Realidade fatual inafastável: mais de 300 mil mortes por covid-19 no Brasil! Não há como esconder ou alterar esse dado funesto. Portanto, a realidade precisa urgentemente intervir na esfera da existência, seja através de discursos racionais acerca da gravidade da pandemia, seja através de ações e práticas que amenizem ou impeçam a disseminação do coronavírus e seus efeitos deletérios sobre a saúde humana. A realidade democrática não deve mais perder tempo com negacionistas, fanáticos, ideólogos, demagogos. Logo, as instituições precisam compreender racionalmente os papéis delas nessa empreitada humana, civilizatória.
As ideologias, que têm traços autoritários, procuram, de algum modo, distorcer as realidades fatuais, as verdades dos fatos, buscam omiti-las, retirá-las da esfera pública das ideias, da discutibilidade. Por quê? Porque assim podem fazer com que a sua Wille zur Macht impere. Vontade de poder com mais vontade de poder: poder. Para poder controlar e dominar corpos e espíritos. Essas ideologias têm em seu cerne morais moralizadoras que querem se impor através de discursos sub-reptícios travestidos de fundamento epistêmico. Religiões políticas, par excellence.
E, ante essa tragédia, o que mesmo importa? Salvar vidas é o que, agora, necessariamente importa! Temos, todos nós, um dever ético imperativo que nos impele à crítica, à busca de soluções pragmáticas, à certeza de que não precisamos de mais mortes para convencer-nos que temos radicalmente falhado in totum como irmãos(ãs), cidadãos(ãs). Se a política é falha e monstruosa, não precisamos e nem mesmo devemos seguir o exemplo dela! Adversidades políticas e pressupostos econômicos não devem ditar, como fatores a priori, as regras valorativas e sociais da vida humana. Mas um pressuposto ético reaparece: o que fazer ante reacionários fanáticos, insensíveis, anticiência e antivida? Reafirmo: as instituições precisam compreender racionalmente os papéis delas nessa empreitada humana, civilizatória.
Para os autoritários, que querem negar a realidade fatual, 300 mil mortes são uma forma de agressão política, é como se houvesse um inimigo político inventando um absurdo, como uma tática de guerra. Na necropolítica, ainda que se queira a morte, sabê-la como um tipo de denúncia humanitária é como uma ameaça ao poder. No bom latim: ars est celare artem! Hannah Arendt já havia denunciado esse tipo de estratégia autoritária de manipular as verdades fatuais. Em "Between Past and Future", ela afirma que "as possibilidades de que a verdade fatual sobreviva ao assédio do poder são de fato por demais escassas; aquela está sempre sob o perigo de ser ardilosamente eliminada do mundo, não por um período apenas mas, potencialmente, para sempre." Justamente porque as verdades fatuais trazem em si um certo tipo de coerção que incomoda e até mesmo machuca aqueles que não aceitam a realidade fenomênica de tudo que há.
Os autoritários tentam e almejam modificar ou omitir dados, por exemplo, pois assim mascaram ou alteram as verdades dos fatos. A coerção que as verdades carregam em si não consegue, ao que parece, esconder ou suplantar um ponto frágil (ou, talvez, fortíssimo?) das próprias verdades. Arendt sinalizou que "a verdade fatual, ao contrário, relaciona-se sempre com outras pessoas: ela diz respeito a eventos e circunstâncias nas quais muitos são envolvidos; é estabelecida por testemunhas e depende de comprovação; existe apenas na medida em que se fala sobre ela, mesmo quando ocorre no domínio da intimidade." Por depender de um testemunho, quase sempre, as verdades fatuais são como brinquedos nas mãos de autoritários e tiranos. Dados estatísticos são dessas verdades fatuais usadas a bel-prazer por autoritários e tiranos.
Concordo com a afirmação brilhante de Daniel Dennett, em "Faith in the Truth": "é um fato que muitas vezes as pessoas não querem saber a verdade. É um fato mais perturbador que as pessoas muitas vezes não querem que outras pessoas saibam a verdade." Precisamos saber dessa verdade e refletir reflexivamente e sob os ditames da razão sobre essa dolorosa verdade: o Brasil atingiu, hoje, mais de 300.000 mortes por covid-19.
Adriano Nunes
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