SÍLABA CANÔNICA

Contos

Por Marcello Ricardo Almeida

Por que não conta uma história?
Primeiro, observe, o vento sopra; depois, a chuva. O temporal demorado lava as ruas feito repertório lexical.
Conte outra!
O vento agita portas e janelas. Hoje, as folhas no abacateiro dançam Coco Alagoano.
Aceita outra estória? riu a Avó. A história é uma estória que muda a cada hora a História na vida e na escola.
O Sistema Jundiá, disse o pescador, criou que dormir era perder tempo de vida. Tinha pressa o homem velho que mastigava miolo de pão com a gengiva. A formiga viajava o globo terrestre de ponta a ponta, nas páginas do livro aberto. Um lugar de nome Bizâncio onde Oriente e Ocidente uniram-se nas páginas de um livro de História Antiga ou de antiga história, na Lagoa Mundaú ou Manguaba. E, da canoa, a linha ziguezagueia no ar; depois, bluuum! o anzol sumiu na lagoa, anelou círculos contínuos à proa. Roncou um carro, lá fora. Navios estrangeiros atracaram em Jaraguá. Uma língua estranha conversava na janela, protegia-se de chuva fina. O dia claro cedeu à escuridão total. Um caniço parecia agitar-se num zunido engraçado. Cuidado pescador, cuidado, cuidado; mãe-d’água pode se zangar. Porque, quem a madrugada pesca, corre o risco de se deparar com um fogo corredor à flor d’água ou a mula sem cabeça à flor do bosque a ornejar, a transformar sonhos em pesadelos. E nada de folclore, pescador, senão um peixe ora fisgado, lutando bravamente pela vida. Puxa-puxa-puxa o pescador o seu alimento; briga-briga-briga um peixe em intrépido bailado. O homem velho fungava e tossia, às vezes espirrava. Cleobulina via em seu escuro quarto o homem velho; ele aboiava, arrastava, em lugar de correntes com a bola de ferro, xoboi; ela ouvia o bater nos rochedos as ondas no mar atrás de casa; ali, ontem, a sua vizinha caiu e quebrou o pescoço. Levada pelo medo, a vizinha deitava-se noite a noite ameaçada a cair da cama e entrar em coma.
O sono é como a Filosofia dita ter surgido na Grécia Antiga e não no Egito Antigo ou em outra parte antiga, na História. O sono é enganado pelo sonho e está atormentado com o pesadelo. Apitou um navio um estrangeiro. De repente, becos surgiram na escuridão. Cleobulina acordou por um instante e, outra vez, viu que havia dormido pouco. Bocejou. Levantar-se de novo? Agora, não, se nem dormi direito. E já amanhecia, quando se encontrou com Digressão. Becos mal-assombrados, onde vidas mal-assombradas percorriam. Mãe Xântipe mandava a gente dormir porque, no dia seguinte, o nosso vestidinho estaria pronto. Era Natal. Não. Era São João. Íamos dormir. Éramos tomadas por uma felicidade que nunca mais a encontrei nos bordados. Agora, só, órfã de mãe. Vi a imagem. Ouço a voz de mamãe. Amanhecia. E o vestidinho bordado estava, ali, bem ali, à nossa espera. Era o estouro da correria de todas as minhas irmãs. Cozinhe os ovos na água com vinagre, que eles não racham! disse. E entrou na escola sem saber que se tratava de um hospício novo. Professor Neuropedagogia foi o nome pelo qual ele era chamado. Era uma escola de papelão. Nas reuniões pegajosas, os professores recebiam pílulas e xaropes. Muitos passavam mal, poucos não tinham enjoos e lançavam um boi. Eu vi, disse, ninguém me contou. Escola, uma piada, esses dias, uma piada de mau gosto. Professor Neuropedagogia passou; ele era levado pela presa da prova. Ninguém respeita a educação. Todos gritam com todos, disse, e expulsam, e provocam, e humilham, e agridem, e detratam, e debocham da legislação, e dizem que Deus não existe, e fazem pouco caso das labaredas eternas do inferno. A escola é um inferno. Eu vi com estes olhos, repetiu, ouvi com estas oiças; não precisei dos olhos de ninguém, não careci de ouvidos nem de bocas. Não basta sonhar com o Paraíso. É preciso vivê-lo pela fé no sistema? Cleobulina subiu a ladeira com um fardo de roupa suja. O Panema não tinha água, a água acabou. Sobrou poças d’água verde, poças escuras de girinos. Cadê a fé que eu tinha? insistiu Cleobulina, que caminhava pelo monturo, depois que deixou a sala de aula. E Neuropedagogia foi designado à sala Sílaba Canônica. Os corredores, nesta