Projeto Fábula no Atacama (IV)

Contos

por Fernando Soares Campos(*)

Antecipe-se ao lançamento da nossa Fábula no Atacama acompanhando a produção do roteiro, emocionando-se e, se possível, sugerindo alterações ou inserções de cenas, diálogos, sequências, temas musicais ou qualquer outra ideia que possa contribuir para o aperfeiçoamento desta quase perfeita obra cine-literária.

***

A mídia empresarial elegeu rádio pirata como inimigo nº 2 da navegação aérea brasileira, colocando-o no rol das principais ameaças de desastre envolvendo aeronaves. Falam até que o poder bélico de uma emissora de rádio clandestina vai além dos temíveis drones equipados com aterrorizantes mísseis nucleares. Segundo informações não confiáveis dos telejornais, ondas de rádio pirata abateriam uma aeronave com maior precisão que a mira cirúrgica dos games de guerra atualmente utilizados contra os povos de diversas partes do mundo.

Há quem acredite que se o sofisticado sistema de ondas piratas fosse adotado pela FAB, reduziríamos despesas com a compra de armamentos e munição (tudo obsoleto, quando comparado à frequência de uma emissora clandestina de qualquer favela brasileira) e não precisaríamos ter gasto mais de cinco bilhões de dólares na compra dos aviões-caça Gripen de fabricação sueca.

Em nome da segurança nacional e proteção de nossas fronteiras, o Ministério da Defesa deveria autorizar a indústria bélica a piratear os equipamentos das rádios piratas e adaptá-los aos instrumentos de comunicação de qualquer aeronave convencional. Assim, até mesmo os velhos Mirage da nossa Força Aérea ressuscitariam das próprias sucatas, como ave fênix, das cinzas.

Como já dissemos, rádio pirata foi eleita pela mídia como inimigo nº 2 da navegação aérea. O nº 1, na versão latino-americana de Star Wars, comprovadamente é o urubu.

Certa ocasião, a cantora Gal Costa voava para fazer um dos seus brilhantes shows; porém, tão logo o avião levantou voo, precisou voltar ao aeroporto, porque fora atingido de raspão por um urubu. A bem da verdade, o urubu, este, sim, é que havia sido atingido em cheio pela aeronave.
 
Gal virou uma arara, chegou a pedir que se abrisse uma temporada de caça ao carniceiro, desencadeando-se campanha nacional sob o lema “O céu é do avião, urubu é do lixão”.
 
Acontece que a lei que protege o poético uirapuru é a mesma que defende os sagrados direitos do prosaico urubu.

Mas a ideia de Gal Costa não era lá tão original. No início do século passado criou-se um movimento com o propósito de pressionar as autoridades a exterminar urubus urbanos.

Em 1937 o Dr. Agenor Couto de Magalhães chefiava a Secção de Caça e Pesca da Indústria Animal e era presidente do Clube Zoológico do Brasil. Ele se dedicou a pesquisas sobre os hábitos dessa agourenta ave e concluiu que se tratava de um ser bem mais útil à sociedade do que metafóricos urubus, aqueles que nos jardins passeiam a tarde inteira entre os girassóis.

O urubu de verdade é o mais zeloso habitante deste nosso planeta, pois, segundo o Houais, zeloso é aquele que demonstra cuidado, esmero, atenção e aplicação no que faz; cuidadoso, diligente; que vigia, vela, permanece atento; cauteloso, precavido... Quem ousa tirar uma só dessas qualidades do nosso zelador-mor?

Alguém se habilita a competir com o urubu a fim de medir seu grau de zeladoria? Atreva-se quem nunca cometeu uma só dessas infrações: cuspir, escarrar ou urinar em vias públicas; jogar papel, ponta de cigarro, latinha de refrigerante, sacola de plástico, garrafa pet ou qualquer outro material descartável em rio, lago, praia ou mata; quem, ao volante, jamais atropelou, aleijando e até matando, gato, cachorro, cobra, sapo, lagarto ou  mariposas aos montes.
 
***
 
Vamos ao que realmente nos interessa...
 
Luz! Câmera! Claquete... Ação!

005 ─ Deserto do Atacama ─ Vale da Morte ─ alta madrugada

O que para reles humanos pode vir a ser um tenebroso pesadelo, para o nosso urubu faminto não passa de natural e prazerosa letargia onírica, Hitchcock à Disney, assim vivida, experimentada, pronta para servir aos seus pares de espécies diversas, ensinando-lhes o que pode vir a acontecer caso não tomem os cuidados que a vida exige.

O urubu faminto dorme no topo de uma elevação rochosa, pescoço caído, cabeça encostada no peito, ressonando “croacs”.

Efeitos especiais: Um espectro luminoso em forma de urubu se desprende do corpo físico do urubu faminto e alça voo. A imagem do espectro voando na noite estrelada ondula, ondula, ondula... até que, estável, revela um pântano em que predomina vegetação de manguezal. O espectro do urubu pousa num galho retorcido.
 
