O torturador que diz não temer a verdade (Parte 2)

Artigo

por Fernando Soares Campos(*)

Hoje me enchi de disposição e resolvi “traduzir” mais alguns rascunhos que rabisquei em dezenas de folhas de papel, enquanto alimentava a esperança de localizar o sargento Túlio, ex-companheiro de bordo no Submarino Bahia – S12 –, no final dos anos 1960 e início dos 70; na época, provável agente do Cenimar. Acabei encontrando-o. Está tudo registrado nessa papelada. Mas, enquanto tento entender os rascunhos que tratam do meu encontro com ele, o que aconteceu de forma “cinematográfica”, preciso, antes, contar determinado episódio ocorrido após minha saída da Marinha.

***

Em 2008, a presidenta Dilma Rousseff, então ministra da Casa Civil, falou que se orgulhava de ter mentido sob tortura, quando foi presa no final dos anos 1960, por fazer parte de grupo insurgido contra a ditadura civil-militar. “Me orgulho de ter mentido, o que estava em questão era a minha vida e a de meus companheiros. Aguentar tortura é dificílimo”, disse a ministra.

É preciso coragem para mentir àqueles que estão tentando lhe arrancar informações sob tortura, há que se ter talento para convencer os algozes. Até porque os gorilas, provavelmente, não acreditam nem mesmo quando o torturado está falando a verdade. Evidente, pois devem imaginar que a vítima está apenas querendo se livrar dos suplícios. Coragem ainda porque, se eles acreditarem no que lhes foi dito e em seguida descobrirem que foram enganados, o interrogado certamente será submetido a tratamento ainda mais violento.

Assim como a militante Dilma Rousseff mentiu no momento da apuração dos fatos e formação do processo judicial que viria a condená-la por participar de ações contra o regime ditatorial, eu também, em 1974, menti para os inquisidores de uma auditoria militar, prestei falso testemunho, com o propósito de livrar um amigo que se encontrava preso, enquadrado na Lei de Segurança Nacional, acusado de desacato à autoridade de um oficial da Marinha de Guerra e suspeito de participar de ações contra o modelo político-ideológico vigente.

Mas aquele não era apenas um amigo dentre as inúmeras amizades que conquistei mundo afora. Tratava-se de um companheiro de infância, desses que a gente considera tanto quanto a um irmão consanguíneo. No Rio de Janeiro, éramos parceiros de farra, penetras em festas de aniversário ou casamento, se convidados não fôssemos.

Ele havia entrado na Marinha um ano antes de mim, porém fora reformado por ter apresentado problemas de ordem psiquiátrica. E eu, depois de seis anos na ativa, tinha recebido baixa da Armada há bem pouco tempo.

Naquela ocasião, meu amigo havia feito amizade com um jovem nicaraguense. Juntos faziam um curso técnico em instituição de ensino da Marinha.

O nicaraguense carregava o peso de ser membro da família do sanguinário ditador Anastácio Somoza Debayle, “parente distante”, como dizemos por aqui. Ele costumava “desculpar-se” de tal relação parentesca dizendo: “Más cerca están mis dientes que mis parientes”.

Ninguém poderia condená-lo simplesmente pelos laços de família com o déspota, tratava-se de uma ovelha desgarrada do rebanho, um jovem que tinha simpatia pelo movimento de contracultura. Apesar de não se poder considerá-lo propriamente hippie, vestia-se e agia como tal, exibia uma cabeleira esvoaçante e era chegado a um papo-cabeça.

O curso era noturno. Numa noite daquelas, os dois saíam da sala de aula quando foram abordados por um oficial (primeiro-tenente) responsável pela disciplina da escola. O oficial chamou a atenção do nicaraguense, informando que, se ele quisesse continuar frequentando as aulas, deveria cortar o cabelo.

Mesmo preferindo ser excluído do curso a ter que se desfazer de um dos símbolos de protesto contra os valores tradicionais e, principalmente, de orientação militar, ele assentiu balançando a cabeça e esboçando leve sorriso, que, ao oficial, sugeriu uma expressão de deboche.

― Está zombando de mim?! ― perguntou o tenente.

― Não, senhor, eu não faria isso, mas considero uma exigência excessiva.

Falava em bom português, mas com o inevitável sotaque capaz de confundir pessoas menos acostumadas a ouvi-lo.

