A democracia devastada

Adriano Nunes



A definição do que é liberdade e do que é crime é sempre política. Os limites da democracia, de algum modo, situam-se em redor dessas definições. Dizer isto não significa dizer que tais definições sejam os pilares de uma democracia. Um pilar democrático é aquele que, se afetado em seu cerne, compromete veementemente a democracia, instituto político em que se tenta, ao máximo, respeitar e preservar a dignidade dos(as) cidadãos(ãs).

Politicamente, as liberdades costumam ser postas como os pilares democráticos, porque, ao que parece, respeitá-las, protegê-las, de algum modo, está-se a proteger a dignidade humana, a humanidade de cada ser: liberdade de expressão, liberdade de escolher os representantes dos cidadãos(ãs) enquanto cidadão(ã), liberdade de imprensa, liberdade de pensamento, liberdade de culto, crença e fé, liberdade de poder contestar e denunciar arbitrariedades, abusos de poder, liberdade de existência, entre tantas outras. Quando estas liberdades são atacadas, pode-se afirmar que a democracia corre sério perigo de ser devastada.

O que seria uma democracia devastada? Seria aquela em que o Estado não é mais capaz, de forma justa, pública, equânime, imparcial, de exercer as suas funções como ente legitimado, isto é, é quando as instituições, ainda que pareçam funcionar adequadamente, não funcionam. Como saber se as instituições funcionam bem ou mal em relação ao Estado democrático? Funcionam mal quando qualquer um está sujeito a arbitrariedades e abusos como se fossem tais atos normais, atos que são tidos como a “norma”. O sentido da existência do Estado, que é para ser promotor do processo civilizatório e da civilidade entre os cidadãos e as cidadãs, passa a violar inescrupulosamente os pilares democráticos, isto é, passa a não respeitar a dignidade humana lato sensu.

As causas de uma democracia devastada são várias: da corrupção ao abuso máximo de poder que se expressa fenomenicamente através de violências várias. A corrupção do Estado é cruel com os(as) cidadãos(ãs) porque ela gira em torno de dois eixos, considerados relevantes, entre alguns outros: 1) a ideologia do status quo versus a ideologia da oposição, e a crença cega - de ambas as ideologias! - de que tais ideologias, para cada partidário(a), são sempre perfeitas e incorruptíveis; 2) nos mecanismos que um agente estatal, os Poderes ou o Estado (na figura do Governante) têm como disfarçarem a corrupção ou impedirem que, através do exercício democrático das liberdades, alguma podridão seja exposta.

Analisemos criticamente o ponto 1: não precisa ser de direita, esquerda, centro, conservador, liberal, republicano ou democrata, por exemplo, para saber quão importante é a preservação dos pilares democráticos. Alguém quer ser escravo? Alguém quer que os seus pais sejam escravos? Alguém quer ser impedido de pensar? Alguém quer ser impedido de dizer o que acha do mundo em que vive, do seu e do alheio? Alguém quer ser preso sem saber o porquê? Alguém quer ser assassinado à mercê do Estado, a bel-prazer? Alguém gostaria de ser proibido de orar, rezar, frequentar os seus templos, igrejas, mesquitas, sinagogas, terreiros, etc?

Essas são perguntas simples que podem fazer todos(as) pensarem e refletirem reflexivamente que as liberdades são boas, essenciais, imprescindíveis para uma vida digna, independentemente de paixões políticas. Não importa de que lado estejamos, a razão antecipadamente nos direciona para este ponto: antes uma liberdade do que uma proibição!

As ideologias cegam, sejam de direita ou de esquerda. As extremistas, além de cegarem, engendram separação, distinção, preconceitos, racismos, ódios. Não à toa, o sábio de Estagira disse que devemos fugir dos extremos. Fugir dos extremos significa dar vez e voz à razão. Por isso, numa democracia, ainda que não queiramos, que saibamos que não seja racionalmente adequado ao que se convenciona chamar de governos de todos, os extremistas existem. Faz parte da vida. Por isso, existem as leis, o Estado. Isso nos leva a ver que, no processo civilizatório, este extenso e inacabável processo humano, tal existência tem o seu lado positivo: estabelecer meios de que a convivência de todos e todas, iguais e distintos, seja pretendida harmônica, isto é, civilizada.

Como não somos in totum civilizados(as), o Estado faz-se necessário. Todavia, é uma ilusão absurda acreditar que o Estado é um Ente Supracidadãos(ãs), que não tenha que dar nenhuma satisfação dos seus atos, que não se responsabilize por seus discursos (que sempre deveriam ter como meta a união e o respeito pela dignidade de todos(as)!) e suas práticas.

