Manifestação vem do latim manifestatio que, por sua vez, deriva de manifestus que, em seu sentido originário, significa "aparente", "evidente", "palpável". É como se com as mãos algo pudesse ser evidenciado. Quando se diz: "ele manifestou indignação ante aquela violência", tal frase significa, de algum modo, que o sujeito tornou evidente a sua indignação. As manifestações populares tendem, assim, a tornar evidente a vontade do povo, seja essa vontade tida como democrática ou não. Logo, perguntaríamos se toda e qualquer vontade expressa pelo povo, pelo simples fato de ser o "povo" o titular da manifestação, pode ser a priori democrática. Neste sentido, imergimos no cerne de um problema epistemológico que sempre parece ter afetado as ciências sociais: o que é mesmo a democracia?
Se, em grego antigo, δημοκρατία significava um governo popular, precisamos compreender o que era esse "popular", isto é, o δῆμος grego antigo, ou melhor, o povo ateniense, já que não havia δημοκρατία em toda a Grécia antiga. Ora, esse δῆμος que é, ao mesmo tempo, povo e terra/lugar/país se delimita desde logo conceitualmente: o governo do "povo" seria, portanto, o governo do povo de um certo lugar. Mas que povo? Na Atenas antiga, o povo que tinha o poder πολῑτῐκόν, isto é, o poder de decidir o destino, o rumo dos πολιτῶν da πόλεως. Esses seriam os cidadãos livres. Crianças, mulheres, escravos, estrangeiros estavam fora da esfera de decisão política. Esses cidadãos que se intitulavam "livres", que eram tidos como os detentores legítimos do poder πολῑτῐκόν representavam as ὀλιγαρχίᾱς. Democracia então era o exercício do poder de oligarcas livres (ἐλευθέροιν), para determinar os rumos da cidade (πόλεως). O sentido moderno de democracia não se confunde com o sentido grego antigo.
Se se quer que em uma democracia moderna todos(as) tenham direito à vez e à voz, então o pilar que rege qualquer democracia é um Estado de direitos em que as liberdades e garantias fundamentais sejam respeitadas. Dizer isso expõe um problema da democracia ateniense: o da liberdade. Na Atenas antiga, o que os gregos entendiam por liberdade, isto é, por ἐλευθερίᾳ não corresponde ao que, hoje, compreendemos. Liberdade, naquele sentido, estava intimamente ligada à esfera do político. Era livre quem tinha poder de decisão política. Era uma espécie de representação, sem que houvesse um direito de escolher os seus representantes. Essa representação era uma forma não só de manter os privilégios das famílias aristocráticas como também manter as distinções, as separações, as desigualdades bem nítidas: o animal político, isto é, o ζῷον πολῑτῐκόν, se distingue nitidamente do mero animal, da mera coisa: seres sem poder de decidir os rumos da cidade. Por isso, o título de cidadão a priori era apenas dado a homens livres e não a todos os habitantes da cidade, da πόλεως. Isso implica outra problemática das democracias modernas bem como do Direito Internacional: a dos direitos do homem e do cidadão.
Esta introdução fez-se importante para que possamos interrogar-nos se realmente toda e qualquer manifestação do povo é tida como democrática. Se o que torna tal manifestação democrática é a mera vontade/presença do povo, das massas, ou se o fim a que almejam, sejam fins imediatos ou últimos têm alguma relevância para atestarmos o selo democrático. Pois bem: se partimos do fato que toda manifestação popular é legítima e que tal legitimidade é devido ao fato de ser o povo (em suas igualdades e desigualdades) o titular hipotético do poder político, então parece não haver dúvidas, neste sentido, de que quaisquer manifestações pelo povo são democráticas.
Ora, isso nos leva a algumas objeções. E só o fato de que tais objeções críticas existam torna essa defesa fragilizada, pois perguntaríamos, de partida, se o povo pode destruir aquilo que o caracteriza como povo e se tal ato é um direito democrático a priori pelo simples fato de o povo ser o povo. Segundo, perguntaríamos se toda manifestação popular, mesmo que violenta ou que seja contra a própria democracia, ainda assim pode ser democrática. E mais: perguntaríamos se a violência é um preceito ou pilar democrático? A resposta desses 2 questionamentos parece evidenciar uma lógica que retira, aparentemente, do povo o direito de toda e qualquer forma de manifestação tida como democrática.