escola, eram preenchidos por gente que falava sozinha, olhava a mão e falava sozinha como se estivesse falando com ela, e a levava às vezes ao ouvido, e seguia a falar com o se acometida por um surto. A fé que eu tinha desceu pelo ralo do banheiro, disse, a vi escorrer hoje no ralo da pia. E tudo o que me fizeram acreditar até aqui? Nada valeu a pena a esta gente de alma sebosa? Cleobulina desabou em copioso choro como aguaceiro que se derramava, lá fora. Era Maceió debaixo d’água. Cheiro de chão molhado invadiu lentamente o perturbado sono de Cleobulina como um vapor. O que restava a esta gente ao negar Deus? Por acaso, Ele não é esquecido? Por acaso, Ele não desaparece? Por acaso, Ele não deixa de existir? Por acaso, Ele não é substituído por outro? Esta gente optou em viver um longo período de intolerância e, agora, o tempo de intolerância terminou e começou o período de ódio. D. Injúria, D. Calúnia, D. Difamação por acaso envelheceram, perderam a memória, perderam a compostura, perderam o rumo de casa, não mais escutam, não mais enxergam? Amanhã terei que terminar aquela compostagem. Tropecei nas três irmãs, D. Injúria, D. Calúnia, D. Difamação, quando deixava o corredor da escola. Devo manter a calma nestes momentos de tragédias. O juízo, disse mamãe, costumava ser um bom conselheiro. Não é mais, mãe Xântipe. A culpa é sempre das linhas erradas nas mãos. Mas elas não são nossas? O que reluz no monturo, minha filha, não é uma estrela, é um caco de vidro. 
No dia seguinte, no final da prova, Cleobulina dirigiu-se outra vez à casa daquela que chamava de Avó. E na casa dela, pulou rápido o portão, porque não tinha paciência de esperar que Avó viesse abri-lo. Correu e pulou no colo da Avó. Conta uma história, Avó! insistiu, a pertinente. Cleobulina tinha acabado de sair da prova, no grupo escolar, corria e gritava envolta em euforia:
Habemus Papam! com toda a potência de sua voz. Habemus Papam, Avó!
Já aprendeu a ler Cleobulina?
Já! asseverou.
Provasse.
Encontrava-se em Cleobulina a recém-aprendizagem da sílaba canônica.
Então me provasse que não estava mentindo.
Com a Bíblia ao lado, Avó abriu as páginas dos Evangelhos. Uma parte na qual parábolas conhecidas da Avó dormiam.
Leia esta parte.
A Bíblia, Avó?
A Bíblia, sim, senhora.
Letra a letra, palavra a palavra, linha a linha, Cleobulina fixou os olhos nas letras e foi deslizando o dedo nos versículos e capítulos. Era tudo isso mermo, Avó? Era! disse. Isso era muito, Avó. Gaguejava, fazia caretas, desejava morrer porque ainda não possuía o domínio necessário para reunir letras em palavras e dizê-las compreendendo o que estava ali. Gaguejava, e mordia a língua, e fazia caretas.
Leia esta parte.
Mais caretas, mais gestos, mais decepções.
Não consegue?
Consigo.
Não conseguia Cleobulina ir além dos gestos, das caretas, e pôr a língua fora da boca, ao lado esquerdo, ao lado direito, e mordê-la lentamente. Como se quisesse simplesmente adivinhar o que estava escrito. Cleobulina olhava Avó, o livro, inventava coisas, pronunciava palavras que não estavam escritas naquela parte indicada, sorria, nervosa.
Todos esses anos na escola, Cleobulina. E ainda não aprendeu a ler?
Esperasse um pouco, Avó. Era apressada por quê?
À tarde esmorecia, após o café com tapioca com queijo de coalho. Veio à noite e as duas seguiram rua afora em direção ao templo de Santana. Avó tinha este compromisso de fé.
Na manhã seguinte:
Leia esta parte onde estou com o dedo, Cleobulina.
Esse livro não tem figuras por quê?
Figuras pra que, Cleobulina?
Com figuras, Avó, eu posso entender o que leio.
Figuras, Cleobulina?
Posso desenhar?
Leia.
Por que Avó não conta uma história?
Que história?
Uma história, Avó.
A história muda a cada hora. Cada qual faz a narrativa ao bel-prazer. Nada é o que parece ser. Não há porta, não há janela. O espelho que se ver, nele não se acredita; ele está ali e não está. São olhos que veem e não enxergam o que existe de real. Os fatos cederam às opiniões. Estas mulas têm cargas de vento. Cada qual tem balaios de versões vendidas nas feiras de rua, sábado a sábado. Sabia? Tropas de mulas que vêm sem cargas.