Corta para plano geral: Animais, insetos e pássaros notívagos notivagam, seres aterrorizantes e aterrorizados movimentam a cadeia alimentar daquele nicho ecológico. Serpentes deslizam silenciosas em busca de suas presas; perspicazes corujas enxergam ingênuas rãs que acreditam que ela está a lhes admirar o canto, até serem alçadas e viajarem direto para o lar-doce-lar da coruja, onde seus filhotes esperam a sagrada ceia. Pirilampos pirilampam produzindo efeitos luminosos. Grilos, sapos e rãs fazem a trilha sonora.

Ponto de vista: O olhar atento do urubu espectral vagueia por entre a folhagem...

Zoom: Por entre retorcidos galhos do manguezal, a câmera enquadra um ninho de urubus-aquáticos (se urubus-aquáticos existirem). A mãe-urubu cochila enquanto os filhotes tentam enxergar na escuridão alguma coisa que possa servir os seus sôfregos apetites.

O espectro do urubu faminto aproxima-se do ninho e encara os filhotes, faz bico torto e olhar de maldade cênica, tenebroso, sinistro, deixando os filhotes quase arrepiados, pois ainda não dispunham de penas, e os escassos pelos caíram, só de pensar em serem engolidos por aquela criatura que de início lhes parecia familiar.
 
O fantasmagórico urubu abre as asas e solta um “Croooaaac!”.
 
Tradução legendada: “Este é o mundo que lhes espera! Se não se cuidarem, o final pode ser draconiano: bico por bico, gula por gula!”.
 
Na mente dos filhotes ficou a lição; no coração do urubu faminto, a consciência do dever cumprido.

006 ─ Deserto do Atacama ─ Vale da Morte ─ alta madrugada

Pico do monte onde o urubu faminto ainda está adormecido. Sua alma, que vagueou em sonho, cruza a vermelhidão do amanhecer no céu atacamenho e, num lace produzido por efeito especial, reincorpora-se ao seu corpo físico.

O urubu faminto tremula, abre as asas, deixando escapar odores milenares, coisa tipo amostra grátis de cheiro de múmia. Sonolento, bicoceja e grasna:

— Croooaaac!
 
Tradução legendada: “Para os amigos, limpinho e cheiroso; para os inimigos, fedido e horroroso”.

007 — Vale da Morte — Deserto do Atacama — alvorecer

No topo da montanha, o urubu faminto desperta, aprecia a paisagem pensa no preá faminto, preocupa-se com ele, pois este a cada dia fica mais minguado.

Ansioso, o urubu alça voo e, num átimo, pousa na beira do buraco-abrigo do preá.
 
O preá agoniza, mas se sente privilegiado por ainda estar vivo. Finge não ter visto a chegada do urubu e simula delírio febril:

— Kem-Kem, cadê você, Kem-Kem?!

O urubu olha para os lados e para trás, tentando localizar alguém ou alguma coisa que se possa chamar de Kem-Kem. Não vê nada.

— Quem diabos é Kem-Kem?! — pergunta o urubu.

O preá continua representando:

— Bandido! Bandido, você está aí?!

— Bandido?! Esse atrevido está me chamando de bandido?! — além de confuso, o urubu fica contrariado.

— Kem-Kem, Bandido, cadê vocês?! — delira de araque o preá.

O urubu faminto grita:

— Preá, acorda! Acorda, preá!

— Hã! Quem está me chamando?! É você, Kem-Kem?!

— Hummm...

— Ah, é você, Bandido?!

— Peralá, não é nada disso! Sou eu, o urubu faminto!

— Desculpe, é que ouvi “muuu”, aí pensei que fosse o Boi Bandido.

— Boi Bandido? Que Boi Bandido?! Dá pra você me explicar o que está acontecendo?

— Eu estou ardendo em febre, ouvi as vozes dos meus amigos da excursão, pensei que eles haviam me encontrado. Acho que tudo não passou de uma alucinação...

— Amigos da excursão? Alucinação?!

— Sim, o brasileiro Boi Bandido e o pato chinês Kem-Kem!

— Boi brasileiro e pato chinês aqui no Atacama?!

— Sim, eles faziam parte do grupo de turistas do qual eu participava. Vieram em busca de cura nas águas dos geysers.

— Cura? Cura de quê?!

— Não sei bem... talvez artrite... ou enxaqueca crônica...

— Você observou comportamentos estranhos nesses seus amigos turistas?

— Nada de anormal... Bandido babava como qualquer boi, e Kem-Kem era fanho como qualquer pato.

— Boi babando e pato fanho?! — o urubu recuou alguns passos. — Você se relacionou com eles por muito tempo?

— Só uma semana, eram meus melhores amigos na excursão, até que me desviei do grupo e vim parar aqui neste fim de mundo... Ui! — o preá geme.

— Que houve? Não está se sentindo bem?!

— Não é nada, não. Só uns sapinhos, aqui, ó — o preá estica a língua —, tá vendo? Só uns sapinhos...

— Não, não dá pra ver nada, mas noto que você está um pouco fanhoso...

