ÁGUAS ESQUECIDAS

Poemas

Márcio Dantas

Os olhos profundos e tristes do sertanejo
Lacrimejam diante de terrível crueldade
Morto pelo povo, em sua própria cidade
São suas águas que realizam o cortejo
A formosura que agora não mais vejo
Na memória que outrora era realidade
D’um rio antes celebrado pela mocidade
Que fora traído com um amargo beijo

Eis que agora venho para contigo chorar
Mesmo em prantos jamais te abandonarei
Sou seu maior súdito, e você é o meu Rei
Um pequeno príncipe desse reino vulgar
Percebo que muitos vieram lhe maltratar
Tentaram tirar de você a sublime beleza
Quiseram também dar cabo a sua beleza
Foi sobre você que cresceu este lugar

Esta cidade esqueceu-se da benevolência
Que praticaste em tempos de sede e fome
Saciaste muitos, engradenceste o nome
Tuas águas foram nossa maior essência
Mas eles perderam o dom da paciência
E desejaram prosperar em insensatez
Destruindo a natureza com rispidez
Sem nenhum pesar na consciência

Se eu fosse um poeta talvez expressaria
Essa agonia que sinto ao ver você doente
Rio Ipanema antes era valente, imponente!
Hoje vítima de uma impiedosa selvageria
Meus antepassados apreciavam com alegria
A imagem de sua tez límpida e transparente
Mas eu o já conheci leproso e decadente
Resultado da ignorância e zombaria

Que revolta sinto no âmago do coração
De uma terra que não soube dizer obrigado
Um torrão árido, não relembra seu passado
E não agradece o rio que lhe deu a mão
Até quando a sua vergonhosa ingratidão
Ó Santana de rios e riachos amargurados
Até quando você ficará de braços cruzados
Vendo tranquila seu pai morrer no sertão?

Teu marido outrora o sobrenome lhe cedeu
Tens em tua identidade esta palavra nativa
No passado, viu-se uma união exclamativa
De Ypanema com homem branco europeu
Um matrimônio que no tempo já se perdeu
Desde que os portugueses aqui chegaram
Rio e cidade se absolveram e guerrearam
Uma união cujo amor nasceu e morreu

Hoje esse secular casal vive intrigado
Rio e cidade conhecem uma separação
O motivo, cruel abandono e poluição
Cada um repousa em seu lugar isolado
Duas almas que precisam de cuidado
Ambos dependem do outro para viver
Raízes que eles preferiram esquecer
Depois que o seu elo foi trucidado

Santana é um mancebo desobediente
Que não estimou sua própria história
Não se encoraja, não retira da memória
A intervenção desse rio por sua gente
O verde nas mãos do povo santanense
Não provém das dádivas da natureza
Procede de negócios e de empresas
Que invadiram o espaço do afluente

Até quando este rio continuará a viver?
Quem terá compaixão desse indigente?
Quem de vós será fidedigno e ciente
E não deixará o Ipanema padecer?

Santana é como um indivíduo sem leveza
Que traiu sua esposa sem dó nem piedade
Um esposo bruto, violento e sem civilidade
Que golpeia uma pobre donzela indefesa
Esta moça enxerga o horror com clareza
Lembra-se do auxílio dado a este covarde
Quando este monstro precisou de verdade
De sua assistência e fundamental defesa

Enquanto suas águas estiverem a correr
Minha esperança ainda estará de pé
Nesse caos desolador continho com fé
Que os honestos não o deixarão morrer

Uns são como uma jovem sem direção
Julga ser correto aquilo que pensa e faz
Muito violenta não quer saber dos pais
Rejeita os conselhos de seu pai ancião
As discussões cheias de ódio e desunião
Agrava a doença de seu pai debilitado
Enquanto este continua a ser odiado
Pela filha dona de seu pobre coração

A maioria deste povo não quer saber
Se esse curso de água permanecerá ou não
A ignorância deles anula sua pífia razão
Para estes tanto faz ele viver ou morrer

Outros deles são como um filho ruim
Cuja mãe vive em uma severa depressão
Geme e pranteia, pois não tem atenção
E ele por sua própria mãe deseja o fim
O coração dele é opaco como o marfim
Mas toda mãe quer ver o filho melhorar
E mesmo quando ele a quer abandonar
Ela o continua amando mesmo assim

Igualmente é este rio pelo seu povo
Povo este que já muito o maltratou
O rio Ipanema que tanto os ajudou
Para que eles não sofressem de novo

As ruas de Santana irão se esvaziar
Tuas festas não serão como outrora
Prepare-se, pois está chegando a hora
Seremos órfãos e ele vai nos deixar
As habituais melodias não farão alegrar
Pois parte da cidade logo irá se perder
E no tempo que o rio Ipanema morrer
A morte de Santana já podem decretar

Marcio Dantas,
Santana do Ipanema, 2018

Comentários