Foi quando Avó avistou nos caibros uma casinha de aranha que não havia visto durante a faxina. Avó observou uma aranha caminhar lentamente sobre as teias ao encontro de uma mosca que se debatia inutilmente.
Avó tornou a olhar. Cleobulina, sabia que todos aqueles animais no quintal de casa eram animais encantados?
Encantados, como assim?
Eles conversavam entre si.
Era impossível, Avó!
Impossível por quê?
Porque não acreditava.
Não ouviu o que o padre Velho falou?
Quê!
A serpente falou com Eva e a jumenta falou com Balaão.
O escuro cedeu à luz. Era o primeiro dia de aula, e a professora Cleobulina recebeu os alunos na porta da sala com bem-vindos, fez a chamada, apresentou-se e os alunos apresentaram-se. O tempo comunicava-se por ondas, disse, e os alunos ficaram atentos porque a professora escrevia poemas; ondas eram quase sempre representadas por sons. Ciência estudava como gravar e traduzir esses sons existentes nas vibrações do tempo. Cleobulina era quem socorria a escola.
Era sorte de a escola ter Cleobulina. A fonologia estuda os fones, disse, e caminhava na sala entre as largas carteiras e alunos acompanhavam-na querendo saber mais, porque quem sabia mais conseguiria ir mais longe.
Os fones, disse, eram sons na fala que traduziam uma senha. E com ela se descortinavam todos os fonemas, na viagem do tempo.
Se fôssemos voltar no tempo, o povo deixaria a casca, o bairro e viria ver a festa. Seguiu a professora Cleobulina na aula que promovia o bem-estar aos estudos. Na sala, todos receberam, no primeiro dia de aula, bela cópia do livro Dez Contos Contados. O autor do livro era o diretor da escola, e ele presenteava o primeiro dia na escola com livros porque queria saber a impressão dos alunos sobre a literatura, e queria que o aluno tomasse parte na estética escolar.
No horizonte de expectativas do diretor, quem salvava a escola não eram os conteúdos pedagógicos, tampouco as habilidades ou domínios; o que salvava era o que estava escondido no horizonte cósmico. O livro era uma festa do feijão numa panela de carne.
Voava na canção a professora.
Dormir era o melhor dos remédios e o fim da fadiga e de todos os males.
Cleobulina atravessou as cores na tela do artista plástico. O carcará com as suas cores que se transmudavam no bater rápido das asas distanciou-se do lugar onde se encontrava atacando filhotes de carneiros e cabras.
Os alunos ficaram atentos à professora Cleobulina, ao carcará e aos filhotes de carneiros e cabras. O carcará voou livre, disse, o carcará no semiárido alagoano. Ele dominava a América do Sul com 60 cm de altura e envergadura de 123 cm. Ave de rapina adaptável em qualquer ambiente com o seu bico adunco.
O carcará figurava num quadro pendurado numa parede cega. Quadra a quadro, uma história em quadrinhos, o carcará dentro dos quadros voava livre.
Via-se o solidéu preto sobre a cabeça do carcará no plano detalhe. A terra seca. Os espinhos levados pelo vento, na areia fina. Voava carcará o seu voo de ave de rapina no fluido plano-sequência.
Voo que pousava em galho desfolhado de angico. Garras poderosas do carcará se desprendem. Logo, ela distanciou-se do Sítio Puxinanã e o riacho do Gravatá foi se distanciando. Dirigiu-se o voo do carcará a Santana. Num plano longo, planava sobre o Panema à procura de uma presa que lhe saciasse.
Os olhos do carcará espalhados na vastidão esbranquiçada das pedras. No primeiríssimo plano, os olhos da ave de rapina à espreita.
Terrível caveira de boi fincada numa estaca de cerca cujas carnes foram roídas pelo tempo e tornaram-se pó espalhado no chão sem chuva. O rio magro. As pedras eram as costelas do rio à mostra em uma poça d’água estagnada.
Não existia tempo sem água, porque água era a vida e a vida era o tempo. Um planeta sem água à humanidade, disse, era um planeta sem vida. Comeram todos os peixes do rio. Carcaças eram limpas por bicos afiados de urubus.
Num plano próximo, a membrana da manhã cobria e descobria os olhos do carcará. À procura da presa, outra ave de rapina rasgava no bico o couro da coisa morta e comia a carne e bebia o sangue.
