real ou imaginário

Maria Lúcia Nobre dos Santos

REAL OU IMAGINÁRIO
Guimarães Rosa, o sertão e a água.
Lúcia Nobre

Caminha-se com a imaginação e faz-se da prosa uma melodia quando se quer cantar sua raiz. Nascer no sertão é embrenhar-se em sua alma rústica que precisa ser lapidada e amada. Cada um nasce com sua marca de nascença. E o sertanejo já é marcado com um sentimento de amor à sua querida terra. O sertanejo fala com a alma, vive ou viveu em um mundo que é seu e dos seus. Se não fosse assim, ficaria sem sentido o amor que temos a nossa querida Santana do Rio Ipanema de Alagoas, cidade que se torna mágica de tão real. O que vivemos em nossa infância ou em toda vida motivam lembranças, alimentando saudades. Chãos secos, pedregulhos machucando nossos pés, lábios ressecados de sede, poeira em redemoinho, em tardes solitárias nas estradas e nas ruas; ou, chuvas, trovoadas, cheiro de terra molhada, meninas e meninos alegres tomavam banho nas bicas das casas, em ruas de minha cidade; mulheres nas calçadas saudavam vizinhas pela água que caia nas cisternas.
Real ou imaginário é o sertão poetizado pelo escritor mineiro João Guimarães Rosa. Um sertão igual no desigual. Sertão que todos conhecem e desconhecem. Um viver sem perceber que não se vive. Viver assustado quando se tem inimigos. O homem, a fome e a sede fazem o viver muito “dificultoso”. Em Guimarães Rosa, o sertão ganha experiência estética universal. É a cultura viva, representa figuras comuns: as pessoas que carecem das mesmas necessidades. O desejo de um sertão com água faz com que tenhamos em comum o Rio São Francisco. Bebemos de sua água. O escritor queria ser um crocodilo para habitar no rio São Francisco. “Só o crocodilo pode encontrar a felicidade e mais importante conservar para si a felicidade” (ROSA, 1994, p. 37).
Cada um tem um rio em sua vida. Rio para toda vida, rio passageiro, rio que permanece, rio que vira riachinho e depois vai embora, como na história de (“Manuelzão e Miguilim”, 549). Para o sertanejo, o rio com água é música para o ouvido. Quando falta, é como se silenciasse a sinfonia. Aí, adeus concerto. Em uma cidadezinha, todos estavam acostumados a dormir ao som da toada do rio. Certa noite, aconteceu uma tragédia. O rio secou e todos sentiram falta de sua sonoridade musical. Acordaram e foram à procura do que não mais existia.
De certo, uma tragédia. A comunidade amanheceu aflita. Estaria em qual lugar o riachinho que fazia parte de sua vida. Queria ver o ser do riachinho, para água de verdade e ele se fora. Antes de o riachinho sumir, a água dali corria fria. E os sapos cantavam da boca da noite à meia noite: “a água só!... água só!... água só!...” (“Manuelzão e Miguilim”, p. 574).
Todo sertanejo que vive ou viveu em seu torrão sente saudade do rio ou do riachinho que faz barulho e se torna música para os ouvidos sensíveis. Qual o santanense que não se alegra quando o nosso rio Ipanema canta sua música? Quem não corre para vê-lo transbordando ou já se manifestando de tamanha beleza? O barulho das águas mistura-se ao vai-e-vem das pessoas que se dirigem ao espetáculo. Adultos e crianças, com a mesma euforia, comemoram. Santanenses bebem do mesmo rio. Saboreiam sua água salobra e se tornam amantes fervorosos de sua terra natal.
Guimarães Rosa ama a eternidade dos rios, para ele, os rios são profundos como a alma do homem. Enfim, ama a natureza das águas.


O Caboclo d’água

No lombo de pedra da cachoeira clara
as águas ensaboam
antes de saltar.
E lá em baixo, piratingas, pacus e dourados
dão pulos de prata, de ouro e de cobre,
querendo voltar, com medo do poço
da quarta volta do rio,
largo, tranquilo, tão chato e brilhante,
deitado a meio bote
como uma boipeva branca.
(Magma, 1997, p. 92)

Os poetas tanto devaneiam, brincam com a imaginação, confundem o leitor que se pergunta: real ou imaginário? Não importa. O que conta é a paixão que os poetas levam com eles, o tempo todo. São pessoas comuns quando trabalham, amam, convivem na sociedade, dedicam-se à família, mas a alma poética está ali, entranhada para sempre. Sem falar que eles não morrem, se encantam. Conheço muitos poetas, eles são puros, querem é que leiam seus poemas. Aqui em Maceió, sempre os encontro no shopping exibindo um novo poema. Eles sabem amenizar a vida. Às vezes, se está apressado ou até estressado, lá está Dr. Emanoel Fay, autor de Mumbaça Canto Livre (2001) e outros títulos poéticos, sentado, tomando um café, e o convida para sentar e ouvir o seu verso. Claro, que o tempo do ouvinte não foi perdido. Com certeza, revigorou-se. Em Santana, no Portal Maltanet (www.maltanet.com.br), temos um mural de recados. Tanto para assuntos sérios do interesse da cidade, como para os conterrâneos se comunicarem. Sempre que há um assunto mais tenso, Remi, o poeta, ameniza e brinca de poesia. O poeta santanense (REMI BASTOS, 2010) sempre presenteia a querida terra com sua feliz poética, sublima o

Riacho Camoxinga:

Lá vem o velho riacho
descendo de água abaixo,
fazendo carneirinho
no caminho por onde passa,
as crianças acham graça
e se divertem pra valer
mergulhando no riacho
sem dele nada temer.
Corre corre Camoxinga
até a ponte do Padre,
desperta o teu velho lema
mostra a tua vaidade,
e lança as tuas águas
no leito do Ipanema.

O escritor Guimarães Rosa enaltece sua terra, sua gente e a água como prioridades. Ama o sertão e se julga um sertanejo. O leitor passa a conviver junto com o narrador as belezas contidas nesse sertão, não o descreve, vive-o. Para Miguilim, personagem criança, lugar bonito é aquele que chove.

