosso “Bar Comercial” (restaurante).
Motivo de satisfação para os pais, presenciar o crescimento e a realização dos filhos como pessoas. Da união do casal, uma menina inquieta, queria modificar o mundo. Só não sabia como. Refletia sobre as palavras e desejava entender o seu sentido. Gostava de meditar, de ler, de cantar, de escrever e fazer versos imitando os clássicos. Ao ler versos de Camões, dedicou-se ao estudo da poesia.
Meu pai, apaixonado por leitura, reunia, em um fiteiro, livros de religião sobre a vida dos Santos e alguns títulos que lhe interessavam. Lendo-os, adquiri o bom gosto da leitura. Entre seus livros, assinava revistas da Editora Vozes de Petrópolis/RJ. Eu me comunicava com a editora das revistas e, por algum tempo, participei como colaboradora da coluna de jovens.
Chegou uma gráfica em Santana. Com euforia, dirigi-me a esta com alguns cadernos lotados de poesias. Saí dali decepcionada, o proprietário falou que não fazia aquele tipo de serviço. Mesmo pedindo que fizesse o orçamento, tirou-me de tempo e, com indelicadeza, repetiu o não. A ignorância do dono da gráfica não matou meus sonhos, atiçou a vontade de sair de Santana para realizá-los. Se nos ausentamos, alguns santanenses, foi para, mais tarde, contribuirmos com nossa parcela cultural, como fazemos agora. Estávamos ausentes fisicamente, mas ligados a todos os acontecimentos que engrandeciam nosso povo, nossa cidade.
Santana, cidade pacata, sem diversões. Havia o cinema, porém os filmes eram sempre reprisados. O que fazer? Trabalhar e, nas horas vagas, ler, ler... Nunca gostei de Carnaval, esse tempo era muito bom para ficar só. Enquanto todos saíam, a leitura ficava mais agradável. Não quero dizer que negligenciava os amigos. Sempre soube cativá-los e cultivá-los. Tendo meditado “O Pequeno Príncipe” na adolescência, acreditava que o amigo devia ser cativado e que o essencial era invisível aos olhos. Ajudou-me a compreender os vários temperamentos do ser humano. Olhando-o com o coração, não o julgando pela aparência. Saí de minha terra para cursar a Universidade. De primeira, passei no vestibular de Filosofia na UFAL. Deixei a família e os amigos e parti para novas conquistas. Ao inscrever-me para o vestibular, nem observei que não tinha onde morar em Maceió, mesmo assim, não podia desistir. Consegui vaga na Residência Universitária e passei no concurso para professora. Assim, sem grandes sacrifícios, obtive o título universitário.
Os comerciantes de Santana sempre promoviam oportunidades para os jovens que desejavam trabalhar. Como o Ginásio Santana funcionava também à noite, os jovens podiam cumprir horário de trabalho durante o dia. Meninos da cidade e dos sítios vizinhos procuravam papai na busca de uma vaga de emprego. Muitas vezes, ficavam conosco, adquiriam senso de responsabilidade e, com isso, eram chamados para trabalhar em lojas, padarias, bancos da cidade. Assim aconteceu com vários garotos, uns até saíram da cidade capazes de assumir responsabilidades maiores.
José Alves, menino ainda, fora levado pelo pai para conosco trabalhar. Na época, não havia lei que proibisse o trabalho infantil, no entanto, tínhamos consciência de que se tratava de um menor que precisava de ajuda. José cumpria sua função de aprendiz, assim como a de estudante que se preparava para a vida e ajudava a família, como desejava o pai. Na idade de trabalhar nas lojas da cidade, exerceu sua tarefa até ter condições de construir o seu próprio negócio. José Alves e seu irmão iniciaram em sua terra, partiram e se realizaram em cidades maiores. Sempre nos visitaram em férias e agradeciam os tempos em que conviveram com nossa família.
Riacho Camoxinga, sua ponte separa um bairro do outro. Todas as tardes, a casa da professora acolhia alguns jovens amantes da música. A belíssima residência de Dona Maroquita Bulhões, irmã do Padre Bulhões, fica no alto da ponte sobre o encontro do Riacho Camoxinga com o Rio Ipanema, local em que se abraçam, contendo uma água salobre. Leito quase sempre vazio, conformado por viver a maior parte de sua vida esperando receber o líquido precioso.