Mostrava outra ave de rapina, em plano demoradíssimo, o velho Panema com águas paradas. Fim do período chuvoso. Pedras gigantes sepultadas no rio eram brancos monstrengos do sebo de resíduos, vísceras.
O rio de águas lodaçais em estios prolongados. O velho Panema de areias grossas, velho ipanema dos Fulni-Ô de cacimbas que salvaram vidas com água.
No plano geral, uma casa preenchida por várias gerações de pescadores que viviam simultaneamente no mesmo lar ribeirinho.
Devastaram toda a mata ciliar, invadiram as suas margens com enxadas, picaretas, pás, e construíram casebres. E o sono de Cleobulina a levava à calha do rio cansado qual trabalhador próximo à aposentadoria imaginária e inatingível feito miragem.
Vegetação morria um pouco a cada ano. As lavadeiras envenenaram o rio com sabão, pedras de anil. As ilhotas transformadas em campinhos de futebol. Animais mortos deixados no rio, como se um rio pudesse ser medido pelo tempo.
Pedreiros levavam do velho as suas pedras e a areia. Sapateiros usavam o velho onde curtiam couros de bodes, de vacas. Afluentes do velho vazavam na bacia hidrográfica.
A geografia do velho rasgava a terra pernambucana, embrenhou-se no sertão alagoano em direção ao São Francisco. E por que o cansaço lhe atingiu, velho amigo, que com Santana propôs matrimônio? O rio e a cidade formavam um casal que corria da serra Ororubá, perdia-se em Belo Monte. Tantos potes sedentos e saciados, tantos peixes no prato da fome dos ribeirinhos.
Mulheres pesadas e mulheres leves lavavam roupas de ganho. Pastava o gado em torno da grama, nas margens do rio. Cleobulina, na janela de casa, usava a sílaba canônica, e chamava “Vem cá, gado! Vem, vem cá, gado! No MaTo, meu gado.” No outro lado do rio, os muares transportavam dia a dia ancoretas cheias às casas sedentas. Nas ruas de Santana, carroceiros traziam carroças puxadas por uma jovem égua magra e triste com o peso da responsabilidade. Os carros de boi vinham de longe, e lavavam a água.
Mulheres banhavam-se no rio; outras afogavam-se no Poço dos Homens. Pescadores de tarrafas, pescadores de anzóis, pescadores de redes. Quengos de coco com vela acesa dentro dos cacos soltos nas águas dos afogados em busca de defuntos presos em locas de pedras adormecidas, em garranchos que o rio escondia em suas entranhas.
Naquele tempo na cidade do Teatro-Feijão-com-Arroz, os cancioneiros, os seresteiros, os fantasiosos, os compositores, os foliões, as escolas de samba, os músicos, os fabulistas de plantão, os poetas, os bares, as festas. A diversão após os festejos religiosos, o tiro ao alvo, os barcos, o carrossel, o bingo, a casa misteriosa de lona espessa e espelhos vindos da Índia onde a mulher enigmática se transformava, inexplicavelmente, em obscura fera e saltava atrás das grades.
Sob o sol laranja de Santana, acordava o dia. O roncar de uma porta de ferro erguida. Dentro do armazém, miava a velha gata. A gata à procura de rato; não rato de verdade, imaginário, desses que existiam na fome da gata em busca de alimento aos filhotes numa caixa de sapatos.
Numa visão aérea demorada, as serras longe que se irmanam na primeira manhã após a primeira noite de festa. Cleobulina roncava.
Conte a história de Conte, Avó.
Vou pensar! disse.
O cão ladrava impaciente tentando livrar-se das correntes que oprimiam o seu pescoço; quanto mais o cão latia mais perdia a voz. O sábado perdendo o dia, e a feira do sábado indo embora. Feito o carcará que via tudo de longe, longe bem longe Sítio Caldeirão do Meio e Lagoa do Algodão, e o Sítio Baixio do Tamanduá e Lagoa do Mijo.
Os galos, as galinhas param de fazer cocoricós. A feira da farinha, a feira da carne, a feira hortifrutigranjeira, a feira de gado, a feira dos passarinhos, a feira das ruas cheias. A tolda de D. Xântipe. As bancas aos poucos silenciavam a feira, no sábado quase findo, e os pés rápidos voltavam aos sítios Balança e Lagoa do Pedro, Bebedouro e Lagoa dos Morais.
Os muares nas ruas comem cascas de jaca, banana, abacaxi no resto de feira, no sábado. E as crianças de longe, o povo de suas janelas, velhos na porta de casa viam sábado de feira entregar as suas forças, e o bêbado passar trôpego voltando ao lar com três quilos de chã-de-fora pendurada numa embira verde, e, ancho, o bêbado cantarolava em sua língua estranha.