É um lugar bonito, entre morro e morro,
Com muita pedreira e muito mato,
Distante de qualquer parte; e lá chove sempre...
(“Manuelzão e Miguilim”, p.465).

Diz (LUCAS, 12.22) que os lírios do campo não fiam, nem tecem, mas se vestem de tão grande beleza. Para isso, (João 4-5.10) nos fala da chuva, aquela que faz brotar e fortalecer os lírios do campo: “espalha-se a chuva sobre a terra e derrama as águas sobre os campos”. E é sempre assim, tudo se volta ao evento mais importante para o sertanejo. A água, a que vem da chuva. E os vaqueiros param pra aclamar a chuva que se apressa. “−Espera, olha a chuva descendo do morro. Eh, água do céu para cheirar gostoso, cheiro de novidade!... É da fina...” (“O burrinho pedrês”, p. 41). “O burrinho pedrês” de Sagarana narra a história de um burro velho que não tem nenhum valor como burro. Nenhum vaqueiro quis levá-lo para conduzir a boiada. Cada um escolheu o melhor cavalo. Ninguém contava com a terrível enchente do rio que derrubou todos. Muitos morreram afogados. O ocupante do burrinho pedrês foi um dos que se salvou. Os cavaleiros que levavam a boiada acomodaram-se em um lugar seguro. Esperavam a chuva passar. Entre eles, a chuva é motivo para cantar. −Ei, gente, o pé- d’água! − Canta, gente! (p.41). A chuva soltou-se e os vaqueiros cantaram juntos:

Chove, chuva, choverá.
Santa Clara a clarear
Santa Justa há de justar
Santo Antônio manda o sol
P’ra enxugar o meu lençol...
(“Op.cit.”, p.41).

É costume de a cultura sertaneja reunirem-se para cantar. Nas horas tristes e nas horas alegres, cantam. Cantam aos pássaros, às águas, aos animais. Cantam quando chove para demonstrar alegria e cantam na seca para pedir chuva aos deuses. Todos tristes, com saudades, bem na hora em que o sol estava sumindo, ouviam o pretinho que os acompanhava, entoando uma cantiga muito triste que a todos fez chorar. “Que cantiga mais triste de bonita!...”. (p. 69). A voz do pretinho que cantava quase chorando e encantava os vaqueiros traduz a simplicidade daqueles que, emocionados, vivem com o menino choroso momentos mágicos; chegam até a acreditar que a força do canto arrebatou o gado, porque “era assim uma cantiga sorumbática, desfeliz que nem saudade em coração de gente ruim... mas linda, linda, linda, como uma alegria judiada, que ficou triste de repente” (p.69).

...Ninguém de mim
Ninguém de mim
Tem compaixão... (p.69).

Os vaqueiros, junto com a boiada, entoam suas tristezas, marcando a presença da poesia na vida desse povo que precisa dela como bálsamo e alento nas horas mais difíceis. “E o berro queixoso do gado Junqueira, de chifres imensos, com muita tristeza, saudade dos campos, querência dos pastos de lá do sertão...”. (p. 37).
A narrativa poética do escritor mineiro lembra Orfeu que a todos seduzia com sua música e sua poesia. O mito grego comunicava a Grécia com o seu canto. A narrativa roseana faz com que o leitor viva junto com as personagens os momentos tristes e os alegres. Em suas prosas entremeadas de versos, sua voz entoa como o sopro de Javé que cria o universo como engendra Cristo. As personagens Lélio e Lina aclamam a água e o pássaro cantando:

Buriti, rei da vereda, de crescer envelheceu:
Quer ser chão nas altas nuvens,
E a água azul que tem no céu...

Buriti beirando a água, eu beirando
O não sei quê: quando choro, lavo mágoa,
Canto é secando sofrer
(“A estória de Lélio e Lina”, p. 749).

Lélio estava cansado da vida que levava nas fazendas. Resolveu mudar e partiu para uma nova vida. Talvez novos amores, novas amizades. Sua chegada estava sendo preparada na nova fazenda. O vaqueiro Lélio traz consigo o desejo de mudanças. A narrativa começa assim: “na entrada das águas, tempo de afã em toda fazenda- de - gado nos Gerais, um vaqueiro de fora chegou à do Pinhém (p.717). Nada melhor para o vaqueiro, como um bom presságio, ser recebido em uma tarde ameaçada pela chuva, que é prenuncio de felicidade. Tem ele, uma entrada triunfal. A chuva o recebeu como sinal de boas vindas.
A personagem Augusto Matraga de “A hora e vez de Augusto Matraga” do livro Sagarana, o viajor entre as veredas dos sertões, vê, nas estradas secas, um rio corrente. “Augusto Matraga ficou a contemplar, do alto, o caminho, belo como um rio” (p. 376). (CANDIDO, 1994, p.79) diz: “o meio físico tem para Guimarães Rosa uma realidade envolvente e bizzarra, servindo de quadro à concepção do mundo e de suporte ao universo inventado. Nele, a paisagem, rude e bela, é de um encanto extraordinário”.
Ressalta-se o belo das coisas do sertão aos olhos do sertanejo, assim, ele as engrandece. A simplicidade de uma paisagem, o pouso de um pássaro na plantação, tudo isso poderá oferecer ao homem simples do campo certo deleite. A natureza faz parte do seu mundo. Percebe-se na narrativa roseana que a paisagem rude e bela é de um encanto extraordinário, tanto que poesia e prosa confundem-se. O leitor também se deixa levar e passeia em caminhos áridos e em terras inférteis, imaginando o transcorrer de águas.
Será que o rio, substituindo a poeira, é um desejo do escritor de ver o sertão irrigado? O professor Xidieh, ao estudar suas histórias, vê, naquelas narrativas, sobretudo, a percepção da substância unitária do todo: homens, animais, plantas, coisas, a infinita possibilidade de metamorfose do que existe. Essa possibilidade de metamorfose, não se há de estranhar o desejo de modificação, quando se trata do escritor Guimarães Rosa. De um sertão seco, consegue extrair o belo das paisagens. Travestido de Matraga, “se extasiou com as pinturas do poente, com os três coqueiros subindo da linha da montanha para se recortarem num fundo alaranjado, onde, na descida, muitas nuvens pegam fogo” (p. 376). Comprova-se, nitidamente, como a arte, no caso, a literatura, envolve-se com os aspectos culturais. Pode levar ao leitor um sentimento de amor à natureza.
Augusto Matraga, um errado diante da sociedade que vivia. Reprovado por todos, abandonado pela família, jurado de morte por aqueles que foram por ele violados. Depois de perder tudo, ao levar uma vida desregrada, procura o caminho que o leve à redenção. Ele é ora bandido, ora herói, ora vítima social. Acredita na punição dos pecados e que o sofrimento representa o fogo do inferno. Sai pelas estradas, vai procurar uma maneira de agradar a Deus, tem que chegar ao céu, e, para isso, vai sacrificar-se, trabalhar, rezar e deixar de fazer o mal. ”Eu vou p’ra o céu, eu vou mesmo, por bem ou por mal!... E a minha vez há de chegar... p’ra o céu eu vou, nem que seja a porrete!...” (“HvAM” p. 361). Depois de trabalhar bastante, muito rezar, deixar de praticar o mal, torna-se um novo homem, observa a natureza:

E viu voar, do mulungu, vermelho, um tié-piranga,
ainda mais vermelho - e o tié-piranga pousou num
ramo do barbatimão sem flores, e Nhô Augusto sentiu
que o barbatimão todo se alegrava, porque tinha agora
um ramo que era de mulungu (“HvAM” p. 376).

Matraga não pensa em abandonar sua terra. Nela existem belezas. O narrador instiga a se ver as belezas dos sertões; esta beleza percebida e enaltecida pelo sertanejo. Ao expor o particular de sua cultura, aponta para o universal de outras culturas. Guimarães Rosa escreve a partir de um conhecimento cultural geográfico da realidade que ele, depois, transfigura. Sua prosa intercalada de poesia teve origem na literatura oral; nesses versos são revitalizados os anseios, gostos e desgostos do povo. “A história da poesia oral não poderia ignorar esse aspecto do real” (ZUMTHOR, p.280). Para o crítico, a palavra dita, a palavra cantada pelos poetas antigos, é celebração; a transmissão do saber; não é diferente, nos nossos dias, da palavra difundida pela mídia; a palavra televisada.
Caminhar na imaginação e cantar sua raiz é próprio do poeta. Em Santana do Ipanema não é diferente. Em uma serena tarde de outono, os moradores recolhiam-se ameaçados pela chuva. Aos olhos do poeta, não passava despercebida a beleza que oferecia a paisagem. Avenida molhada, vários coqueiros a ornamentar, o arco-íris oferecia seu colorido mágico e harmonizava todo encanto do momento. O poeta desbravador do momento registrava e entendia que tudo aquilo tinha que ser poetizado. Aquela realidade seria transformada em magia. Eis a realidade mágica do nosso sertão. A chuva, a água, a paisagem bela e a arte do poeta para marcar o momento.

Água da serra

Águas que correm,
claras,
do escuro dos morros,
cantando nas pedras a canção do mais – adiante,
vivendo no lodo a verdade do sempre – descendo...
Águas soltas entre os dedos da montanha,
noite e dia,
na fluência eterna do ímpeto da vida...
Qual terá sido a hora da vossa fuga,
quando as formas e as vidas se desprenderam
das mãos de Deus,
talvez enquanto o próprio deus dormia? ...
(Magma, p, 15).

REFERÊNCIAS

ROSA, João Guimarães. Ficção Completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994.
ROSA, João Guimarães. Sagarana. 31 edição. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1984.
ROSA, João Guimarães. Magma. 2ₐ impressão. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997.
ZUMTHOR, Paul. Introdução à poesia oral. Tradução de Jerusa Pires Ferreira, Maria Lúcia Diniz Pochá e Maria Inês de Almeida. São Paulo: Hucitec, 1997.











REAL OU IMAGINÁRIO
Guimarães Rosa, o sertão e a água.
Lúcia Nobre

Caminha-se com a imaginação e faz-se da prosa uma melodia quando se quer cantar sua raiz. Nascer no sertão é embrenhar-se em sua alma rústica que precisa ser lapidada e amada. Cada um nasce com sua marca de nascença. E o sertanejo já é marcado com um sentimento de amor à sua querida terra. O sertanejo fala com a alma, vive ou viveu em um mundo que é seu e dos seus. Se não fosse assim, ficaria sem sentido o amor que temos a nossa querida Santana do Rio Ipanema de Alagoas, cidade que se torna mágica de tão real. O que vivemos em nossa infância ou em toda vida motivam lembranças, alimentando saudades. Chãos secos, pedregulhos machucando nossos pés, lábios ressecados de sede, poeira em redemoinho, em tardes solitárias nas estradas e nas ruas; ou, chuvas, trovoadas, cheiro de terra molhada, meninas e meninos alegres tomavam banho nas bicas das casas, em ruas de minha cidade; mulheres nas calçadas saudavam vizinhas pela água que caia nas cisternas.
Real ou imaginário é o sertão poetizado pelo escritor mineiro João Guimarães Rosa. Um sertão igual no desigual. Sertão que todos conhecem e desconhecem. Um viver sem perceber que não se vive. Viver assustado quando se tem inimigos. O homem, a fome e a sede fazem o viver muito “dificultoso”. Em Guimarães Rosa, o sertão ganha experiência estética universal. É a cultura viva, representa figuras comuns: as pessoas que carecem das mesmas necessidades. O desejo de um sertão com água faz com que tenhamos em comum o Rio São Francisco. Bebemos de sua água. O escritor queria ser um crocodilo para habitar no rio São Francisco. “Só o crocodilo pode encontrar a felicidade e mais importante conservar para si a felicidade” (ROSA, 1994, p. 37).
Cada um tem um rio em sua vida. Rio para toda vida, rio passageiro, rio que permanece, rio que vira riachinho e depois vai embora, como na história de (“Manuelzão e Miguilim”, 549). Para o sertanejo, o rio com água é música para o ouvido. Quando falta, é como se silenciasse a sinfonia. Aí, adeus concerto. Em uma cidadezinha, todos estavam acostumados a dormir ao som da toada do rio. Certa noite, aconteceu uma tragédia. O rio secou e todos sentiram falta de sua sonoridade musical. Acordaram e foram à procura do que não mais existia.
De certo, uma tragédia. A comunidade amanheceu aflita. Estaria em qual lugar o riachinho que fazia parte de sua vida. Queria ver o ser do riachinho, para água de verdade e ele se fora. Antes de o riachinho sumir, a água dali corria fria. E os sapos cantavam da boca da noite à meia noite: “a água só!... água só!... água só!...” (“Manuelzão e Miguilim”, p. 574).
Todo sertanejo que vive ou viveu em seu torrão sente saudade do rio ou do riachinho que faz barulho e se torna música para os ouvidos sensíveis. Qual o santanense que não se alegra quando o nosso rio Ipanema canta sua música? Quem não corre para vê-lo transbordando ou já se manifestando de tamanha beleza? O barulho das águas mistura-se ao vai-e-vem das pessoas que se dirigem ao espetáculo. Adultos e crianças, com a mesma euforia, comemoram. Santanenses bebem do mesmo rio. Saboreiam sua água salobra e se tornam amantes fervorosos de sua terra natal.
Guimarães Rosa ama a eternidade dos rios, para ele, os rios são profundos como a alma do homem. Enfim, ama a natureza das águas.