O casarão destacava-se por sua beleza e por sua arquitetura antiga. Grandes salas, quartos, alpendres, varandas, jardins, capela, cozinha vastíssima. A mais bela sala era a do piano, piso todo coberto por tapete vermelho, belíssimos quadros nas paredes. E não era a sala em que os alunos, os coristas, cada um em sua especialidade; soltavam suas vozes, eufóricos, durante os ensaios. As aulas aconteciam ao som do harmônio em outro ambiente. Na primeira, segunda, terceira e quarta voz, eram manifestadas as vozes desses jovens, o orgulho da maestrina. Recebiam noção de música, de canto e, sobretudo, de senso de responsabilidade. O coral só se apresentava em dias festivos, geralmente, era convidado a se apresentar.
Aquele casarão era curioso para todos. Quem não queria conhecê-lo? Os alunos, timidamente, só ficavam no lugar destinado aos ensaios até um dia em que a professora pediu a um dos sobrinhos, Demóstenes ou Crisóstenes, que mostrasse os lugares mais bonitos da casa aos alunos. Dona Maroquita tinha fama de austera, mas era a meiguice em pessoa quando os recebia. No fim da tarde, após os ensaios, eram servidos gostosos malcasados preparados por Bernadete, sobrinha da professora.
Por baixo da ponte, chegávamos ao casarão. Era mais interessante atravessar o riacho que, como o rio, passava com fraca correnteza. A água que passeava levemente molhava os pés dos jovens, dando-lhes a sensação de liberdade. E que liberdade! Jovens, felizes, cantores... “Quem canta seus males espanta”. Futuros cidadãos conscientes e responsáveis. Aprenderam, desde cedo, a unir o útil ao agradável. Cantavam e cumpriam horários, compromissos. Sabiam também romper tabus, desprezavam a ponte, molhavam os pés nas águas mansas e frias do riacho.
Os jovens eram selecionados por Dona Maroquita, que dizia a todos: “para fazer parte do grupo, terão de ser responsáveis, pontuais e assíduos, principalmente”. Outros jovens até tentavam participar do grupo, mas, pouco a pouco, se afastavam. Os que continuaram conquistaram a confiança da maestrina: João Neto, seresteiro nas noites de Santana, Madge, Renilde Silva, Lourdinha Azevedo, Lúcia Nobre... os frequentadores assíduos. Nas férias, sempre apareciam os que estudavam fora de Santana e participavam do nosso coral.
Santana do Ipanema atual está tentando se realizar por meio de filhos conscientes, o essencial para que seu povo caminhe dignamente e seus jovens adquiram o necessário para uma realização profissional. O ideal é que os estudantes da época atual não tenham que se deslocar para outra cidade a procura de um grau a mais em sua vida escolar. Os santanenses unidos não negligenciam a conquista desse objetivo. Não é de agora que afastam as pedras que tentam impedir conquistas e realizações. Acredita-se que, se cada um oferecer sua contribuição, tudo será cumprido.
Entre os santanenses, surgiram poetas e mais sertanejos poetas para confirmar as palavras do escritor mineiro João Guimarães Rosa, que diz: “para ser um bom poeta é preciso provir do sertão”. E diz ainda mais: “Goethe é um sertanejo, entende a alma humana”. Aqui entre nós, em nosso querido torrão, o que nos encanta é a nossa Santana dos nossos amores, onde nos deleitamos À sombra do umbuzeiro, com nossos casos e loas, contados e cantados por nossos poetas. O importante é que cada um tem o seu pé de serra para poetizar.
Cada um tem sua história para contar e até chorar. Todos têm suas veredas: caminhos e riachinhos, ribeiras e ribeirinhas, para deles recordar. Lembrando que, em nosso sertão, veredas são caminhos e, no sertão de Minas Gerais, veredas são riachinhos. Mas, se tudo é sertão, todos os caminhos nos levam ao amor à terra querida e ao nosso povo.
Os poetas, os escritores santanenses, valorizam recordar os fatos acontecidos no passado, sejam engraçados ou não. É o perpetuar da cultura. Mais uma contribuição para nosso patrimônio cultural, o poetizar dos fatos guardados na memória do santanense.





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