Na Rua Barão do Rio Branco, essa hora do dia, os armazéns cansados ora descansavam, cansados na lida, cansados de pés e tantos braços, apertos de mãos, sorrisos, chapéu que saía e voltava à cabeça, bigodes, bocas pintadas, perfumes. Os trabalhadores de roça passavam em carro, e bois, lentos, seguiam em carroças e, ao longe, os carros na rodagem. Os ouricurizeiros eram sérios soldados sobre a areia branca que cobria o semiárido numa parte dominada por cajueiros, umbuzeiros carregados de frutos àquela época do ano, seriguelas, as pitombas, as pinhas que Zezito as colhia no alpendre da fazenda. Ouvia-se o pio cadente no eixo do carro de boi na estrada sobre as pedras, os buracos, o mato que invadia displicentemente a pista por onde o carro viajava. O sabiá-laranjeira cantava na baraúna. O galo-de-campina cantava nos sítios Serra da Lagoa e Povoado Areias, a serra do Gugy, o povoado do Óleo e São Félix. Próximas, as jaqueiras pesadas de frutos.
As crianças riam com dentes de leite e os velhos banguelas não paravam de rir, e as jovens levavam propostas às mães, e os jovens lhes pediam a mão, e os casais compravam roupas, sapatos novos. Festejavam a avó de Jesus. As águas, no velho Panema, voltaram a correr, de novo voltaram peixes, e as pedras que estavam com os olhos de fora, o corpo e os braços mergulharam nas águas. Íamos investir em ciência, disse Zezito; melhorar a qualidade bovina, na região. Estrada afora, Zezito foi à Bahia, a São Paulo, e se foi ao Rio em busca de puros de origem. Íamos fazer a feira de gado, uma exposição agropecuária.
Na Rua Nova, numa casa velha comprida até o rio. Professora Cleobulina era uma criança e rogava que Avó dissesse uma das suas.
Avó, emoldurada em um dos janelões em sua casa de paredes grossas, acompanhava o silêncio na cidade. Sob o telhado de beira e eira, chamava:
Corre, Cleobulina! Vem logo assistir a festa das cem crianças na rua numa procissão de São Cristóvão.
O buzinaço das crianças com a boca. Um comboio de carros de lata de doce e de óleo e madeira; carrinhos puxados por cordões, pintados com as cores primárias, no comboio dos amigos de Morche, numa viagem da Rua Nova a Rua do Longe e à Rua do Silêncio.
A Avó entrou no sonho das crianças de boca barulhenta que mimetizam buzinas de caminhões, ônibus, carros de passeio. A cidade envolta na alegria. A Avó morava ao final da rua, e morria de medo da solidão. Ela observava que até as moscas viviam acompanhadas, e voavam felizes, muitas vezes brincando as suas brincadeiras umas com as outras. E quando Cleobulina deixava a Avó, ela procurava o espelho na sala de estar e não se encontrava nele.
O remoinho soprado varreu as ruas, em Santana, e alcançou Maceió.
Moscas, que eram muitas, viviam felizes, trocando mensagens, viviam de um lado a outro os enxames; a nuvem de mosca não parava quieta, e em todo o lugar estava o moscaréu voando e pousando nos alimentos; a moscaria era mesmo feliz; em toda a parte podia vê-las; e o quanto elas eram unidas. E aquele mosqueiro era de dar inveja a quem vivia só, sem ter com quem trocar um ou dois dedos de conversa.
Se fosse ao lixo, se fosse à louça suja ou se fosse às frutas maduras, elas nunca estavam sós, sempre juntas, sempre reunidas. Adjunto delas fazia açúcar. Moscas eram amigas inseparáveis, uma protegia a outra.
No quadro de uma das suas janelas, um burro, uma vaca, uma coruja, um gato, um cão e uma pomba. Aquela pombinha, bem que eu deveria mandá-la às brasas. Sobre o telhado, ela fazia barulho com o papo cheio. O burro às margens do rio, pastava ao lado da vaca que mugia. A coruja-buraqueira saía e entrava. O cavado entre o capim. O cãochorro cochilava. O gato sobre o muro. O vento e a luz branca batiam no quadro da janela.
A Avó, sozinha, vivia de esperar amanhecer e anoitecer.
Ela falava com o espelho, mesmo sem estar refletida. Era assim que Avó voltava a ter a experiência de ver a casa cheia, barulhenta. Via os filhos, o marido naquela espreguiçadeira vizinha àquela cristaleira próxima à porta da camarinha. Ó Santana, perdoasse os meus pecados; fui cruel, na juventude, pra envelhecer no silêncio quebrado apenas pelos meus passos ruins.
