Os pilares éticos da sociedade aberta

Adriano Nunes

Numa sociedade aberta, nos moldes de Karl Popper, a crítica é um dos seus pilares, e todos indistintamente devem ter direito à vez e à voz. Significa ainda que, em termos democráticos e sob os ditames da razão, as pessoas podem mudar de opiniões ou não, sem serem condenadas ou perseguidas por isso. Ou seja: as sociedades abertas dispõem de meios racionais para evitar que moralizadores e/ou autoritários tentem impor a sua moral moralizadora ou as suas vontades de poder aos demais.

Numa sociedade aberta democrática, não precisamos de tribunais virtuais, se somos livres e capazes de fazer reflexões sobre tudo, inclusive e principalmente sobre nós mesmos. Os tribunais virtuais são as novas formas de vingança privada a serviço de milícias e militantes digitais presos às suas crenças e ideologias, são os novos coliseus, onde a sociedade do espetáculo vibra com o estrago feito nas reputações alheias, como se a ampla defesa e o contraditório fossem abstrações ainda por serem pensadas, uma utopia ou mesmo nada. As reflexões reflexivas, a autoconsciência, o arrependimento, a dúvida, o receio, o perdão, a compaixão, não devem ser vistos como fraquezas humanas e serem perseguidos como um mal a ser combatido. Eles, ao contrário, refletem o que somos e onde nos encontramos: em um mundo fenomênico dinâmico do qual a esfera humana faz parte.

A dúvida e a crítica - instrumentos da razão - fizeram e fazem ruir e desabar dogmas e crenças. Tudo, portanto, deve submeter-se à crítica para merecer o respeito público que só a razão pode dar e garantir. Aquilo que não resiste aos ditames da razão deve ser abandonado e já não pode servir como um pressuposto de uma sociedade racional, que se pretenda justa e humana. Tudo que tenta escapar à crítica deve ser tomado como suspeito e até mesmo como perigoso. Dizer isto não é transformar o ser humano em uma máquina, sem sentimentos. Até mesmo a razão se submete à crítica, e aí está a sua grandeza. E, por questionar a si, não pode ser tomada como uma espécie de fé.

A partir dessa constatação, numa sociedade aberta, todo e qualquer conhecimento precisa se submeter à crítica se quiser ter o respeito que a razão dá e garante, ou seja, se quiser ter pretensão de verdade e validade públicas, caráter de ciência, deve estar exposto ao crivo da crítica. A crítica sempre esteve ameaçada por autoridades, pelos poderes diversos. A possibilidade de que todo conhecimento é falível a priori possibilita a certeza de que a dúvida e a crítica são indispensáveis na construção de um mundo livre de e/ou capaz de identificar falácias, dogmas moralizadores, pseudociências, fraudes intelectuais, crenças, ideologias, autoritarismos, fundamentalismos, etc. O pilar das sociedades democraticamente abertas deve estar ancorado firme na razão. E razão não é fé, não se sustenta em crenças, paixões e ideologias.

A razão também não se confunde com o progresso. O progresso é passível, como tudo, de crítica. O progresso humano trouxe coisas boas e ruins. Precisamos, portanto, ver como essas coisas ruins precisam ser controladas ou ter os seus efeitos deletérios diminuídos ou atenuados, já que como surgiram no mundo das ideias e no mundo fenomênico, e as ideias não podem ser destruídas, será necessário encontrar meios racionais de contê-las, sem que isso fira ou viole direitos e garantias fundamentais individuais e sociais, por exemplo.

Em um mundo técnico heideggeriano, devemos ter o cuidado para não assimilarmos a vontade ou o impulso de vermo-nos e tomarmo-nos como engrenagens de uma maquinaria instrumental, principalmente se a serviço do Estado, de alguma instituição, de crenças e de ideologias.

Autoritarismos tendem a existir e coexistir na esfera pública porque parece, de algum modo, que algumas pessoas sonham e almejam ter domínio sobre outras, reificando-as, instrumentalizando-as a bel-prazer. Motivos e causas? Vários. Uma das problemáticas é a tentativa de legitimar autoritarismos e totalitarismos eticamente e moralmente, isto é, tentar sub-repticiamente dar um matiz racional, sob as vestes de uma ética da razão, validade e legitimidade a tais fenômenos sociais. Na história humana, temos vários exemplos dessa tentativa. Desde a tentativa - por questões de poder e dominação - de afirmar e legitimar que os reis e rainhas são divinos, bem como, por exemplo, de dar fundamento dogmático de que em nome de um deus é legítimo matar.

Como a crítica, de algum modo, abala e fragiliza o sagrado, as pessoas têm tentado engendrar divindades laicas, substituindo os deuses metafísicos por deuses de carne e osso, isto é, substituindo uma fé por outra, em uma verdadeira religião política, acreditando na sacralidade de símbolos, partidos políticos e em salvadores da pátria, por exemplo, quase sempre amalgamados a pensamentos messiânicos.

Essa busca por deuses de carne e osso tem produzido autoritários e tiranos. Claro que não é algo assim tão simples. Diversos fatores e circunstâncias históricas têm contribuído para isso, como populismos, crises políticas e econômicas, busca por religiões primitivas, grupos invisibilizados e ignorados por séculos, o culto a personalidades carismáticas, o culto ao irracionalismo, defeitos no reconhecimento e falta de empatia, negacionismos, extremismos, radicalismos, fundamentalismos, ideologias diversas, globalização desenfreada, conflitos de classes, racismos, chauvinismos, eugenismos, abuso das possibilidades reais do uso das redes sociais, polarizacões políticas, desigualdades econômicas e sociais, etc e tal.

Todos esses fenômenos existem e coexistem nas sociedades abertas, porque pertencemos todos à esfera humana. O processo civilizatório não se resolve apenas com o passar do tempo, mecanicamente. A abertura da esfera pública das ideias e dos conceitos, a consciência de que todos têm direito à vez e à voz, sob os ditames da razão, isso tudo pode ser um passo para a construção de uma sociedade menos cruel e menos injusta.


Adriano Nunes

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