O Caboclo d’água

No lombo de pedra da cachoeira clara
as águas ensaboam
antes de saltar.
E lá em baixo, piratingas, pacus e dourados
dão pulos de prata, de ouro e de cobre,
querendo voltar, com medo do poço
da quarta volta do rio,
largo, tranquilo, tão chato e brilhante,
deitado a meio bote
como uma boipeva branca.
(Magma, 1997, p. 92)

Os poetas tanto devaneiam, brincam com a imaginação, confundem o leitor que se pergunta: real ou imaginário? Não importa. O que conta é a paixão que os poetas levam com eles, o tempo todo. São pessoas comuns quando trabalham, amam, convivem na sociedade, dedicam-se à família, mas a alma poética está ali, entranhada para sempre. Sem falar que eles não morrem, se encantam. Conheço muitos poetas, eles são puros, querem é que leiam seus poemas. Aqui em Maceió, sempre os encontro no shopping exibindo um novo poema. Eles sabem amenizar a vida. Às vezes, se está apressado ou até estressado, lá está Dr. Emanoel Fay, autor de Mumbaça Canto Livre (2001) e outros títulos poéticos, sentado, tomando um café, e o convida para sentar e ouvir o seu verso. Claro, que o tempo do ouvinte não foi perdido. Com certeza, revigorou-se. Em Santana, no Portal Maltanet (www.maltanet.com.br), temos um mural de recados. Tanto para assuntos sérios do interesse da cidade, como para os conterrâneos se comunicarem. Sempre que há um assunto mais tenso, Remi, o poeta, ameniza e brinca de poesia. O poeta santanense (REMI BASTOS, 2010) sempre presenteia a querida terra com sua feliz poética, sublima o

Riacho Camoxinga:

Lá vem o velho riacho
descendo de água abaixo,
fazendo carneirinho
no caminho por onde passa,
as crianças acham graça
e se divertem pra valer
mergulhando no riacho
sem dele nada temer.
Corre corre Camoxinga
até a ponte do Padre,
desperta o teu velho lema
mostra a tua vaidade,
e lança as tuas águas
no leito do Ipanema.

O escritor Guimarães Rosa enaltece sua terra, sua gente e a água como prioridades. Ama o sertão e se julga um sertanejo. O leitor passa a conviver junto com o narrador as belezas contidas nesse sertão, não o descreve, vive-o. Para Miguilim, personagem criança, lugar bonito é aquele que chove.

É um lugar bonito, entre morro e morro,
Com muita pedreira e muito mato,
Distante de qualquer parte; e lá chove sempre...
(“Manuelzão e Miguilim”, p.465).

Diz (LUCAS, 12.22) que os lírios do campo não fiam, nem tecem, mas se vestem de tão grande beleza. Para isso, (João 4-5.10) nos fala da chuva, aquela que faz brotar e fortalecer os lírios do campo: “espalha-se a chuva sobre a terra e derrama as águas sobre os campos”. E é sempre assim, tudo se volta ao evento mais importante para o sertanejo. A água, a que vem da chuva. E os vaqueiros param pra aclamar a chuva que se apressa. “−Espera, olha a chuva descendo do morro. Eh, água do céu para cheirar gostoso, cheiro de novidade!... É da fina...” (“O burrinho pedrês”, p. 41). “O burrinho pedrês” de Sagarana narra a história de um burro velho que não tem nenhum valor como burro. Nenhum vaqueiro quis levá-lo para conduzir a boiada. Cada um escolheu o melhor cavalo. Ninguém contava com a terrível enchente do rio que derrubou todos. Muitos morreram afogados. O ocupante do burrinho pedrês foi um dos que se salvou. Os cavaleiros que levavam a boiada acomodaram-se em um lugar seguro. Esperavam a chuva passar. Entre eles, a chuva é motivo para cantar. −Ei, gente, o pé- d’água! − Canta, gente! (p.41). A chuva soltou-se e os vaqueiros cantaram juntos:

Chove, chuva, choverá.
Santa Clara a clarear
Santa Justa há de justar
Santo Antônio manda o sol
P’ra enxugar o meu lençol...
(“Op.cit.”, p.41).