Viver anos na mesma casa. Vivi os anos divinos, vivi os anos heroicos e, hoje, vivo os anos humanizatórios.
Nunca recebi o merecido tratamento de sujeito da oração. Fui um adjetivo ordinário. Que bela narrativa! Era este mundo.
Alcancei as páginas, no livro-caixa; não descobri gozo nenhum. O relógio na cozinha só tique-taques. Abria-se à Avó um corredor de luminosidade intensa; uma alameda de girassóis.
A qualquer hora chovia em Santana.
Não acreditava que fosse possível às águas a magia dos rios voadores. E tudo se igualava a essa terra devastada com pesticidas. Esperavam-se nuvens durante a viagem, uma viagem d’água. Fim de nossos rios cobertos pelo lençol freático. O rio cansado em leito de areia e pedras, alçava voo e acompanhava pássaros migratórios.
Em Santana, a grande feira do sábado. Cleobulina, a mais tradicional das feiras. D. Xântipe a um freguês vendia hortelã, a outro louro, a uma freguesa era coentro, cebolinha verde, tomilho, alecrim e salsinha. Aspásia Doceira deslizava a faca no malcasado, Temistocleia sorria e fazia contas com habilidades que lhe surpreendia – Eu não sabia que sabia tanto! disse. O seu troco, senhor; e o seu troco, senhora. Aquele homem veio buscar o queijo, mamãe! avisou. Aquela não era a mulher de S. Fulano? Asioteia, filha de Temistocleia, Asioteia, ajudava Avó.
A senhora é mãe dessa criança? perguntou como se lhe fizesse acusação no tribunal inquisitório. Cleobulina há poucos dias em Maceió.
Não, senhor! disse; encolheu-se Cleobulina diante daquela autoridade no alto dos degraus, no Orfanato São Domingos.
Cético era o demônio! Ele morava no estrangeiro. Ele foi criado como um filho.
A senhora era a culpada! disse a autoridade atrás do bigode.
Não senhor, meu senhor! desculpou-se Cleobulina. Pelo amor de Deus!
Vou denunciá-la! ameaçou; Cleobulina estremeceu; foi tomada pela febre da tremedeira. Não pronuncie o nome de Deus em vão, herege.
Ele tinha olhos doces de jabuticaba.
Quem, senhora?
Cético.
O demônio?
Não, não senhor, não.
Preste atenção, Cleobulina, à sua Avó. Cleobulina prestava atenção.
Hoje, tem gengibre, D. Xântipe?
Tem, minha filha.
Tem pimentão?
Tem, minha filha. Na mão.
Quanto a espiga de milho?
Quase de graça! disse D. Xântipe.
Mais caro do que em São Paulo.
Não pode, minha filha.
Pode! assegurou. Cheguei de lá ontem.
Em São Paulo tudo era mais barato.
Bateu uma saudade da chuva. E a chuva corria nas pedras da Rua Nova. E a chuva descia pelos bueiros indo engordar as águas no rio; o Panema recebe a chuva na água que descia desembestada nas ladeiras íngremes de Santana.
O cinema, a praça, os armazéns.
A Avó conversava com as vizinhas, diante da igreja. Cleobulina, acordava; permaneciam as mulheres em sua volta, as mulheres que, com a Avó, deixavam o templo de Santana. Todas com os seus grandes temas sobre o fim do mundo.
Por que Avó não conta uma história?
Como era insistente! constatou.
A Avó cedeu. Cleobulina encolheu-se no colo dela. Ouviu. Um dia, Esopo Fedro, que foi praticamente criado na casa de S. Virgílio, depois com S. Horácio, os dois poetas mais lidos na literatura santanense. Depois, Esopo foi jogado nas ruas de Santana. Ele sentia-se acolhido, apesar do mau tempo e da brutalidade que habitam sombras. E foi Esopo, quando menino, o professor de Moral quando ela envelheceu. Eu mesma conheci Esopo quando velho; não cheguei a conhecê-lo quando jovem. Em épocas festivas, na colheita do milho e feijão-de-corda, Esopo cantava na praça. O povo reunia-se em torno dele e o ouvia cantar: Fé, ó Santana, sinônimo de luz,/Santo Antônio;/sem fé não consigo//hoje é 13 de junho/Santo Antônio?/Pois estou indeciso//No jardim dessa casa,/Santo Antônio,/flores pedem pra casar/declara Narciso,/Santo Antônio,/casar é preciso//essa rosa no galho,/Santo Antônio,/agita o vento lá e cá//Margarida e Gerânio,/Santo Antônio,/começam a namorar//não é brincadeira,/Santo Antônio,/essa vida solteira/vou pra Maceió,/Santo Antônio,/e no mar banhar//e vou pedir ajuda,/Santo Antônio,/à rainha Iemanjá//vou à feira em Santana,/Santo Antônio;/e vou comprar simpatias//sincretismo, fé, harmonia,/Santo Antônio,/na opinião das Marias//se dessa vez, o santo/não ajudar, ajuda Iemanjá/a protetora dos orixás//casar é preciso,/Santo Antônio,/segundo Narciso//hoje é 13 de junho,/Santo Antônio?/Tô ainda indeciso.