Isso nos leva a outros problemas da ciência política: o uso da força e da violência pelo povo é sempre legítimo? Ora, devemos ter cautela em legitimar toda e qualquer manifestação como democrática para não terminar legitimando a barbárie. Diversas formas de violências e arbitrariedades já foram cometidas na história da humanidade em nome do povo, em nome dessa legitimidade absoluta. Na contemporaneidade, podemos detectar tais manifestações violentas e mesmo anti-humanas nas diversas modalidades de linchamentos e até, sob certas perspectivas, nas variadas invasões de prédios e de instituições públicos, sejam feitas por séquitos de direita ou de esquerda, extremistas ou não.
Portanto, parece que a esse elemento democrático inerente ao povo, devemos acrescentar um elemento finalístico: a que se destinam tais manifestações? Aqui, também, devemos ficar atentos para, ao condenar os fins ou os meios usados para atingir os fins almejados, não cometer o ato antidemocrático de condenar as manifestações, isto é, promover a censura como meio e/ou método "preventivo", ou seja, legitimar e legalizar a censura em nome da ordem pública. A mim, parecem-me legítimas todas as formas de manifestações públicas. Todavia, os meios e as metas não.
Todo e qualquer poder constituído deve ser criticado, sempre! Seja democrático ou não! Mas a crítica não se confunde com violência, atentados à democracia, com barbárie. Democracias podem ser injustas? Sim! Democracias podem legitimar injustiças e desigualdades? Sim! Democracias são mesmo democráticas? Não! É estranho responder a essa questão assim. Todavia, o paradoxo democrático se revela quando temos consciência desse fato, quando fazemos reflexões reflexivas acerca de como o governo do povo é, quase sempre, o governo de poucos; quando evidenciamos as falhas da representação; quando somos capazes de perceber que tanto a invasão do Capitólio pode ser tomada como democrática quanto como antidemocrática; quando somos capazes de compreender que as instituições democráticas não estão funcionando como deviam; quando percebemos que tantas mortes por covid e por fome são devidas à incompetência e corrupção políticas em democracias, principalmente em países que se proclamam defensores de liberdades.
Chamo a esse assombro de "o horror democrático". Uso-o de forma metafórica, o que pode significar muitas coisas, inclusive o espanto à constatação tanto de um movimento que se quer democrático ou um movimento que se aproveita das brechas democráticas para tentar impor uma moral ou um poder que se querem incontestáveis. Para mim, o movimento é democrático na medida em que a Constituição americana permitir tal fato. Todavia, os fins a que a manifestação invasiva do Capitólio (que parece não representar a maior parte dos republicanos) almejou, de algum modo, soam antidemocráticos, porque querem contestar um ato democrático legítimo: o resultado legítimo da eleição de Biden para Presidente dos Estados Unidos.
A não aceitação do resultado eleitoral (e aqui não digo que resultado eleitoral algum seja democrático ou represente uma vontade universal! Dizer que seria, seria desconsiderar como as elites manipulam o povo, as oligarquias se mantêm no poder, etc). O horror é o espanto histórico. Somente há mais ou menos 200 anos, um ato símile ocorreu. O fato é que o país da "democracia" e das liberdades vê-se numa situação pouco imaginada. Aliás, o comportamento de massa acrítica e apaixonada, disposta a tudo, se assemelha mais a uma religião política do que a um embate democrático. O incêndio do Reichstag, em 27 de fevereiro de 1933, serve de alerta civilizatório. Todos os golpes de Estado, todas as tentativas de golpe, todas as revoluções violentas servem de alerta civilizatório. Dizer isso não quer dizer que o movimento americano de invasão do Congresso seja a priori e em essência fascista. Mas, infelizmente, ainda que balance os alicerces democráticos, é extremista.
E as democracias, ainda que eu concorde com Bobbio, isto é, ainda que a democracia seja feita para os moderados, reconheço com horror que é também o abrigo político de todos, inclusive de radicais, fanáticos e extremistas.
A depender das considerações e perspectivas e dos fins, tal manifestação pode ser tanto democrática (o que nos causa espanto - ou melhor - causaria espanto para os que não compreendem bem o que significa democracia) ou antidemocrática (o que também nos causa espanto, pois ataca a própria democracia!). De um modo ou outro, é um horror: porque quando um ato, por exemplo, violento (não estou dizendo que o exemplo seja ou não seja!) pode ser tido como democrático ou não, quaisquer posições assumidas soam como horror.
Adriano Nunes
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