O tenente reagiu:

― Agressivo, eu?! Ora, moleque, eu até que estou lhe tratando bem...

― Ele disse exigência “excessiva”, tenente, e não, “agressiva” ― aparteou meu amigo acentuando os quase-parônimos.

― Não estou lhe perguntando nada! ― retrucou o oficial. E concluiu dirigindo-se ao nicaraguense: ― Não cabe a você ou a qualquer outro aluno julgar o nosso regulamento interno. E se quiser continuar frequentando este estabelecimento, trate de cortar essa juba! ― o tenente já se encontrava nas raias da encolerização.

O meu amigo não se conteve e decidiu comprar a briga:

― O senhor está abusando da sua autoridade, tenente ― falou com explícito tom de zanga.

O oficial não estava acostumado a ser contestado por um aluno, menos ainda naquele tom e com aquele tipo de acusação.

― O que você está querendo dizer com isso?! ― pareceu não acreditar no que ouviu.

O nicaraguense ainda tentou evitar o acirramento da discussão:

― Vamos embora, depois eu decido se corto o cabelo ou se continuo o curso.

Os dois fizeram menção de se afastar deixando o local. O tenente gritou:

― Fiquem onde estão! Eu ainda não dispensei vocês!

O jovem estrangeiro deteve-se sob os gritos do tenente; meu amigo, porém, continuou caminhando, em claro desafio à autoridade.

Os berros do tenente despertaram a atenção dos funcionários civis e militares que trabalhavam nos setores administrativos da escola. Alguns marinheiros, cabos e sargentos já se encontravam no corredor, ao lado do oficial, prontos para atender ao seu comando.

― Detenham esse sujeito!

Foi o suficiente para que três de seus subalternos alcançassem o meu amigo e o contivessem.

Imprensado contra a parede, ele reagia com os mais obscenos palavrões. Em poucos minutos uma patrulha do Corpo de Fuzileiros Navais chegou ao local e o levou para a viatura estacionada em frente à escola, sob a sua resistência física (pouco significativa para os bem treinados fuzileiros) e veementes protestos, uma mistura de impropérios e palavras de ordem contra a ditadura militar.

Esse caso ocorreu em meados de 1973, coincidindo com o momento de minha baixa da Marinha. E essa história me foi contada por um dos irmãos do meu amigo.

Eu estava de partida, retornava para minha terra natal, pretendia tirar férias por tempo ilimitado, até que escolhesse novo rumo para as minhas aventuras mundo afora (desde muito jovem, antes de ingressar na Marinha, eu costumava botar o pé na estrada, sem paradeiros preestabelecidos). Antes de viajar, tentei visitar o meu amigo no presídio da Ilha das Cobras, mas não obtive permissão. Viajei.

No início de 1974 ele ganhou o direito de responder ao processo em liberdade.

***

Os sertões do Nordeste não eram tão isolados do mundo como os que não conheciam a região podiam imaginar. Mesmo naquela época, nas cidades mais remotas, lá onde o vento faz a curva, os bailes eram animados por bandas de garagem, formadas por jovens das próprias comunidades do interior. Para os eventos de maior expressão, contratavam conjuntos musicais de centros mais desenvolvidos, e os repertórios coincidiam com os sucessos das discotecas do Rio e São Paulo. Geralmente chegavam com um pequeno atraso em relação aos lançamentos no Centro Sul.

Lá estava eu, em minha Santana do Ipanema, no Sertão de Alagoas, contando minhas histórias de marinheiro e me divertindo nos bailes do interior.

Certo dia recebi carta do meu amigo e conterrâneo, também santanense. Ele me falava que suas chances de ser absolvido eram mínimas, pois não contava com uma só testemunha a seu favor; enquanto o tenente estava coberto de razão, apoiado nos depoimentos dos subalternos e no registro de ocorrência lavrado pela guarda de fuzileiros navais. Ele me pedia para vir ao Rio depor a seu favor.

“Como assim?!”

Eu só conhecia a história contada por um dos seus irmãos, que também não assistiu aos fatos, apenas ouviu sua versão quando o visitava no presídio.

Meu amigo propunha pagar minha passagem e me hospedar em sua casa no Rio.

