Costumo dizer que “a história do cangaço nunca foi, não é, e jamais será uma ciência exata”. As histórias desencontradas escritas sem critérios técnicos de comparações ou constatações, sem provas absolutas, com tantas invencioníces, tantos exageros, tantas entrevistas não confiáveis e sem sentidos, fazem da literatura pertinente uma verdadeira “colcha de retalhos” gigante, um “quebra-cabeça” sem fim, que sempre estão sendo remontados em busca da história mais verossímil possível pelos verdadeiros pesquisadores. Por isso todo novo livro sobre o tema é sempre bem-vindo para análise dos mais curiosos, dos mais entendidos historiadores, estudiosos ou mais interessados no assunto tirarem as suas conclusões.
Desse modo, nasceu o tão esperado livro do querido professor e economista alagoano, Sílvio Hermano de Bulhões, intitulado “Memórias e Reflexões de um Filho dos Cangaceiros Corisco e Dadá”. Tão esperado, porque foi tão esperado mesmo, pois posso dizer sem medo de errar, que nas minhas andanças de Aracaju para Maceió, isso já vai lá prá trás beirando mais de 16 anos, todas as visitas que fiz à capital alagoana, não faltei uma sequer ao amigo Sílvio Hermano de Bulhões. Visitas de cortesia, visitas de alegria que levavam horas de conversas inesgotáveis sobre o tema cangaço, visitas que sempre nos deu prazer, a mim e a minha esposa também escritora do tema Elane Lima Marques, visitas que em uma delas o presenteamos com uma estatueta da minha autoria representando o casal “Corisco e Dadá” e, noutra oportunidade de entregar-lhe o Diploma do Honroso Titulo de Acadêmico Honorário da Academia Brasileira de Letras e Artes do Cangaço (ABLAC). Como fato marcante e repetitivo, em todas essas visitas ele prometia lançar o seu livro no final de cada um desses anos. E nada!... Mas como promessa é dívida ele terminou pagando essa promessa com ajuda inequívoca do seu grande amigo José Malta Fontes Neto e dos seus filhos Sérgia Maria de Bulhões Modesto e Christino Hermano de Bulhões, dentre outros.
Do espetacular lançamento da obra ocorrida no dia 11/02/2023 na linda cidade de Santana do Ipanema, terra dos seus estimados pais não biológicos, o Padre Bulhões e Angelica Bulhões, solenidade que tivemos a honra de estarmos presentes, nasceu também a ideia de fazer alguns comentários sobre o livro, uma análise que nos leva a algumas observações e a certeza de que nunca a história do cangaço será uma ciência exata, senão vejamos alguns pontos que merecem destaque:
Consta da fala da sua mãe biológica Dadá que Corisco serviu ao Exército Brasileiro e que teria participado da Revolta Sergipana de 13 de julho de 1924. Referido fato é também relatado pelos grandes escritores sobre o tema como sendo uma verdade real, sendo que a prova principal, a prova documental nunca fora apresentada. Desse modo, partindo não só da minha curiosidade, mas principalmente decorrente do meu tino de pesquisador pertinaz, estando a residir no mesmo local dos fatos, ou seja, em Aracaju, corri atrás no sentido de tentar encontrar tais provas que seriam irrefutáveis. Seria uma grande glória para mim e para a história do cangaço encontrar qualquer documento que ligasse o nome de Cristino Gomes ao Exercito Brasileiro, mais de perto, ligado ao 28º Batalhão de Caçadores. Desse modo, para escrever o volume IV da minha coleção “Lampião e o Cangaço na Historiografia de Sergipe”, nas minhas incansáveis pesquisas nos anos de 2014 a 2020, após pedir ajuda aos Comandantes do 28º BC, após vasculhar o Arquivo Público de Sergipe, o Arquivo Público de Aracaju, o Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe, a Biblioteca Pública de Sergipe, a Universidade Federal de Sergipe, a Universidade Tiradentes sem nada encontrar pertinente ao soldado Christino, finalmente no Arquivo Geral do Judiciário de Sergipe, encontrei o Processo Criminal, mais de perto a Apelação Criminal nº 1.043, endereçada ao Juiz Federal da Secção da Bahia, Dr. Paulo Martins Fontes, datada de 12/02/1925, com a consequente Denúncia apresentada pelo Ministro Relator Artur Ribeiro, contra todos os amotinados da Revolta Sergipana de 13 de julho de 1924, rica documentação composta em 19 volumes, cujos