O erro de fundamento de Terry Eagleton sobre o fundamentalismo

Adriano Nunes

Alguns teóricos, por pertencerem a alguma escola filosófica e/ou sociológica, costumam se apegar às suas paixões e crenças, acriticamente, e tentam, diversas vezes através delas, explicar o mundo, o que se dá no mundo, os fatos e fenômenos sociais. O importante, para eles, é não trair a sua ideologia, parece. Pois bem: o problema que trato, aqui, é de fundamento crítico.

Terry Eagleton, em uma entrevista, para o El País, em 15/08/2016, afirma, para relativizar ou amenizar o fundamentalismo, que “o fundamentalismo, de qualquer tipo, é essencialmente um equívoco que se comete quanto à natureza da leitura.". Em suma: um erro interpretativo, de interpretação. Talvez, Eagleton esteja consciente dessa sua afirmação e a faça proposital.

Neste sentido, ele cai naquele báratro profundo em que também Nietzsche caíra. Foi Friedrich Nietzsche quem, de algum modo, ergueu a bandeira desse tipo de relativismo perigoso. Assim, o filósofo alemão expressou-se: "gerade Tatsachen gibt es nicht, nur Interpretationen"( não há fatos, apenas interpretações). Esse "perspectivismo" (assim o chama Nietzsche), além de perigoso, é destituído de qualquer racionalidade e mesmo de verdade. Está em sua obra "Der Wille zur Macht" (Vontade de Poder). E é justamente nessa obra em que Nietzsche ataca a razão e as verdades, num extremo relativismo, pois afirma que "não há verdades". Ora! Se ele diz que não há verdades, então, por dedução lógica, a sua própria afirmação é falsa! Logo, existem verdades, principalmente as dos fatos. Os relativistas sempre cometem o erro fatal de acharem que tudo é relativo e, por isso, caem na própria armadilha. A tempo: Eagleton nunca escondeu os seus ataques à razão e aos racionalistas. Sigamos.

Adiante, ele assevera que “o fundamentalismo tem suas raízes não no ódio, mas no medo, o medo de um mundo moderno e mutante, em que tudo está em movimento, onde a realidade é transitória e com um final não definido, onde as certezas e os pilares mais sólidos parecem ter desaparecido. Nesse sentido, é a outra face do pós-modernismo”. O que deseja Eagleton com essa constatação? Fazer uma crítica à modernidade? Ou estabelecer dentro de uma explicação racional as suas crenças cristãs, substituindo "ódio" (um sentimento anticristão, irracional) e outras causas pelo "medo" (um sentimento instintivo em essência), para relativizar ou amenizar as violências fundamentalistas?
Sim, o medo é capaz de gerar violência. É fato conhecido, aliás, que o medo pode engendrar uma reação violenta, tanto instintiva (como reação ao stress, a famosa "the fight-or-flight response", descrita primeiramente por Walter Bradford Cannon, em 1927) ou até mesmo aparentemente pensada (os famosos casos, por exemplo, daquelas pessoas que são ameaçadas verbalmente de morte e terminam matando, dias ou meses ou anos depois, o ameaçador por medo de morrerem, ainda que esse possa ter dito da boca para fora). Pois bem. Essas 2 espécies de medo se interligam e, como é evidente, o ódio aí, se por acaso houvesse, seria momentâneo e desencadeado pelo medo. Mas nem todo medo reativo gera violência. Seria estupidez afirmar que gera. Nem toda pessoa ameaçada termina por matar o ameaçador. Muitas fogem, denunciam, etc.
Para mim, esse não é o ponto central em relação ao fundamentalismo cujo alicerce ontológico repousa em dogmas, num problema de crença e fé. A palavra fundamentalismo vem do latim fundamentum que, em seu sentido original, significa origem, começo, fundamento, base. Dito isso é preciso ainda lançar alguns questionamentos sérios e importantes: se a violência do fundamentalismo é sobretudo e apenas devido ao medo, então é uma violência desculpável? Justificável? Inimputável? Por que ela se dirige a um certo grupo social e não a outros? Por que atos de violência fundamentalistas são até filmados e divulgados? Por que execuções são feitas até mesmo ao vivo, com atos de tortura? Por que cidades e monumentos históricos (e não serem vivos, pessoas) foram e são destruídos ao bel-prazer, comemorados como um troféu? Por que tais atos são geralmente feitos com extrema violência? Apenas por medo? Por que o medo não faz também o papel inverso, o da não-violência?

Quando escrevi há alguns anos sobre o fundamentalismo religioso, fui tentado pela explicação do medo também. Mas ela não conseguia me responder problemas ligados justamente ao ato violento. A partir desse vácuo epistêmico, fui pesquisar as raízes do homem violento, que será tema do meu próximo livro. É sempre tranquilizador achar uma causa por outra: "medo" por "ódio", por exemplo. Interesses políticos e ideológicos vêm à tona. O mesmo se dá, por exemplo, quando historiadores querem explicar o holocausto. Se forem de direita, tentam dizer que foi uma reação à violência stalinista, etc.

Essa característica de defender teoricamente uma violência como sendo reativa é a mais simples explicação possível para o fenômeno da violência. Ela tem base num ato instintivo. Busca ser atenuante para o que ocorre como verdade fatual. A explicação de medo da civilização ocidental como causa mor do fundamentalismo parece desprezar a História e o próprio fundamento dessa violência gratuita (ainda que diversos casos possam ser reativos), as origens sociais do ódio, os conflitos sociais, a multicausalidade do fenômeno violento, etc. Seria o medo de Deus ou de Abel o que fez Caim matar Abel?

Essa explicação desse tipo de violência pelo medo é tão perigoso, sob certa perspectiva, que pode servir de precedentes atenuantes para os crimes de ódio. Imaginemos se passassem, agora, outra vez, a dizer que os crimes de lgbtfobia são uma violência reativa, por medo?! Imaginemos isso em relação aos crimes de racismo (e olha que isso já foi usado como justificativa legal em linchamentos nos EUA!)?!


Onde estaria a origem do homem violento, a origem dos crimes de ódio? É possível uma genealogia desse fenômeno? Nos mitos, podemos encontrar evidências vastas. Na Bíblia, o primeiro homem violento teria sido Caim. Em" Ἔργα καὶ Ἡμέραι ", de Hesíodo, seriam aqueles oriundos da Quinta Geração/Era, a do Ferro. Abaixo, traduzo, diretamente do grego antigo, uma passagem importantíssima de " Ἔργα καὶ Ἡμέραι " que, ao que me parece, fala explicitamente, pela primeira vez, do homem violento. Notem as semelhanças com a atualidade.

"οὐδέ τις εὐόρκου χάρις ἔσσεται οὔτε δικαίου
οὔτ᾽ ἀγαθοῦ, μᾶλλον δὲ κακῶν ῥεκτῆρα καὶ ὕβριν
ἀνέρες αἰνήσουσι: δίκη δ᾽ ἐν χερσί, καὶ αἰδὼς
οὐκ ἔσται"


"Não mais o reconhecimento do menor juramento, nem do justo, nem do bem, eles honrarão o malfeitor, o homem violento. A força fará o direito, e a vergonha cessará."

Em grego antigo, uma das possibilidades para "homem violento" (ὕβριν ἀνέρες)


Adriano Nunes

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