— Resfriado, só um resfriadozin... zin... zin... a... a... a... aaatchim! ...zinho.

Ágil, o urubu bate as asas e dá um salto pra trás.

Contrarregra: Splash!

Sonoplastia: 15 segundos de silêncio.

— Você ainda está aí? — pergunta o preá.

— Não!

— Hein?!

— Quer dizer, sim!

— Quer conversar mais um pouco? Eu sei que estou resfriado, como o Kem-Kem, e com febre e afta, como o Boi Bandido, mas você pode se aproximar mais um pouco...

— Não, prefiro ficar por aqui mesmo.

Close do urubu. Em zoom lento a câmera aproxima o foco até enquadrar os seus olhos, que se transformam em telas de televisor com imagens repetidas: um papagaio âncora de um telejornal fazendo a chamada do noticiário.

Papagaio âncora do telejornal:
 
“Em Londres, oficiais de Estado Maior da OTAN anunciaram medidas para conter o avanço de coronavírus, gripe aviária, a gripe suína H1N1, febre aftosa, dengue, zica, febre amarela, cólera, malária, tuberculose, entre outras pragas, nos países da União Europeia. Caças bombardeios abaterão qualquer ave asiática que tentar invadir o espaço aéreo europeu. Enquanto isso, uma força-tarefa comandada pelo porta-aviões USS Ranger the Teeths interceptará qualquer navio na rota Brasil-Europa, a fim de confiscar cargas que contenham produtos alimentícios à base de carne bovina ou avícola. Brasileiros estão proibidos de entrarem em países da União Europeia”.

O urubu perdeu o apetite. Desliga.

— Estou de saída... Sinto muito... Estimo suas melhoras.
 
O urubu faminto alçou voo em direção ao topo da montanha, onde espera que o preá melhore da gripe e, saudável, morra de fome e sede.
 
***
 
Moral parcial: Lamentar a enfermidade de alguém e estimar suas melhoras nem sempre significam manifestações de solidariedade.
 
***
 
08 – Vale da Morte – Deserto do Atacama – tarde
 
O urubu faminto, pousado num dos montes do Vale da Morte, arrota e ergue as asas.
 
Lá embaixo, abrigado numa ligeira depressão do terreno, o preá agonizante, apesar de estar há dias sem uma refeição, desperta de sua sesta vespertina...
 
Animado, o urubu faminto alça voo e logo está espiralando numa forte corrente de ar. Depois de alguns ziguezagues, despenca em direção ao abrigo depressivo do preá agonizante.
 
“Será que o bichinho já bateu as patinhas?” – imagina, em queda livre, o esperançoso urubu faminto.
 
O pouso da agourenta ave, à beira do buraco em que se encontra o Preá, provoca trepidante barulho.
 
Contrarregra: Plaft! Ploft! Pluft!
 
O preá sobressalta-se:
 
– Que é que isso, meu Deus! Eu pensava que aqui no Atacama só tinha tempestade de areia, mas parece que dá terremoto também!
 
Pousado em paz, o urubu faminto se aproxima um pouco mais da beira do buraco do preá e fala:
 
– Ué! eu pensei que você não pensava! Mas é assim mesmo, a gente morre aprendendo, né? Quer dizer... vive aprendendo, e, se você pensa, ainda existe...
 
– Que é que você acha? Eu ainda existo, você, pelo visto, ainda existe, logo, nós existimos. Não é mesmo?
 
– Desculpa, mas eu só queria conferir se minha refeição estava pronta...
 
– Refeição?! De que refeição você tá falando?
 
Aí foi a vez da necrófaga ave agourenta pensar e soltar suas interjeições:
 
– Não! Não se perturbe! Não há motivo para pânico! Fique tranquilo! – súbito, o urubu entendeu que poderia estar cometendo ato falho e baixou o tom: – Meu caro preazinho, eu só estou esperando uma entrega do China in Box...
 
– China in Box?! Ah, acho que entendi! Estamos no Oeste da América do Sul, e você deve ter pedido sua refeição de um restaurante da antiga Puerto Stroessner, hoje Ciudad Del Leste. É isso?
 
O urubu faminto soltou um “croac!”, alguma coisa equivalente a um pum, só que pelo bico.
 
– Tá bem! Tá bem! Tanto quanto sei ganhar, também sei perder... Vá vivendo, aproveite o quanto puder dessa sua vida breve...
 
O urubu faminto decolou com a esperança de que, na próxima visita ao buraco do preá, sua refeição esteja pronta.

***

Episódios anteriores:

Projeto Fábula no Atacama (pouca carniça pra muito bico)

Projeto Fábula no Atacama (II)

Projeto Fábula no Atacama (III) 

(*)Fernando Soares Campos é escritor, autor de "Saudades do Apocalipse  ̶  8 contos e um esquete", CBJE, Câmara Brasileira de Jovens Escritores, Rio de Janeiro, 2003; e "Fronteiras da Realidade  ̶  contos para meditar e rir... ou chorar", Chiado Editora, Portugal, 2018.   

Comentários