Tenho em minhas anotações motes de algumas crônicas que brevemente estarão na fila, prontas para publicação. São textos produzidos durante o isolamento social imposto pela pandemia do coronavírus. Confinado em casa, desse modo vou administrando a santa ociosidade.
Os textos foram surgindo livremente sem nenhuma conotação que pudesse ser chamada de preguiça. Pode ter acontecido uma natural e passageira indisposição, jamais classificada como preguiça.
A propósito de preguiça, lembro-me do genial cronista pernambucano Joca de Souza Leão, autor do livro A Primeira Vez. Disse o cronista: “A crônica é gênero que se aproveita da preguiça (e vice-versa) é certo. Mas preguiçosa é a crônica, não o cronista.”
No citado livro há uma frase de Manoel Bandeira (1886-1968), festejado poeta pernambucano, sobre crônica: “Como na vida, a crônica é feita de pequenos nadas.”
Manoel Bandeira era da Academia Brasileira de Letras. Publicou dez livros de poesia; como prosador, publicou oito, dos quais dois de crônicas, intitulados: Crônicas da Província do Brasil (1937) e Os Reis Vagabundos e mais 50 Crônicas (1966). É dele o poema “Vou-me embora pra Pasárgada”, lugar por ele idealizado, onde tudo seria perfeito. Poeta com produção de elementos da “tradição parnaso-simbolista”.
Nada é nenhuma coisa. Bulhufas nenhuma. Nada é coisíssima nenhuma. Isso, como pronome indefinido.
Como advérbio, teríamos: modo nenhum, absolutamente não.
Se dissermos: o nada-consta, de uso burocrático, seria substantivo masculino, composto.
Indo para o campo filosófico, o nada significará: o não ser, o opor-se ao ser.
Machado de Assis usou a expressão: “... nada dos nadas veio ter comigo.” (Dom Casmurro, p.189).
Tudo se assemelha ao pensamento do moçambicano Mia Couto, em Estórias Abensonhadas (Editorial Caminho, Alfragide, Portugal, 1994, p.17): “Havia mais que ninguém.”
Inspiração de cronista pode nascer, de fato, como disse o poeta, do nada, de “pequenos nadas”. Por exemplo, de um recorte do cotidiano, de fatos, de notícias, de perfis pessoais; da visão da natureza, como chuva, pingo- d’água, seca, enchente, céu estrelado ou alvacento, luar, vento, frio, calor, aurora, crepúsculo, mar revolto, maré, e vai por aí. Tudo de forma concreta, definida, clara, da realidade existencial.
Costumo repetir o que disse Afrânio Peixoto (1911-2000), professor e crítico literário, em Notas da Teoria Literária (Editora Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 1976. Página 83): “A crônica é na essência uma forma de arte, arte da palavra, a que se liga forte dose de lirismo. É um gênero altamente pessoal, uma reação individual, íntima, ante o espetáculo da vida, das coisas, dos seres.”
Diferentemente da poesia, que é gênero literário de cunho essencialmente subjetivo, abstrato, sensual, sentimental, emocional, com artifícios líricos. Referir-se-á a tudo aquilo de caráter imaginativo, que toca a sensibilidade humana, a beleza, a alma, o coração, o encantamento da vida.
Disse a santanense Luitgarde Oliveira Cavalcante Barros, em posfácio do livro Vestígios da Travessia (Editora Paulus, São Paulo, 2009, página 302): “Só os poetas sabem tudo que o mundo tem, não tendo.”
Afinal, nada de nada é coisa nenhuma.
Maceió, dezembro de 2020.
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