A banalização da morte

Adriano Nunes



Sob certa perspectiva, do ponto de vista racional, pior do que a banalização do mal é a banalização da morte. Primeiro, porque o mal precisa, para ser tido como o que é, de um juízo de valor, geralmente dicotômico e maniqueísta, que aponte um lado como o lado mau e o outro como o lado bom. A banalização da morte não precisa de juízos de valor: a morte é.

Quando se legitima a morte violenta e não natural, isto é, o assassinato, o homicídio, começa-se a matar por quaisquer questões: políticas, religiosas, legais, morais, partidárias, financeiras, etc. A morte banalizada traz em si o irracionalismo da barbárie. Mata-se porque o outro é o outro, porque sendo o outro é diferente. Mata-se porque a vida do outro não faz diferença, porque o status quo ainda não é civilizado in totum, aponto de reconhecer que todos os seres humanos têm dignidade e, portanto, merecem viver e ter a vida protegida tanto legalmente quanto moralmente.

É assim que a banalização da morte age: por desprezo à razão e aos seus ditames, pondo à feira dos horrores o negócio da morte como lucrativo. Lucrativo no sentido de que a morte daqueles que são tidos como estorvos e indesejáveis pode promover uma higienização social, como forma de satisfazer uma vontade de poder moralizadora. Como bem afirma Norbert Elias, “a violência é indivisível”. Essa indivisibilidade da violência faz com que esse ato se aproxime intimamente do seu grau extremo, isto é, da morte, como um continuum.

Essa banalização ocorre, principalmente, em períodos de instabilidade social, de descontentamentos dos cidadãos (ãs), de corrupção política generalizada, em crises econômicas brutais, em que o fascismo adquire força e pode surgir com novos matizes (claro que não o fascismo histórico, aquele temporalmente determinado!), e se alastra. O fascismo promove a banalização da morte porque para o fascista nem todas as vidas têm valor humano igual. Mata-se porque a diferença não pode ser tolerada dentro da esfera política. Mata-se o outro devido a um desprezo por si mesmo. Mata-se até com justificativas legais, por uma prévia banalização da legítima defesa e da liberdade para matar como se esta estivesse determinada e prescrita por normas jurídicas que legitimam o cumprimento do dever legal e o exercício profissional. Mata-se porque já não há razão, porque já não se é capaz de ver em cada ser humano um fim em si mesmo, a dignidade humana.

Perguntamos, então assustados, por que tanta violência ronda e preenche os espaços sociopolíticos brasileiros. Por que uma manada de seres com ódio e rancor abdica da racionalidade crítica para desempenharem fervorosamente um papel de seguidor de um séquito extremista e anti-humanitário? Não é uma resposta fácil, certamente. Todavia, precisaríamos entender o que faz pessoas naturalmente expressar, sem rédeas ou controles sociais, os seus nefastos ódios, rancores, invejas e frustrações mais recônditos. Este ensaio não tem essa pretensão epistemológica, ainda que tente lançar alguma luz sobre a problemática da banalização da morte. Problemática indubitavelmente multifatorial e multifacetada.

Todo autoritarismo é intolerante a priori, logo o autoritário é violento em essência. Para impor a sua verdade, a sua moral moralizadora, o autoritário usa, quase sempre, da força. Este uso da força pode ser tanto estatal quanto de massa, digo, exercida por aqueles que compactuam com discursos e práticas violentos e que se reconhecem nesses discursos e práticas. Quando não se controlam mais os instintos animalescos, discursos, atos e práticas lesivos ocorrem com uma espontaneidade impressionante, são introjetados socialmente e, de alguma maneira, naturalizam-se.

Hannah Arendt nos alerta ao dizer que "onde a violência já não é mais contida e restringida pelo poder, já começou a bem conhecida inversão no cômputo dos meios e fins. Os meios - de destruição - agora determinam o fim - e a consequência será a destruição de todo o poder". Inclusive, do poder legítimo e democrático, estatal, que tem o dever constitucional de evitar que os concidadãos(ãs) se destruam, por motivos de diferenças e intolerâncias. E o que fazer quando o Estado pode até ser conivente com tais monstruosidades e arbitrariedades?