documentos me debrucei e os fotografei em três semanas de trabalho, mas que, infelizmente nada encontrei em relação ao soldado Christino Gomes. Vale ressaltar que um dos volumes contém os nomes de todos os soldados engajados no 28º BC naquelas datas próximas e até os voluntários que participaram do referido levante, como também não consta o nome dele nas páginas do pagamento mensal dos referidos pracinhas, encontradas noutro volume do dito processo que é originário da 1ª Vara Criminal de Aracaju em primeiro grau. Desse modo, concluo o meu pensamento dizendo que mesmo não havendo uma prova documental que comprove esse feito, Corisco, usando um nome falso pode ter servido ao Exército Brasileiro e participado do famoso Levante Sergipano. Essa tese é reforçada pelo fato de ter ocorrido meses antes uma briga na Estação Ferroviária da cidade de Pedra, hoje Delmiro Gouveia, entre o jovem Christino com um cabo da Policia Militar local em que o policial foi ferido na cabeça. Ou seja, com receio de ser descoberto ou receio de haver um possível processo sobre o fato e ser rejeitado, reprovado ou mesmo preso, o jovem Christino pode ter usado um nome falsificado para se tornar soldado do Exercito Brasileiro.
Noutro ponto sua mãe Dadá também lhe disse que por conta do soldado Christino ter desertado após a retomada do poder das mãos dos revoltosos, teria ele se escondido na propriedade de uma madrinha proxima a cidade de Laranjeiras, alí perto. Teria sido nessa propriedade que conheceu Lampião que por alí passava e após acerto, entrado para o bando. Uma grande novidade, sem dúvida, pois a maioria dos historiadores falam que esse fato, o fato da sua adesão, se deu mais adiante, já em Pernambuco em 1926. Ademais, para reforçar a fala da Dadá, consta da literatura, mesmo sem comprovação, uma possível passagem de Lampião em Laranjeiras em busca de tratamento para o seu olho doente, junto ao afamado médico Dr. Antônio Militão de Bragança.
Emocionante são as palavras que contam os dois nascimentos do autor: o gerado por Corisco e Dadá em meio aos carrascais do cangaço e o gerado pelo Padre Bulhões e sua irmã Angelica Bulhões no seio da sociedade de Santana do Ipanema.
Da leitura não podemos deixar de enaltecer a inteligência e a perspicácia do Padre Bulhões chamando o então Major Lucena até a sua presença para contar o ocorrido e livrar de males futuros o sertanejo emissário Pedro Ricardo que trouxera a criança “cangaceirinha” para o povo santanense. Desse modo, o referido sertanejo passou a ser protegido tanto pelos cangaceiros quanto pelos policiais volantes.
Nota-se no bojo da obra que o povo santanense se aglomerava em fila para ver o menino “cangaceirinho” pensando ser ele diferente dos outros. Teve até um cidadão que se decepcionou ao ver que o menino só tinha uma cabeça, duas pernas, dois braços e uma torneirinha.
O capitulo que retrata o batizado do menino Sílvio Bulhões é novamente emocionante, pois além de demonstrar o grande amor dos seus pais biológicos ao viajarem disfarçados durante uma noite inteira para de longe assistirem a cerimônia, ainda mostra o choro engasgado de Corisco ao “pigarrear” sem fim, enquanto a Dadá se derramava em lagrimas.
Gratificante foi tomar conhecimento que a fotografia do menino Sílvio Bulhões terminou virando salvo-conduto para os santanenses da zona rural e os sertanejos andantes daquelas paragens. Fotografias e mais fotografias eram entregues a quem desejassem para se livrarem dos males dos cangaceiros, e quem sabe não teria salvado algumas vidas?…
Quanto ao casamento de Corisco e Dadá, o autor termina tirando dúvidas, vez que historiadores renomados como Antônio Amaury Corrêa de Araújo e Estácio de Lima, dentre outros disseram no seus livros que o referido casamento tinha sido celebrado pelo Padre José Bruno da Rocha da Paróquia de Porto da Folha, quando na verdade ele era da Paróquia de Gararu. Dito engano ou atrapalhação, me fez procurar junto a Paróquia de Porto da Folha tal documento, nada lá encontrando. Resta agora algum pesquisador conseguir junto a Paróquia de Gararu referido documento, com o privilégio de já saber que o fato teria ocorrido em 16 de fevereiro de 1940.