Falei com meu pai, contei a situação do amigo preso, a quem ele conhecia. Pedi sua opinião. Meu pai imediatamente concordou que eu deveria ir. Disse mais: “Não precisa que ele mande o dinheiro da passagem. Eu pago a passagem e lhe dou mais algum dinheiro pra se manter por uns tempos”.

Mas eu não tinha ilusões quanto à atitude do meu pai. Ele, na verdade, queria me ver longe da minha terra natal, pois sabia que, se eu demorasse muito por lá, não estaria hoje aqui contando esta história. A minha cidade natal é considerada terra de pessoas irreverentes, povo brincalhão, festivo, mas também, por mais contraditório que possa soar, observava-se ali um relativamente elevado grau de violência. Alguns amigos meus foram assassinados, geralmente por motivos banais: rixa por ciúme de mulher, calote de pequena dívida, briga de bar, entre outras hostilidades comuns ao cotidiano de qualquer comunidade.

Viajei do Sertão de Alagoas para o Rio disposto a ajudar meu amigo. Ele e mais dois dos seus irmãos moravam numa casa na Gamboa, Centro Velho da cidade, próximo à Zona Portuária.

No dia da minha chegada quase não tratamos do meu papel em sua defesa no tribunal militar, pois a gente gostava mesmo era de música.

Meu amigo tocava violão, até se esforçava e conseguia um som original. Eu gostava de compor letra e música, mesmo não sabendo tocar nem caixa de fósforo. Ele fazia os arranjos e a gente se divertia em espécies de saraus, regados a cerveja, quando a grana dava, claro.

Ele me mostrou uma poesia que fez enquanto estava preso. Não me lembro do título, mas apenas destas duas estrofes, que musiquei e ele fez o arranjo no pinho:

Passam-se os dias,

Os meses, os anos,

E a morte não vem

Pro meu desengano,

Só sofrimento

Nas mãos dos tiranos.

Meu Deus, não te esqueças,

Nós somos humanos.


Na luta diária

Que é tão desigual,

Catando migalhas

Em um milharal,

Herói neste mundo

E no espiritual,

Meu Deus, esta alma

Tornou-se imortal.

Acrescentei mais duas estrofes de minha autoria, mas eram tão ruins que nem me lembro.

No dia seguinte fomos ao escritório do dr. Guilherme, seu advogado, na Rua México.

O dr. Guilherme me disse que eu não deveria me preocupar com muitos detalhes do caso, pois teria que testemunhar, basicamente, sobre os bons antecedentes e idoneidade do réu. Mesmo assim ele me pediu para mentir só um pouquinho: eu arranjaria uma desculpa para justificar minha presença no local e diria que presenciei o final da ocorrência, o momento em que meu amigo estava sendo levado pelos fuzileiros.

Acertamos os detalhes.

Em casa, ensaiamos minha participação formulando possíveis perguntas e respostas.

“Desde quando você conhece o réu?”

“Desde que ele nasceu.”

“Como assim, se você é mais novo do que ele?!”

Aí a gente repetia tudo...

“Desde que eu nasci.”

“Ah, bom! Qual a sua opinião a respeito do comportamento social do réu?”

“Quando não bebe, dá pra conviver com ele!”

Aí meu amigo não aguentava as gozações, ficava nervoso, praguejava.

“Porra, cara! Tu leva tudo na sacanagem!”

“Fica tranquilo! Eu vou mentir pra caramba! Vou dizer que você é um cara maneiro, calmo, sereno, disciplinado, trabalhador. Digo até que vocês foram vítimas da intolerância de sua tia, aquela que costumava dizer que vocês eram uns demônios!”

Aí, tudo virava brincadeira, meu amigo pegava o violão e tome Lupicínio, Chico, Vinícius, Milton e outros assassinatos.

Finalmente chegou o dia da audiência.

Quando entramos no salão de audiência, um jovem estudante universitário estava sendo julgado. Não havia ninguém na plateia. Lá na frente, só o corpo de auditores; no centro deles, o juiz-auditor. À direita da mesa, um pouco afastado, o promotor. Uma escolta de fuzileiros navais ao lado do réu; à frente, seu advogado e um professor, testemunha de defesa, que suava em bicas para abonar a integridade moral do seu aluno, o bom comportamento, o excelente desempenho nos estudos, coisas assim. O estudante, pelo que entendi, havia sido preso no campus e indiciado por fazer panfletagem considerada subversiva.