É costume de a cultura sertaneja reunirem-se para cantar. Nas horas tristes e nas horas alegres, cantam. Cantam aos pássaros, às águas, aos animais. Cantam quando chove para demonstrar alegria e cantam na seca para pedir chuva aos deuses. Todos tristes, com saudades, bem na hora em que o sol estava sumindo, ouviam o pretinho que os acompanhava, entoando uma cantiga muito triste que a todos fez chorar. “Que cantiga mais triste de bonita!...”. (p. 69). A voz do pretinho que cantava quase chorando e encantava os vaqueiros traduz a simplicidade daqueles que, emocionados, vivem com o menino choroso momentos mágicos; chegam até a acreditar que a força do canto arrebatou o gado, porque “era assim uma cantiga sorumbática, desfeliz que nem saudade em coração de gente ruim... mas linda, linda, linda, como uma alegria judiada, que ficou triste de repente” (p.69).

...Ninguém de mim
Ninguém de mim
Tem compaixão... (p.69).

Os vaqueiros, junto com a boiada, entoam suas tristezas, marcando a presença da poesia na vida desse povo que precisa dela como bálsamo e alento nas horas mais difíceis. “E o berro queixoso do gado Junqueira, de chifres imensos, com muita tristeza, saudade dos campos, querência dos pastos de lá do sertão...”. (p. 37).
A narrativa poética do escritor mineiro lembra Orfeu que a todos seduzia com sua música e sua poesia. O mito grego comunicava a Grécia com o seu canto. A narrativa roseana faz com que o leitor viva junto com as personagens os momentos tristes e os alegres. Em suas prosas entremeadas de versos, sua voz entoa como o sopro de Javé que cria o universo como engendra Cristo. As personagens Lélio e Lina aclamam a água e o pássaro cantando:

Buriti, rei da vereda, de crescer envelheceu:
Quer ser chão nas altas nuvens,
E a água azul que tem no céu...

Buriti beirando a água, eu beirando
O não sei quê: quando choro, lavo mágoa,
Canto é secando sofrer
(“A estória de Lélio e Lina”, p. 749).

Lélio estava cansado da vida que levava nas fazendas. Resolveu mudar e partiu para uma nova vida. Talvez novos amores, novas amizades. Sua chegada estava sendo preparada na nova fazenda. O vaqueiro Lélio traz consigo o desejo de mudanças. A narrativa começa assim: “na entrada das águas, tempo de afã em toda fazenda- de - gado nos Gerais, um vaqueiro de fora chegou à do Pinhém (p.717). Nada melhor para o vaqueiro, como um bom presságio, ser recebido em uma tarde ameaçada pela chuva, que é prenuncio de felicidade. Tem ele, uma entrada triunfal. A chuva o recebeu como sinal de boas vindas.
A personagem Augusto Matraga de “A hora e vez de Augusto Matraga” do livro Sagarana, o viajor entre as veredas dos sertões, vê, nas estradas secas, um rio corrente. “Augusto Matraga ficou a contemplar, do alto, o caminho, belo como um rio” (p. 376). (CANDIDO, 1994, p.79) diz: “o meio físico tem para Guimarães Rosa uma realidade envolvente e bizzarra, servindo de quadro à concepção do mundo e de suporte ao universo inventado. Nele, a paisagem, rude e bela, é de um encanto extraordinário”.
Ressalta-se o belo das coisas do sertão aos olhos do sertanejo, assim, ele as engrandece. A simplicidade de uma paisagem, o pouso de um pássaro na plantação, tudo isso poderá oferecer ao homem simples do campo certo deleite. A natureza faz parte do seu mundo. Percebe-se na narrativa roseana que a paisagem rude e bela é de um encanto extraordinário, tanto que poesia e prosa confundem-se. O leitor também se deixa levar e passeia em caminhos áridos e em terras inférteis, imaginando o transcorrer de águas.
Será que o rio, substituindo a poeira, é um desejo do escritor de ver o sertão irrigado? O professor Xidieh, ao estudar suas histórias, vê, naquelas narrativas, sobretudo, a percepção da substância unitária do todo: homens, animais, plantas, coisas, a infinita possibilidade de metamorfose do que existe. Essa possibilidade de metamorfose, não se há de estranhar o desejo de modificação, quando se trata do escritor Guimarães Rosa. De um sertão seco, consegue extrair o belo das paisagens. Travestido de Matraga, “se extasiou com as pinturas do poente, com os três coqueiros subindo da linha da montanha para se recortarem num fundo alaranjado, onde, na descida, muitas nuvens pegam fogo” (p. 376). Comprova-se, nitidamente, como a arte, no caso, a literatura, envolve-se com os aspectos culturais. Pode levar ao leitor um sentimento de amor à natureza.
Augusto Matraga, um errado diante da sociedade que vivia. Reprovado por todos, abandonado pela família, jurado de morte por aqueles que foram por ele violados. Depois de perder tudo, ao levar uma vida desregrada, procura o caminho que o leve à redenção. Ele é ora bandido, ora herói, ora vítima social. Acredita na punição dos pecados e que o sofrimento representa o fogo do inferno. Sai pelas estradas, vai procurar uma maneira de agradar a Deus, tem que chegar ao céu, e, para isso, vai sacrificar-se, trabalhar, rezar e deixar de fazer o mal. ”Eu vou p’ra o céu, eu vou mesmo, por bem ou por mal!... E a minha vez há de chegar... p’ra o céu eu vou, nem que seja a porrete!...” (“HvAM” p. 361). Depois de trabalhar bastante, muito rezar, deixar de praticar o mal, torna-se um novo homem, observa a natureza:

E viu voar, do mulungu, vermelho, um tié-piranga,
ainda mais vermelho - e o tié-piranga pousou num
ramo do barbatimão sem flores, e Nhô Augusto sentiu
que o barbatimão todo se alegrava, porque tinha agora
um ramo que era de mulungu (“HvAM” p. 376).