O menino Sílvio Bulhões, apesar de bem cuidado e paparicado pelas pessoas de bem de Santana do Ipanema, infelizmente também sofreu preconceito partindo de pessoas inescrupulosas que o tratavam com desdem e criticas malidicentes por ser filho do impiedoso cangaceiro Corisco, fatos que até fizeram com que ele também passasse a repudiar o próprio pai.
Maravilhosas e enigmáticas são as palavras que misturam o irreal com o real e faz com que o menino Sílvio Bulhões, aos 9 anos de idade, veja pela primeira vez em sonho e logo em fotografia a mesma figura do seu pai Corisco. São palavras do filho emocionado Sílvio Bulhões: “Aquela semente microscópica que eu havia plantado em meu coraçãozinho, o gérmen inicial de admiração pelo meu futuro herói, naquele dia, metamorfoseou-se em uma pequena árvore, é bem verdade, mas que se transformaria, com o decorrer dos anos, num imenso Flamboiã, muitíssimo maior que aquele gigante de nossa casa e que, ainda hoje, continua a me fortalecer sombra cada vez mais reconfortante.”
Os sucessivos acontecimentos da visita surpresa que o jovem Sílvio Bulhões fez a sua querida mãe Dadá em Salvador, é algo que mexe com o emocional com o mais duro leitor. De derramar lágrimas.
Nota-se a tristeza estampada do autor ao pronunciar as palavras ditadas pela sua mãe Dadá quanto ao episódio da Fazenda Patos em que por ordem de Corisco foram decapitadas seis pessoas da família Ventura em suposta vingança pela morte de Lampião. O Vaqueiro e coiteiro Domingos Ventura jamais traiu Lampião. Na verdade o Corisco foi “emprenhado pelos ouvidos” pelo verdadeiro traidor, o Joca Bernardo, que para se livrar de morte certa jogou a culpa para Domingos Ventura. Desse episódio o Sílvio Bulhões apesar de decepcionado com o pai Corisco tem orgulho da sua mãe Dadá por ter interferido desafiando o companheiro chefe e salvo da morte os filhos menores de Domingos Ventura. Nesse ponto crucial vemos uma novidade, ou seja, a Dadá chegou na Fazenda Patos atrasada por conta da sua burra que estava “empacando”. Tivesse chegado mais cedo poderia ter aconselhado melhor o Corisco a repensar os seus atos de extremo ódio e covardia.
Como novidade vimos também que quando Corisco e Dadá iniciaram fuga para o centro do país em 1941 pretendiam levar consigo o filho Silvio Bulhões, fato não ocorrido por uma providencia Divina. Caso contrario ele também estaria no campo de batalha, na linha de fogo, que gerou a morte do seu pai pelas tropas do tenente Zé Rufino.
Os capítulos finais reforçam todo o amor do autor para com o seu pai Corisco na incessante luta para acabar de vez com a exposição das cabeças dos cangaceiros no Instituto Nina Rodrigues em Salvador, culminando com a mais recente atitude, ou seja, depositar as suas cinzas no mar de Pajuçara.
Nas nossas visitas ao amigo Sílvio Bulhões tive a honra de ter em minhas mãos a urna contendo as cinzas de Corisco e mais ainda, fomos convidados para a fazer parte da comitiva que assistiria o sepultamento em definitivo dos restos mortais de Corisco em 25 de maio de 2013 em Pajuçara, entretanto, por motivo de força maior não pudemos nos deslocar de Aracaju para Maceió nessa data.
Concluo afirmando que no geral o autor Sílvio Hermano de Bulhões produziu uma grande e importante obra que por certo servirá de parâmetros para os pesquisadores atuais e das novas gerações.
Aracaju, 16 de fevereiro de 2023.
Archimedes Marques
Presidente da Academia Brasileira de Letras e Artes do Cangaço.
CORISCO E DADÁ NA VISÃO DO FILHO SÍLVIO HERMANO DE BULHÕES
ArtigoArchimedes Marques Presidente da Academia Brasileira de Letras e Artes do Cangaço 17/02/2023 - 01h 41min
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