O velho Esopo dava velhas lições a Moral. Ela prestava atenção. Às vezes, Esopo imitava o que chamava de Corujãojão, a velha coruja-buraqueira; havia também Pombarrulho, Gatodomato. Se eu me lembrava bem, disse, era um gato magro e sem dono criado na Rua do Sebo. Havia o Burrorrizinho, um que vivia pastando na grama do rio e comendo saborosas palhas de milho, e invadindo a roça de feijão e de abóbora. Cãochorro, o vira-lata, e outra era a Vacamalhada, abandonada pelo açougue porque só tinha pele e ossos. CORUJÃOJÃO Vamos propor uma brincadeira. POMBARRULHO Excelente. CORUJÃOJÃO Agradeço-lhe, Pombarrulho, por acatar minha sugestão, no improviso. GATODOMATO Que brincadeira nova é essa, Corujãojão? Adiante alguma coisa. CORUJÃOJÃO Ainda não sei. Por enquanto, nenhuma ideia me surgiu. BURRORRIZINHO Vamos passar o recreio assim? A escola pede alunos criativos e brincalhões. CORUJÃOJÃO Não, Burrorrizinho, ainda não sabia. Faça alguma coisa, amigo. BURRORRIZINHO Faço todos inventarem versos de improviso. CÃOCHORRO Burrorrizinho está certo, pessoal. E quem começa? GATODOMATO Meu amigo Cãochorro vai pedir que a brincadeira se inicie com... Com... CÃOCHORRO Com quem? Brincar de corre-corre, de pega-pega não tem graça. GATODOMATO E com nossa artista Vacamalhada. Diz, aí, uns versinhos. VACAMALHADA Eu? Eu não sei versar nem verso lá nem cá. Quem sabe. BURRORRIZINHO Não enrola, Vacamalhada. CÃOCHORRO Ela quer ser engraçada. Mas engraçada todos sabe que ela não é. CORUJÃOJÃO Vai, amiguinha Vacamalhada, diz uns versos camaradas, anima o recreio. POMBARRULHO Vamos criar um mote? Quem sabe, a farra do bode. GATODOMATO Pombarrulho, essa ideia da farra é um tema interessante pra versar. BURRORRIZINHO O que não pode em seus improvisos é dizer diferentes auauau. CÃOCHORRO Eu sou Cãochorro, e posso assinar com um risco. CORUJÃOJÃO Eu que sou o Corujãojão; também assino abaixo do que foi dito. POMBARRULHO Vamos ouvir versos da Vacamalhada; ela já vai começar. GATODOMATO Não se faça de rogada? POMBARRULHO Não, não. Ela agora vai soltar versos ligeiros. GATODOMATO Atenção, turma. VACAMALHADA No campo, na praia, na cama, nas ruas, nos pastos, a farra do boi quem faz é a vaca, que se enfeita em laços de fita, que muge pra ficar mais bonita, que corre, que pula e que grita; a farra quem faz é a vaca, que sobe no pau de sebo, que brinca no pau de fita; a farra quem faz é a vaca, que rumina, que chifra Saci, que sabe de tudo na roça; e de tanto a mula viver de fofoca ficou sem cabeça. A farra do boi quem faz é a vaca; lambe-se, penteia-se e, no pasto, passeia pra ganhar mais asseio. E, ontem, descobriu que a bruxa na ilha é irmã do lobisomem. Na areia do mar, hoje, haverá farra somente entre a vaca e o boi, entre o boi e a vaca. A vaca e o boi, entre o boi e a vaca. Convidem a madrinha Maricota, mas nunca a Bernunça que, na crendice popular, se arrasta toda e se coça (como revela o velho Boto), nem o fogo que corre à toa pregando peças às pessoas. O boi fugiu dos Açores a nado querendo chifrar chifrudos, com medo de ser chifrado. Ao invés da música de Strauss, desembestado em meio a gritos, corre de pedras, pancadas e paus (a farra do boi quem faz é a vaca). Nos pastos das cores de cupuaçu, bovinos reclamam e protestam as farras do boi cultuadas no Sul (a farra do boi quem faz é a vaca) tão-só a vaca sabe as carências do boi, com ele ela deita-se (a farra do boi quem faz é a vaca) com ele se levanta e vem uma senhora tão tranquila; não sabe a força que tem (a