A banalização da violência leva à banalização da morte. A morte banalizada em uma sociedade democrática é um passo para que ocorram estados policialescos e totalitários. A morte banalizada vira um artifício estratégico para eliminar adversários políticos. A morte já foi banalizada diversas vezes na história da humanidade. Da caça às bruxas na Idade Média, durante a Inquisição, até os dias atuais em que se registram assassinatos perpetrados por fundamentalistas extremistas, por exemplo. Assim, tem-se matado em nome de Deus, em nome da família, da fé, da crença, da raça, das religiões, em nome de políticos, das finanças, etc.

Assassinar alguém por discordância política é um ato fascista. Não devemos relativizar o fascismo. Todavia, no Brasil, é mesmo costume até relativizar e negar o racismo, imaginem atos e discursos fascistas! Negar ou relativizar o fascismo é desonestidade intelectual. Estamos no esquematismo "entre a razão e o horror".
Todas as vezes em que me deparo com este esquematismo, lembro-me de Walter Benjamin e o seu desespero ante a possibilidade de o horror nazista capturá-lo. Nenhuma mudança radical e extrema é uma saída racional. Essas mudanças sociais abruptas e profundas se assemelham às revoluções violentas e cruéis. Primeiro, pela cegueira e incapacidade dos que delas participam de enxergar o grave perigo iminente. Segundo, porque as pessoas parecem ignorar ou mesmo não se importar com a vida de outras pessoas, após tais mudanças.

Há uma densa e angustiante passagem em "Cien años de soledad", de Gabriel García Márquez, que muito lembra a banalização da morte por causa de interesses partidários. É este grau de intolerância e ódio que impregnou, de certo modo, a massa acéfala e raivosa brasileira. No episódio do livro, uma criança de sete anos, tomando um refresco, esbarra sem querer em um cabo da polícia, derramando um pouco do refresco no uniforme do militar. De imediato, o cabo assassina a criança, fazendo-a em picadinhos a machadadas, bem como assassina o avô da criança que tenta socorrê-la, decapitando o ancião. Transcrevo o trecho na íntegra:

"Por esos días, un hermano del olvidado coronel Magnífico Visbal llevó su nieto de siete años a tomar un refresco en los carritos de la plaza, y porque el niño tropezó por accidente con un cabo de la policía y le derramó el refresco en el uniforme, el bárbaro lo hizo picadillo a machetazos y decapitó de un tajo al abuelo que trató de impedirlo. Todo el pueblo vio pasar al decapitado cuando un grupo de hombres lo llevaban a su casa, y la cabeza arrastrada que una mujer llevaba cogida por el pelo, y el talego ensangrentado donde habían metido los pedazos de niño."

Muitas vezes, na história da humanidade, se quis/quer distorcer ou aniquilar princípios éticos universais para que a dicotomia bem/mal fosse bastante visível e demarcada, isto é, a distorção irracional ditara/ditaria/dita peremptoriamente que um lado era/é o mal e... pronto: salve-se quem puder!

A seguir, surgiram/surgem os séquitos de moralizadores para empurrar, com toda a força, o processo civilizatório em direção à barbárie. Relativizam a razão, para poderem discriminar, apartar, separar, vulnerabilizar, humilhar, reificar, matar, sem quaisquer receios de moral, escrúpulos de dignidade.

Muitas vezes, invocaram-se, para tais atos nefastos, a fé, a crença, a religião, as leis. Relativizam a razão para afirmar e ditar o porvir dos que são diferentes. Relativizam a razão para não terem mais que ocultar preconceitos e racismos.

Todas as vezes em que me deparo com este esquematismo, lembro-me de Heródoto narrando a história de "Arião de Metimna, o mais hábil tocador de cítara", para compreender quão as pessoas são como são. E, não se enganem!, muitas delas não vão se importar se você for assassinado, por ser você quem você é. Porque ódios, rancores, frustrações e invejas rondavam/rondam o espírito humano bem antes de o mundo ser o mundo.


Adriano Nunes

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