Matraga não pensa em abandonar sua terra. Nela existem belezas. O narrador instiga a se ver as belezas dos sertões; esta beleza percebida e enaltecida pelo sertanejo. Ao expor o particular de sua cultura, aponta para o universal de outras culturas. Guimarães Rosa escreve a partir de um conhecimento cultural geográfico da realidade que ele, depois, transfigura. Sua prosa intercalada de poesia teve origem na literatura oral; nesses versos são revitalizados os anseios, gostos e desgostos do povo. “A história da poesia oral não poderia ignorar esse aspecto do real” (ZUMTHOR, p.280). Para o crítico, a palavra dita, a palavra cantada pelos poetas antigos, é celebração; a transmissão do saber; não é diferente, nos nossos dias, da palavra difundida pela mídia; a palavra televisada.
Caminhar na imaginação e cantar sua raiz é próprio do poeta. Em Santana do Ipanema não é diferente. Em uma serena tarde de outono, os moradores recolhiam-se ameaçados pela chuva. Aos olhos do poeta, não passava despercebida a beleza que oferecia a paisagem. Avenida molhada, vários coqueiros a ornamentar, o arco-íris oferecia seu colorido mágico e harmonizava todo encanto do momento. O poeta desbravador do momento registrava e entendia que tudo aquilo tinha que ser poetizado. Aquela realidade seria transformada em magia. Eis a realidade mágica do nosso sertão. A chuva, a água, a paisagem bela e a arte do poeta para marcar o momento.

Água da serra

Águas que correm,
claras,
do escuro dos morros,
cantando nas pedras a canção do mais – adiante,
vivendo no lodo a verdade do sempre – descendo...
Águas soltas entre os dedos da montanha,
noite e dia,
na fluência eterna do ímpeto da vida...
Qual terá sido a hora da vossa fuga,
quando as formas e as vidas se desprenderam
das mãos de Deus,
talvez enquanto o próprio deus dormia? ...
(Magma, p, 15).

REFERÊNCIAS

ROSA, João Guimarães. Ficção Completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994.
ROSA, João Guimarães. Sagarana. 31 edição. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1984.
ROSA, João Guimarães. Magma. 2ₐ impressão. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997.
ZUMTHOR, Paul. Introdução à poesia oral. Tradução de Jerusa Pires Ferreira, Maria Lúcia Diniz Pochá e Maria Inês de Almeida. São Paulo: Hucitec, 1997.











REAL OU IMAGINÁRIO
Guimarães Rosa, o sertão e a água.
Lúcia Nobre

Caminha-se com a imaginação e faz-se da prosa uma melodia quando se quer cantar sua raiz. Nascer no sertão é embrenhar-se em sua alma rústica que precisa ser lapidada e amada. Cada um nasce com sua marca de nascença. E o sertanejo já é marcado com um sentimento de amor à sua querida terra. O sertanejo fala com a alma, vive ou viveu em um mundo que é seu e dos seus. Se não fosse assim, ficaria sem sentido o amor que temos a nossa querida Santana do Rio Ipanema de Alagoas, cidade que se torna mágica de tão real. O que vivemos em nossa infância ou em toda vida motivam lembranças, alimentando saudades. Chãos secos, pedregulhos machucando nossos pés, lábios ressecados de sede, poeira em redemoinho, em tardes solitárias nas estradas e nas ruas; ou, chuvas, trovoadas, cheiro de terra molhada, meninas e meninos alegres tomavam banho nas bicas das casas, em ruas de minha cidade; mulheres nas calçadas saudavam vizinhas pela água que caia nas cisternas.
Real ou imaginário é o sertão poetizado pelo escritor mineiro João Guimarães Rosa. Um sertão igual no desigual. Sertão que todos conhecem e desconhecem. Um viver sem perceber que não se vive. Viver assustado quando se tem inimigos. O homem, a fome e a sede fazem o viver muito “dificultoso”. Em Guimarães Rosa, o sertão ganha experiência estética universal. É a cultura viva, representa figuras comuns: as pessoas que carecem das mesmas necessidades. O desejo de um sertão com água faz com que tenhamos em comum o Rio São Francisco. Bebemos de sua água. O escritor queria ser um crocodilo para habitar no rio São Francisco. “Só o crocodilo pode encontrar a felicidade e mais importante conservar para si a felicidade” (ROSA, 1994, p. 37).
Cada um tem um rio em sua vida. Rio para toda vida, rio passageiro, rio que permanece, rio que vira riachinho e depois vai embora, como na história de (“Manuelzão e Miguilim”, 549). Para o sertanejo, o rio com água é música para o ouvido. Quando falta, é como se silenciasse a sinfonia. Aí, adeus concerto. Em uma cidadezinha, todos estavam acostumados a dormir ao som da toada do rio. Certa noite, aconteceu uma tragédia. O rio secou e todos sentiram falta de sua sonoridade musical. Acordaram e foram à procura do que não mais existia.
De certo, uma tragédia. A comunidade amanheceu aflita. Estaria em qual lugar o riachinho que fazia parte de sua vida. Queria ver o ser do riachinho, para água de verdade e ele se fora. Antes de o riachinho sumir, a água dali corria fria. E os sapos cantavam da boca da noite à meia noite: “a água só!... água só!... água só!...” (“Manuelzão e Miguilim”, p. 574).
Todo sertanejo que vive ou viveu em seu torrão sente saudade do rio ou do riachinho que faz barulho e se torna música para os ouvidos sensíveis. Qual o santanense que não se alegra quando o nosso rio Ipanema canta sua música? Quem não corre para vê-lo transbordando ou já se manifestando de tamanha beleza? O barulho das águas mistura-se ao vai-e-vem das pessoas que se dirigem ao espetáculo. Adultos e crianças, com a mesma euforia, comemoram. Santanenses bebem do mesmo rio. Saboreiam sua água salobra e se tornam amantes fervorosos de sua terra natal.
Guimarães Rosa ama a eternidade dos rios, para ele, os rios são profundos como a alma do homem. Enfim, ama a natureza das águas.


