Estou obsessivamente empenhado no projeto cine-literário Fábula no Atacama, diálogo entre um urubu faminto e um preá agonizante. É realmente um projeto ambicioso, que certamente se tornará um marco entre alguma coisa e coisa alguma, aquilo que nunca foi antes de ser. A quintessência da originalidade.
O meu editor-produtor não é nenhum mecenas, mas é apaixonado pelas artes, tanto que se tornou um abnegado executivo com MBA em Economia e Gestão em Arte para o Mercado. Ele exigiu que eu obtivesse patrocínios, a fim de viabilizar essa megaprodução, para não dependermos apenas do infalível sucesso de bilheteria e do garantido faturamento das livrarias.
Conforme informei semanas atrás, enviei proposta para os departamentos de marketing e comunicação de diversas empresas. Apesar de já ter-se passado mais de um ano, ainda espero alguma resposta positiva. Essas coisas não são decididas de uma hora pra outra, geralmente são submetidas a deliberações de conselhos administrativos e inseridas em futuras campanhas publicitárias. Mas a verdade é que eu não deveria ter assumido esse compromisso, visto que se trata de área específica do meu editor-produtor, um expert em captação de recurso para produção cultural. E que ninguém duvide de um profissional que já conseguiu a aplicação da Lei Rouanet para turnês de grupos funk, duplas sertanejas e bandas de axé music. Assim sendo, deixo as funções de captador de recursos para quem tem experiência no ramo. Cada um no seu quadrado. A partir de agora, passo a me dedicar exclusivamente às atividades tocantes às minhas atribuições na condição de autor-diretor deste projeto.
***
Creem os materialistas que o pós-morte é apenas uma passagem para o vazio, uma viagem ao nada, sem volta. Ou mesmo uma viagem sem volta ao nada. Enquanto para os religiosos, o último suspiro liberta a alma da pesada matéria que a aprisiona a este mundo e lhe dá acesso à verdadeira vida, paradisíaca ou infernal. Quem morrer verá. Ou não, conforme creem os materialistas.
Também dizem que os moribundos fazem retrospectivas mentais de suas existências, recordando seus principais feitos e desfeitos. Mas o que teria um preá agonizante a relembrar? Provavelmente as roeduras de cada dia e os chiados de cada coito. Entretanto esse não é o caso de um fabuloso preá turista brasileiro perdido nos confins do Vale da Morte, no Deserto do Atacama. O nosso preá agonizante tem histórias pra contar, pois incríveis aventuras viveu e tantas outras, fantásticas, ouviu.
003 — Deserto do Atacama — Vale da Morte — noite
Com a chegada da estrelada noite atacamenha, o urubu faminto recolhe-se ao topo de uma das elevações que ladeiam o corredor do Vale da Morte; enquanto o preá agonizante, acomodado numa pequena depressão do terreno, adormece e sonha revivendo os mais felizes momentos de sua infância nos arredores de Taubaté, interior paulista.
Close do preá adormecido...
A imagem ondula, ondula, ondula... até que, estável, exibe o universo onírico do preá:
A mãe-preá chegando ao ninho. Quatro filhotes, há poucas semanas de nascidos, entre eles o preá agonizante, tateiam na semiescuridão do lar, ávidos pelas tetazinhas maternas. Seus três irmãos se apoderam dos bicos mais fartos, na parte traseira, sobrando-lhe as glândulas menos lactíferas, próximas às patinhas dianteiras da mãe. Por isso ele se tornou o filhote mais franzino da ninhada. Seus irmãos o consideravam um tolo, visto que nunca disputava a fartura das mamas da retaguarda. O que nenhum deles percebia era que a sua atitude, aparentemente passiva, tinha objetivos pragmáticos: naquela posição ele, bem ou mal, alimentava-se e, de lambujem, gozava as carícias da mãe-preá, deleitava-se com as lânguidas lambidas maternas. Contudo, além do conflito edipiano e da necessidade alimentar, o preazinho mirrado preferia a primeira fila porque a sua mãe lhe contava maravilhosas histórias de ninar. Estando ali bem próximo da fonte sonora, ele não perdia um só trecho dos fascinantes contos que a mãe-preá narrava com a competência de uma Sherazade.
Plano geral: a mãe-preá deitada e os filhotes sugando-lhe as mamas com sofreguidão. Corta para close do preazinho franzino, único a sorver com parcimônia.
Mãe-preá: — Era uma vez...
Fim do sonho.
Close do preá fazendo bico em movimento de abre e fecha, como se estivesse numa pega de sugar as tetazinhas da mãe.
Ele desperta pela madrugada piscando seus olhinhos de rato. O breu da noite atacamenha o traz de volta à realidade, e o doce sonho se transforma em melancólica lembrança. Uma lágrima brota no canto do olho esquerdo, enquanto o direito se agita, dilata-se e vê a gotícula crescer, rolar e precipitar-se no ar, cintilante, em câmera lenta... A miúda língua do preá agonizante surge estendendo-se progressivamente, milímetro a milímetro, quadro a quadro, e a gotícula se choca sobre ela, fragmentando-se espetacularmente em tantas outras partículas...