Chegamos ao ponto 1: a corrupção estatal ocorre quando os seus agentes, órgãos, instituições, Poderes, Governante passam a achar que nada devem aos seus cidadãos e cidadãs. Neste sentido, acreditam ser proprietários da res publica (“coisa pública”). As ideologias partidárias entram aí. É uma ingenuidade nefasta pôr a ideologia partidária acima das liberdades e dos direitos dos cidadãos! Nada deve estar acima das liberdades e da dignidade de cada ser!

O Estado deve, obrigatoriamente, numa democracia, prestar conta dos seus atos e discursos, sempre respeitando o chamado “Estado democrático de direitos”, porque tem a obrigação legítima de governar para todos, independentemente de crenças e preferências político-ideológicas!

Uma das piores corrupções do Estado é justamente a da Justiça. Como acreditar em um Estado democrático cujo Poder Judiciário possa estar impregnado de corrupção? A Justiça deveria ser justa e imparcial, não partidária, não ideológica, não serva de uma Wille zur Macht! É vergonhoso ver uma nação impregnada de acusações sérias contra um Poder que, para muitos, é o grande pilar democrático: aquele que, por dever constitucional, e, acima de tudo, HUMANITÁRIO!, deve estar atento e pronto para impedir injustiças! Ai de uma democracia em que os seus julgadores são corruptos! Ai de uma democracia em que a Justiça é venal e serve a desejos perniciosos políticos e partidários!

Chegamos ao ponto 2: um Estado corrupto usa do poder, que lhe é dado democraticamente, justamente para ocultar atos ilícitos, abusos, arbitrariedades. Como saberíamos de tais atos, se eles podem não só ser revestidos de uma legalidade ou mesmo ocultados sob a autoridade da lei, do poder? Respondo: só podemos saber de tais atos antidemocráticos advindos do próprio Estado graças à liberdade de imprensa, por exemplo. Um dos mais importantes pilares democráticos é uma imprensa livre!Ela desafia poderosos, corruptos, tiranos!

John Milton já louvava as liberdades de imprensa e de edição em 1644, em sua magna obra “Areopagitica”! Vocês dir-me-iam: “ah, mas há imprensa partidária que torce para certas ideologias!”. Que haja! São fiscais da democracia, de cada partido, de cada ideologia! O importante é que sejam livres! O pluripartidarismo é um sinal de que uma democracia tem fôlego, tem chance de sobreviver à vontade daqueles que querem impor o seu autoritarismo, a sua Wille zur Macht!

Digam-me: como atos feitos no obscurantismo das tramas espúrias e pútridas e protegidos, sob inúmeros poderes e influências, podem vir à tona? É preciso amar ser livre para poder ter a consciência inafastável de defender as liberdades sempre! A História humana tem vários exemplos de abusos de poder denunciados por uma imprensa corajosa e por pessoas que amavam as liberdades. Volto a repetir: antes uma liberdade do que uma opressão!

A pior opressão é aquela que faz cada cidadão(ã) ser jogado(a) uns(umas) contra outros(as), por causa de uma ideologia, para defender abusos de poder, arbitrariedades, corrupção.
A cegueira ideológica não é de direita ou de esquerda! É daqueles e daquelas que optam por desprezar as liberdades e querem desmedidamente defender as suas ideologias!

Do que adianta ser cegamente defensor de esquerda ou de direita, e ter que encarar a dura verdade de que a realidade dos fatos é cruel, pois já não atende a qualquer vontade, pois os fatos históricos são como são?

Desde a Antiguidade, os fatos provam que não existem mitos intocáveis, salvadores da pátria, paladinos da justiça, o “homem do povo”! O que se viu até hoje foram moralizadores, personalidades autoritárias, déspotas, seres totalitários, tiranos e hipócritas! Acreditar absolutamente nesses estereótipos e arquétipos, nesses entes carismáticos, quase semideuses, é uma implacável perda da realidade factual, um culto patético à ignorância, à burrice, trocando o direito de ser livre e aberto(a) para as verdades fatuais, para a crítica !

Tudo que se esquiva da crítica deve ser tomado como suspeito e perigoso!
Quem se acostuma a cultuar e a acreditar em mentiras, em distorções de fatos, depois não deveria lamentar com a perda de certas liberdades!

Adriano Nunes

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