farra do boi quem faz é a vaca). Veja nos campos de graviola, a vaca corre, a vaca faz farra, a vaca pula, a vaca namora, e Vicente Celestino dedilha e lamenta a dor de sua viola e pede a cumplicidade da Lua (a farra do boi quem faz é a vaca). A vaca é vaca sagrada na Índia, a vaca é quem muge depois, a vaca é quem manda no boi. Não tem boi-bumbá, não tem bumba-meu-boi, não tem boi-de-mamão (a farra da vaca quem faz é o boi). GATODOMATO Não falei? Agora é a sua vez, Burrorrizinho. BURRORRIZINHO Agora é a sua, Cãochorro. CÃOCHORRO Agora é a sua vez, Corujãojão. CORUJÃOJÃO Agora é a sua vez, Pombarrulho. POMBARRULHO Não fuja em cima do telhado. Agora é a sua vez, Gatodomato. CORUJÃOJÃO Gatodomato disse: Tá. Vamos ouvi-lo. Atenção, pessoal! GATODOMATO Tem uma santa, uma santa no vidro do janelão decalcada na vidraça. Vejam. É uma graça. É um milagre. Tem uma santa no vidro do janelão (pequissusto) Mentira! mentira! mentira! Passe sabão, aí, que sai. Tira (praleluia) Não podemos tolerar! Isso é uma exploração. (tvabsurdo) Isso dá audiência à nossa televisão. (fofoca-am&fm) Nos interessa; nos interessa a opinião do povo tem pressa. Calma. Não diga isso. (camelô) Camisetas! Camisetas estampadas com a imagem Santa do Janelão. Algodão-doce, picolé! Quem quer? quem quer? (pequissusto) Onde está? Quero vê-la. Um vulto, não é ela; é um truque. Não discuto. (praleluia) Histerismo de povo ébrio. Uma reação química; uma ilusão óptica; não passa de mímica. Provo. É coisa típica; mostro-lhes a Bíblia; ela desaprova o ímpio. Juro ser isso com ímpeto. (tvabsurdo) Por uns instantes vamos esquecer a política. (fofoca-am&fm) Acabaram-se os assaltantes. O povo, de joelhos, é notícia. (tvabsurdo) Milhares de pessoas na cidade pra verem a Santa do Janelão. (fofoca-am&fm) Jornais do mundo todo – e é a translúcida verdade – transmitem a fé ardorosa, a comoção. (camelô) No turismo, ninguém ficará pobre, ocioso. Riqueza não só ao nobre; riqueza ao pobre. Quem vai querer? Vai querer? Trago vela, foto, novenário! Ouçam! ouçam! ouçam! Não é lucro imaginário. (bêbado) Relíquias da santa quem vai querê-las? (chorós) Qual é o tamanho da solidão? (camelô) Quem vai querer camisetas? (chorós) Qual é o tamanho da ilusão? (camelô) Da santa tenho a foto da silhueta! (chorós) Qual é a medida da paixão? (camelô) Trago refrigerante e sanduíche! (chorós) Por fanatismo, o povo morre e mata! (bêbado) As mulheres que me amam, amo-as ainda mais. Duvidem disso se for capaz! As mulheres que me amam, duvidem do oxigênio e de outros vitais elementos sem jamais duvidarem das minhas dúvidas... (beatas) Protegei-nos, imagem da Santa do Janelão. Sacrossanta janela... Feijão Queimado é a cidade bela; aparece na tevê e nos jornais; queremos mais! mais, mas... (policiais) Da faixa amarela pra trás! pratrápratráspratrás! Fiquem todos longe da janela... da faixa amarela pra trás! pratráspratrápratráspratrás! (coletor) O pedágio à janela é preço de promoção. Deixe o dinheiro frouxo; gente facilite o troco; o pedágio à janela.............................................................................?..................! O pedágio à janela é preço de promoção. Fim. VACAMALHADA Ouviram? CÃOCHORRO Gatodomato sempre foi um ó. CORUJÃOJÃO Corre sobre o muro da escola como se jogasse bola, esse ladino. POMBARRULHO Gatodomato soltou longo poema; agora é a vez de haicai. GATODOMATO No canto do sabiá haicai não nasce em árvore exceto neste outono.

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