"O Brasil precisa de um líder moderado"

Adriano Nunes

Em latim, a antiga expressão qui iure sua utitur neminem laedit, do Direito Romano, indica que "quem exerce o seu direito não faz mal a ninguém". É uma sentença aparentemente óbvia, todavia, por trás dessa obviedade esconde-se algo importante para as Teorias do Direito e Política e para a compreensão de atos estatais. O exercício de um direito não garante por si só que nenhum dano será causado a outras pessoas.

Para que tenha validade de justiça e seja humanamente possível e aceitável, o exercício de um direito tem que estar dentro de um certo limite de liberdade, isto é, o detentor do direito não pode ultrapassar os limites dos direitos alheios, isto é, o seu direito não pode ir além dos limites da dignidade humana do outro quando o exercício for necessário e legal. Isso implica dizer que direitos não se confundem com justiça - uma verdade jurídica. Em tiranias totalitárias, os tiranos outorgam a si mesmos todos os direitos, inclusive o de vida e morte sobre os seus súditos. Logo, de imediato, tal brocado latino já não pode ser tomado como uma verdade. Assim, o exercício de um direito de um tirano pode mesmo fazer mal a outrem.

Neste sentido, podemos analisar, por exemplo, os atos de um Estado. Este, por achar que o seu livre exercício de direitos, apoiado por leis constitucionais ou infraconstitucionais, é legítimo (por ter sido democraticamente instituído através de voto), crê que tal direito pode ser efetivado apenas por ser um direito, supondo que, ao fazê-lo, não fará mal algum a seus cidadãos e cidadãs. O exercício de um direito legítimo de um Estado não pode ir além dos limites do humanamente digno, isto é, não pode ir além dos direitos dos cidadãos e cidadãs de não aceitarem o exercício desse direito, ainda que lhe tenham conferido um direito aberto, isto é, um direito estatal de governabilidade.

O que é legitimado, em uma democracia, é que os atos estatais sejam civilizados, comedidos, justos, humanos e democráticos, isto é, atos governamentais para todos e todas sem distinções, preferências, sem rancores e desejos de vingança e sem perseguições. Por isso, nesta perspectiva, o Estado democrático não pode ser confundido com o governo da maioria. Pensar e impor isso é uma arbitrariedade, é uma violação ao direito estatal de agir legitimado.

Numa democracia, maioria e minoria têm que ter vez e voz. O Estado, que governa apenas para os seus e despreza os que não o apoiaram passa não só a desconfigurar e distorcer o conceito de democracia, mas, ao mesmo tempo, confere aos que são esquecidos e desprezados um direito de repúdio e de resistência. Um direito de crítica.

A máxima latina então precisa ser rearranjada: quem exercer um direito seu não deve fazer mal a ninguém, isto é, não deve fazer com que alguém seja tratado como coisa, isto é, instrumentalizado. O "não deve fazer mal a ninguém" então assume o pilar da práxis humana de modo universal: tanto na esfera privada quanto na esfera pública.

Ainda, neste sentido, um Chefe de Estado não deve, portanto, usando de um poder legítimo, fazer mal nenhum a seus cidadãos e cidadãs. Ainda que carismático e populista que sejam os seus atos, esses devem vir amalgamados a restrições a priori. Dizer isto não é consolidar que existe um direito natural anterior a qualquer direito positivo. Dizer isto é constatar que os limites impostos pela legitimidade existem antes mesmo de um ato estatal, isto é, o Estado só é o que é porque os seus cidadãos e cidadãs lhe conferem um poder soberano limitado, para atender não a um grupo ou uma maioria, mas a um complexo conjunto de indivíduos que se reconhecem como nação, com suas diferenças e peculiaridades.

Não é, todavia, o fato de reconhecer-se como nação ou em um nacionalismo que dão a um Chefe de Estado o direito de decidir e agir em nome de seus cidadãos e cidadãs. Tal reconhecimento apenas revela que há um todo que, no tratamento público e nos direitos públicos, deve ser respeitado igualmente, isto é, todos e todas são iguais perante as leis estatais legítimas que atendam democraticamente a essa legitimidade. E esse direito do Estado de agir em nome de seus cidadãos e cidadãs torna-se um dever ético, jurídico e político de não lhes causar mal, sem que haja motivo que justifique uma punição previamente estabelecida e que atenda a princípios humanitários.

Ora, chegamos a um ponto crítico: se todos e todas devem ser tratados igualmente e ter protegida a sua dignidade enquanto seres humanos, fica evidente que os atos de um Chefe de Estado não podem pôr em risco a vida desse coletivo nacional, seja por desconsiderar questões humanitárias e políticas públicas, seja por menosprezar questões de segurança pública ou seja por querer agir apenas para agradar "os seus". Quando um Chefe de Estado exerce um direito legitimado, de forma arbitrária, ele desconsidera a unidade complexa que é uma nação politicamente. Ele põe em risco, de algum modo, a vida de todos e todas!

Cabe às instituições democráticas, Congresso e Judiciário, evitar que esse tratamento público seja seletivo e discriminatório, tomando medidas protetivas sérias. Uma nação democrática não pode ficar à mercê de fanáticos, de extremistas, de autoritários. Uma democracia é para os moderados. Fanáticos e extremistas é que precisam adequar-se à convivência civilizatória. A vida de cada cidadão e cidadã importa. E não são descasos, arbitrariedades e cruzadas ideológicas que resolverão os inúmeros problemas que o Brasil enfrenta e enfrentará.



Adriano Nunes

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