SOU FILHO DO DONO
(Clerisvaldo B. Chagas, 8 de abril de 2011).
Quando imaginamos uma época tão distante como a década de 1920, é como deitar a vista sobre estradas poeirentas e caminhões gemedores palmilhando o Brasil. As máquinas possantes vão chegando, cruzando pontes, vadeando rios, vencendo distâncias. Moças às janelas, acenos apaixonados, cheiros fortes de gasolina. Lá vai o caminhão, subindo ladeiras, descendo montanhas, comendo as planícies. A buzina tange o gado, espanta o passarinho, cativa a mulher. É a carga linheira, torta, aprumada, saudosamente levando o progresso do Brasil. Finda-se a carroceria na curva da estrada, eleva-se o pó esbranquiçado, se acomoda ao chão. Carros de boi ciumentos choram nos cocões. Ornejar de burros protesta com seus cargueiros e, os ventos das pradarias anunciam à nova. Corre o tempo, estradas viram rodagens, rodagens viram pistas, mas saudade continua saudade e romantismo não tem fim, com quatro, com oito, com dezoito pneus.
Quem aprecia vai colecionando as frases de para-choques, da frente, da lameira, da filosofia grega, da sabedoria popular. Nessas engrenagens funciona a autêntica democracia do gosto, o poder sacrossanto de pensar, de berrar, de seguir.
As frases que se espalham pelo mundo, vão dizendo, do homem que se afirma. Do trabalhador que longe da família ganha o pão suado, abastecendo sem parar a pátria amada, idolatrada, às vezes madrasta que o faz sofrer. E sua brincadeira vai à frente: “Oi eu aqui de novo”. Sua religiosidade atrás: “Com Deus vou e volto”, “Vai com Deus”, “Tenha fé”. Ou na ironia conselheira: “Não me inveje, trabalhe”. No humorismo: “Mulher feia eu não carrego”. Aconselhador: “Calma, amigo”. E assim vão se cruzando sulistas, nordestinos, brasileiros gerais, soberanos das cabinas, senhores dos volantes, generais do asfalto. Ferro, algodão, cimento, passeiam na madeira volante que não cansa nunca. Não só as lameiras vão inspirando o povo. O próprio caminhão desperta sentimentos. Passa nome à bebida brasileira por excelência. Sua figura surge no rótulo da garrafa. Sua carroceria vai levando canas verdinhas, saindo do canavial, subindo topete: “Beba Chora na Rampa”, diz o comercial da cachaça.
Ficamos impressionados com tantos dizeres, com diversos chavões, com essas inventividades. Mundo interessante que procura ser divertido para não ficar amargo. O açúcar das palavras acalenta o pranto, dissipa o furor, seduz a alma. Arrogantes, mas consoladoras, benditas palavras as que levaram o escritor a reagir ao banzo: “Não sou o dono do mundo, mas SOU FILHO DO DONO”.
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