O Caboclo d’água

No lombo de pedra da cachoeira clara
as águas ensaboam
antes de saltar.
E lá em baixo, piratingas, pacus e dourados
dão pulos de prata, de ouro e de cobre,
querendo voltar, com medo do poço
da quarta volta do rio,
largo, tranquilo, tão chato e brilhante,
deitado a meio bote
como uma boipeva branca.
(Magma, 1997, p. 92)

Os poetas tanto devaneiam, brincam com a imaginação, confundem o leitor que se pergunta: real ou imaginário? Não importa. O que conta é a paixão que os poetas levam com eles, o tempo todo. São pessoas comuns quando trabalham, amam, convivem na sociedade, dedicam-se à família, mas a alma poética está ali, entranhada para sempre. Sem falar que eles não morrem, se encantam. Conheço muitos poetas, eles são puros, querem é que leiam seus poemas. Aqui em Maceió, sempre os encontro no shopping exibindo um novo poema. Eles sabem amenizar a vida. Às vezes, se está apressado ou até estressado, lá está Dr. Emanoel Fay, autor de Mumbaça Canto Livre (2001) e outros títulos poéticos, sentado, tomando um café, e o convida para sentar e ouvir o seu verso. Claro, que o tempo do ouvinte não foi perdido. Com certeza, revigorou-se. Em Santana, no Portal Maltanet (www.maltanet.com.br), temos um mural de recados. Tanto para assuntos sérios do interesse da cidade, como para os conterrâneos se comunicarem. Sempre que há um assunto mais tenso, Remi, o poeta, ameniza e brinca de poesia. O poeta santanense (REMI BASTOS, 2010) sempre presenteia a querida terra com sua feliz poética, sublima o

Riacho Camoxinga:

Lá vem o velho riacho
descendo de água abaixo,
fazendo carneirinho
no caminho por onde passa,
as crianças acham graça
e se divertem pra valer
mergulhando no riacho
sem dele nada temer.
Corre corre Camoxinga
até a ponte do Padre,
desperta o teu velho lema
mostra a tua vaidade,
e lança as tuas águas
no leito do Ipanema.

O escritor Guimarães Rosa enaltece sua terra, sua gente e a água como prioridades. Ama o sertão e se julga um sertanejo. O leitor passa a conviver junto com o narrador as belezas contidas nesse sertão, não o descreve, vive-o. Para Miguilim, personagem criança, lugar bonito é aquele que chove.

É um lugar bonito, entre morro e morro,
Com muita pedreira e muito mato,
Distante de qualquer parte; e lá chove sempre...
(“Manuelzão e Miguilim”, p.465).

Diz (LUCAS, 12.22) que os lírios do campo não fiam, nem tecem, mas se vestem de tão grande beleza. Para isso, (João 4-5.10) nos fala da chuva, aquela que faz brotar e fortalecer os lírios do campo: “espalha-se a chuva sobre a terra e derrama as águas sobre os campos”. E é sempre assim, tudo se volta ao evento mais importante para o sertanejo. A água, a que vem da chuva. E os vaqueiros param pra aclamar a chuva que se apressa. “−Espera, olha a chuva descendo do morro. Eh, água do céu para cheirar gostoso, cheiro de novidade!... É da fina...” (“O burrinho pedrês”, p. 41). “O burrinho pedrês” de Sagarana narra a história de um burro velho que não tem nenhum valor como burro. Nenhum vaqueiro quis levá-lo para conduzir a boiada. Cada um escolheu o melhor cavalo. Ninguém contava com a terrível enchente do rio que derrubou todos. Muitos morreram afogados. O ocupante do burrinho pedrês foi um dos que se salvou. Os cavaleiros que levavam a boiada acomodaram-se em um lugar seguro. Esperavam a chuva passar. Entre eles, a chuva é motivo para cantar. −Ei, gente, o pé- d’água! − Canta, gente! (p.41). A chuva soltou-se e os vaqueiros cantaram juntos:

Chove, chuva, choverá.
Santa Clara a clarear
Santa Justa há de justar
Santo Antônio manda o sol
P’ra enxugar o meu lençol...
(“Op.cit.”, p.41).

É costume de a cultura sertaneja reunirem-se para cantar. Nas horas tristes e nas horas alegres, cantam. Cantam aos pássaros, às águas, aos animais. Cantam quando chove para demonstrar alegria e cantam na seca para pedir chuva aos deuses. Todos tristes, com saudades, bem na hora em que o sol estava sumindo, ouviam o pretinho que os acompanhava, entoando uma cantiga muito triste que a todos fez chorar. “Que cantiga mais triste de bonita!...”. (p. 69). A voz do pretinho que cantava quase chorando e encantava os vaqueiros traduz a simplicidade daqueles que, emocionados, vivem com o menino choroso momentos mágicos; chegam até a acreditar que a força do canto arrebatou o gado, porque “era assim uma cantiga sorumbática, desfeliz que nem saudade em coração de gente ruim... mas linda, linda, linda, como uma alegria judiada, que ficou triste de repente” (p.69).

...Ninguém de mim
Ninguém de mim
Tem compaixão... (p.69).

Os vaqueiros, junto com a boiada, entoam suas tristezas, marcando a presença da poesia na vida desse povo que precisa dela como bálsamo e alento nas horas mais difíceis. “E o berro queixoso do gado Junqueira, de chifres imensos, com muita tristeza, saudade dos campos, querência dos pastos de lá do sertão...”. (p. 37).
A narrativa poética do escritor mineiro lembra Orfeu que a todos seduzia com sua música e sua poesia. O mito grego comunicava a Grécia com o seu canto. A narrativa roseana faz com que o leitor viva junto com as personagens os momentos tristes e os alegres. Em suas prosas entremeadas de versos, sua voz entoa como o sopro de Javé que cria o universo como engendra Cristo. As personagens Lélio e Lina aclamam a água e o pássaro cantando:

Buriti, rei da vereda, de crescer envelheceu:
Quer ser chão nas altas nuvens,
E a água azul que tem no céu...

Buriti beirando a água, eu beirando
O não sei quê: quando choro, lavo mágoa,
Canto é secando sofrer
(“A estória de Lélio e Lina”, p. 749).