Não demorou muito, a audiência terminou, o jovem estudante foi recolhido ao presídio e o professor foi embora.

Chegou a nossa vez.

Depois das apresentações formais, foi feita a leitura dos autos mais relevantes do processo. O advogado do meu amigo trocou umas palavras com o juiz-auditor, que era, se a memória não me falha, capitão-de-fragata. Se não me lembro bem da patente, mas não esqueço sua aparência: a cara do senador Marco Maciel, o mesmo tipo “mapa do Chile”.

O juiz-auditor fez as perguntas de praxe: se eu conhecia o réu há muito tempo e o que eu achava do seu comportamento. Exatamente como previmos. Em seguida o promotor me perguntou se eu estava no local da ocorrência. Respondi que “sim” e já começava a dizer por que apareci por lá naquele momento. Isso me valeu a primeira advertência do juiz-auditor, que não havia me informado que ele repetiria a pergunta do promotor, e só aí eu responderia. Mesmo assim me repreendeu de forma grosseira.

O promotor perguntou se eu teria ouvido o réu gritar palavrões.

Falei que sim, mas que, a meu ver, os impropérios eram gritados a esmo, sem pretender agredir a moral do oficial ou de quem quer que fosse, eram desabafos “ao vento”.

Isso me custou a segunda repreensão por parte do juiz-auditor:

“Limite-se a responder ‘sim’ ou ‘não’! Não tente influenciar a decisão deste tribunal!”

Naquele momento entendi que uma repreensão grosseira pode funcionar ao contrário, ou seja, elevar a autoestima do repreendido. Paradoxal? Pois explico. Quando senti que tinha o poder de influenciar a decisão de um tribunal daqueles, cresci, me enchi de “importância”.

Depois de mais algumas perguntas fáceis de serem respondidas até de forma descuidada, o promotor quis saber a posição da viatura da guarda de fuzileiros navais em frente à escola: “Estava com os quatro pneus em cima da calçada, ou com dois em cima e dois na pista, ou os quatro na pista?”

Eu conhecia bem o local e sabia que todas as alternativas eram possíveis. Escolhi uma delas e tasquei o “x”: “Os quatro pneus em cima da calçada”.

Devo ter feito bingo, pois o camarada não contestou.

“A viatura estava do lado direito ou esquerdo do portão?”, quis saber o promotor.

Não olhei para o réu, pois daria bandeira, mas pensei: “Vais voltar pro presídio. Só que desta vez mal acompanhado”.

Escolhi a opção “b”: “Esquerdo”.

O promotor se deu por satisfeito.

E eu muito mais!

Dias depois saiu a sentença: meu amigo foi absolvido.

Ah, ia esquecendo. Perguntei pelo nicaraguense, que deveria ter testemunhado em sua defesa. Meu amigo disse que ele foi detido para averiguação, mas evocou o parentesco com o ditador Anastácio Somoza Debayle. Checaram e confirmaram. Foi tratado como amigo.

“E você, o que aconteceu contigo naquela noite?”

“Eles me levaram para uma sala do Primeiro Distrito Naval. Quando entrei lá, vi uma placa na parede: ‘Quem disser que foi interrogado aqui e não apanhou, está mentindo’”.

***

Posso adiantar que fiz a entrevista com o sargento Túlio, hoje suboficial reformado, o torturador que diz não temer a verdade. Quem quiser conhecer os detalhes, vai ter que esperar até a semana que vem, aqui mesmo no Portal Maltanet. Os leitores que se interessarem vão saber como cheguei ao casarão do velho sargento Túlio. Aquilo lá é o mausoléu de um morto-vivo!

Beirando os 80 de idade (em 2012), o velho Túlio tinha as mesmas opiniões estereotipadas que muitos dos seus colegas sobre direitos humanos e a Comissão da Verdade.

***

A Parte 1 pode ser lida noi link abaixo:

http://www.maltanet.com.br/v2/literatura/2020/05/30/o-torturador-que-diz-nao-temer-a-verdade--parte-1

(*)Fernando Soares Campos é escritor, autor de "Saudades do Apocalipse ̶ 8 contos e um esquete", CBJE, Câmara Brasileira de Jovens Escritores, Rio de Janeiro, 2003; "Fronteiras da Realidade ̶ contos para meditar e rir... ou chorar", Chiado Editora, Portugal, 2018.

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