Contrarregra: Ploc!
A minúscula língua, ágil, se recolhe...
Contrarregra: Shupt!
Legenda (as palavras surgem uma a uma):
AS LÁGRIMAS LAVAM A ALMA
E EVENTUALMENTE SACIAM A SEDE
Não se sabe bem qual a razão predominante, se a saudade ou a sede, mas naquela noite estrelada o preá chorou até o amanhecer.
004 — Deserto do Atacama ─ Vale da Morte — dia
Sol escaldante, rajadas de vento transportam sucessivas nuvens de poeira. O preá desperta, pisca seus olhinhos de hamster e vê aquilo que mais temia: o urubu faminto pousado na borda de sua cavidade-abrigo, observando-o. Pensou em cumprimentá-lo, porém imaginou que desejar “bom dia”, naquelas condições, poderia soar ironia. Optou por apenas murmurar um “oi!”, mas o faz num tom extremamente pesaroso, tanto que o urubu achou que ele estivesse gemendo de dor.
— Croac croooac? — perguntou o urubu.
— Falo sim, sou poliglota, mas preferia que conversássemos num dos idiomas humanos. Você fala português?
— Rouc croc! – respondeu em urubuês, mas logo corrigiu: ─ Ah, desculpe... Falo sim! Sou brasileiro, também sou multilíngue e experiente ator, já trabalhei em diversas fábulas.
— Céus! Minhas suspeitas estão se tornado realidade!
─ O que você quer dizer com isso?!
─ Tenho a impressão de que já vi você no telão. Atuou em “O urubu e o papagaio”?
— Fui o único intérprete, fiz duplo papel.
— Assisti... e jamais esqueceria o perfeito desempenho de ambos os personagens. Só não entendo como conseguiu tal proeza...
— Caracterizado como um louro falador e sob a minha própria identidade. O resto ficou por conta de efeitos especiais, jogo de espelhos.
— Bem, eu queria saber mesmo é como conseguiu representar, numa mesma obra, personalidades tão diferentes e, até certo ponto, antagônicas.
— Fiz laboratório.
— Laboratório?! Onde?
— Brasília.
— Ah, Brasília... Congresso Nacional?
— Sim, duas semanas na Câmara e uma no Senado.
— Nossa! Deve ter assimilado muitas facetas!
— Realmente, hoje sou considerado um ator multifacetado.
Apesar de conhecer a natureza necrofágica do urubu, o preá agonizante não ignorava o ditado “o apressado come cru” e temia que, para um urubu faminto, isso pudesse traduzir-se em “o esfomeado come vivo”. Precisava distraí-lo. E não havia melhor maneira que apelar para o ego de um ator vaidoso.
— Eu daria meus últimos momentos de vida para assistir a uma de suas apresentações ao vivo.
O urubu faminto expressou gesto de falsa modéstia: encolheu-se e moveu a cabeça para os lados, mantendo um sorriso encabulado no bico torto.
— Pena que não tenha aqui comigo um pedacinho do couro da minha última refeição, pois eu poderia lhe dar um autógrafo.
O preá se abala com a real possibilidade de vir a ser a próxima refeição do urubu faminto.
— Não! — engasgou-se —. Quer dizer, não mereço tanto... Sou um reles preá em extinção... Provavelmente o último da espécie aqui no Atacama. Ficaria satisfeito se pudesse assistir a algumas de suas performances.
O urubu olhou para o preazinho moribundo e, baseado na Declaração Universal dos Direitos Humanos, decidiu atender o último desejo de um condenado à morte.
— Está bem. Veja esses trechos de “Um urubu no Planalto Central”.
Fazendo poses, caras e bicos, o urubu finge atender ao telefone, conceder entrevista, discursar numa tribuna, assinar papéis, interrogar em CPI... Por último, a melhor de suas interpretações: embolsar propina, propina, propina... de dez, vinte, trinta, quarenta e até cinquenta por cento...
Tão distraídos estavam que foram surpreendidos pelo entardecer anunciando mais uma estrelada noite atacamenha. O urubu faminto despediu-se, recolhendo-se ao topo da montanha, onde, pacientemente, aguardaria a sua refeição atingir o ponto ideal.
O preá agonizante, saudoso e sedento, chora. Não se pode determinar a razão predominante, se saudoso ou sedento, ele apenas chora por mais uma noite inteira.
***
Episódios anteriores:
Projeto Fábula no Atacama (pouca carniça pra muito bico)
Projeto Fábula no Atacama (II)
(*)Fernando Soares Campos é escritor, autor de "Saudades do Apocalipse ̶ 8 contos e um esquete", CBJE, Câmara Brasileira de Jovens Escritores, Rio de Janeiro, 2003; e "Fronteiras da Realidade ̶ contos para meditar e rir... ou chorar", Chiado Editora, Portugal, 2018.
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