Lélio estava cansado da vida que levava nas fazendas. Resolveu mudar e partiu para uma nova vida. Talvez novos amores, novas amizades. Sua chegada estava sendo preparada na nova fazenda. O vaqueiro Lélio traz consigo o desejo de mudanças. A narrativa começa assim: “na entrada das águas, tempo de afã em toda fazenda- de - gado nos Gerais, um vaqueiro de fora chegou à do Pinhém (p.717). Nada melhor para o vaqueiro, como um bom presságio, ser recebido em uma tarde ameaçada pela chuva, que é prenuncio de felicidade. Tem ele, uma entrada triunfal. A chuva o recebeu como sinal de boas vindas.
A personagem Augusto Matraga de “A hora e vez de Augusto Matraga” do livro Sagarana, o viajor entre as veredas dos sertões, vê, nas estradas secas, um rio corrente. “Augusto Matraga ficou a contemplar, do alto, o caminho, belo como um rio” (p. 376). (CANDIDO, 1994, p.79) diz: “o meio físico tem para Guimarães Rosa uma realidade envolvente e bizzarra, servindo de quadro à concepção do mundo e de suporte ao universo inventado. Nele, a paisagem, rude e bela, é de um encanto extraordinário”.
Ressalta-se o belo das coisas do sertão aos olhos do sertanejo, assim, ele as engrandece. A simplicidade de uma paisagem, o pouso de um pássaro na plantação, tudo isso poderá oferecer ao homem simples do campo certo deleite. A natureza faz parte do seu mundo. Percebe-se na narrativa roseana que a paisagem rude e bela é de um encanto extraordinário, tanto que poesia e prosa confundem-se. O leitor também se deixa levar e passeia em caminhos áridos e em terras inférteis, imaginando o transcorrer de águas.
Será que o rio, substituindo a poeira, é um desejo do escritor de ver o sertão irrigado? O professor Xidieh, ao estudar suas histórias, vê, naquelas narrativas, sobretudo, a percepção da substância unitária do todo: homens, animais, plantas, coisas, a infinita possibilidade de metamorfose do que existe. Essa possibilidade de metamorfose, não se há de estranhar o desejo de modificação, quando se trata do escritor Guimarães Rosa. De um sertão seco, consegue extrair o belo das paisagens. Travestido de Matraga, “se extasiou com as pinturas do poente, com os três coqueiros subindo da linha da montanha para se recortarem num fundo alaranjado, onde, na descida, muitas nuvens pegam fogo” (p. 376). Comprova-se, nitidamente, como a arte, no caso, a literatura, envolve-se com os aspectos culturais. Pode levar ao leitor um sentimento de amor à natureza.
Augusto Matraga, um errado diante da sociedade que vivia. Reprovado por todos, abandonado pela família, jurado de morte por aqueles que foram por ele violados. Depois de perder tudo, ao levar uma vida desregrada, procura o caminho que o leve à redenção. Ele é ora bandido, ora herói, ora vítima social. Acredita na punição dos pecados e que o sofrimento representa o fogo do inferno. Sai pelas estradas, vai procurar uma maneira de agradar a Deus, tem que chegar ao céu, e, para isso, vai sacrificar-se, trabalhar, rezar e deixar de fazer o mal. ”Eu vou p’ra o céu, eu vou mesmo, por bem ou por mal!... E a minha vez há de chegar... p’ra o céu eu vou, nem que seja a porrete!...” (“HvAM” p. 361). Depois de trabalhar bastante, muito rezar, deixar de praticar o mal, torna-se um novo homem, observa a natureza:

E viu voar, do mulungu, vermelho, um tié-piranga,
ainda mais vermelho - e o tié-piranga pousou num
ramo do barbatimão sem flores, e Nhô Augusto sentiu
que o barbatimão todo se alegrava, porque tinha agora
um ramo que era de mulungu (“HvAM” p. 376).

Matraga não pensa em abandonar sua terra. Nela existem belezas. O narrador instiga a se ver as belezas dos sertões; esta beleza percebida e enaltecida pelo sertanejo. Ao expor o particular de sua cultura, aponta para o universal de outras culturas. Guimarães Rosa escreve a partir de um conhecimento cultural geográfico da realidade que ele, depois, transfigura. Sua prosa intercalada de poesia teve origem na literatura oral; nesses versos são revitalizados os anseios, gostos e desgostos do povo. “A história da poesia oral não poderia ignorar esse aspecto do real” (ZUMTHOR, p.280). Para o crítico, a palavra dita, a palavra cantada pelos poetas antigos, é celebração; a transmissão do saber; não é diferente, nos nossos dias, da palavra difundida pela mídia; a palavra televisada.
Caminhar na imaginação e cantar sua raiz é próprio do poeta. Em Santana do Ipanema não é diferente. Em uma serena tarde de outono, os moradores recolhiam-se ameaçados pela chuva. Aos olhos do poeta, não passava despercebida a beleza que oferecia a paisagem. Avenida molhada, vários coqueiros a ornamentar, o arco-íris oferecia seu colorido mágico e harmonizava todo encanto do momento. O poeta desbravador do momento registrava e entendia que tudo aquilo tinha que ser poetizado. Aquela realidade seria transformada em magia. Eis a realidade mágica do nosso sertão. A chuva, a água, a paisagem bela e a arte do poeta para marcar o momento.

Água da serra

Águas que correm,
claras,
do escuro dos morros,
cantando nas pedras a canção do mais – adiante,
vivendo no lodo a verdade do sempre – descendo...
Águas soltas entre os dedos da montanha,
noite e dia,
na fluência eterna do ímpeto da vida...
Qual terá sido a hora da vossa fuga,
quando as formas e as vidas se desprenderam
das mãos de Deus,
talvez enquanto o próprio deus dormia? ...
(Magma, p, 15).

REFERÊNCIAS

ROSA, João Guimarães. Ficção Completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994.
ROSA, João Guimarães. Sagarana. 31 edição. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1984.
ROSA, João Guimarães. Magma. 2ₐ impressão. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997.
ZUMTHOR, Paul. Introdução à poesia oral. Tradução de Jerusa Pires Ferreira, Maria Lúcia Diniz Pochá e Maria Inês de Almeida. São Paulo: Hucitec, 1997.











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