Certo aspecto de um determinado sentimento religioso medieval parece ter impregnado a modernidade. Aquela vontade, dita cristã, de pôr na fogueira e ver queimar os hereges, as bruxas, os pagãos, os que pensavam diferente. A Inquisição deixou marcas profundas no inconsciente e consciente coletivos. Umas para o bem e outras para o mal. Pera! Mas o que é mesmo o mal e o bem? Por que, desde tempos imemoriais, procurou-se dividir em apenas dois os grupamentos humanos? Por que desde sempre se buscou a afirmação e a confirmação de que um era certo e o outro era errado? Pois bem. Chegamos ao cerne da questão.
Nessa disputa irracional, as religiões (as crenças em geral), possivelmente, deram o primo passo para a imposição violenta de ideias. Sócrates foi condenado à morte por uma questão religiosa. Jesus foi condenado à morte por uma questão religiosa. As bruxas e os hereges foram condenados à morte por uma questão religiosa. Mulheres ainda hoje são apedrejadas por questões religiosas. LGBTQI+ ainda são condenados à morte por questões religiosas em alguns países islâmicos. E por quê? Porque as religiões são ideologias. E, como ideologias, cada uma pretende, a seu modo, impor as suas verdades, a sua moral. Toda ideologia, no fundo, quer ser a única, a verdadeira, aquela que deve imperar. Logo, aqueles e aquelas que não compactuam com essa ou aquela ideologia, são tomados como inimigos. Nessa perspectiva, os inimigos ideológicos devem ser combatidos, silenciados, destruídos.
Os partidos políticos, com as suas ideologias partidárias, aprenderam bem a lição totalitária. Se pudessem, excluiriam os adversários da esfera pública e se manteriam no poder ad infinitum. Como aqui não é um tratado, não me alongarei explicando as causas (que são várias) e as circunstâncias sócio-históricas (que também são inúmeras!) e nem darei uma miríade de exemplos. A intenção deste ensaio é abrir uma possibilidade para a reflexão crítica. A crítica, fundamento e instrumento da razão, tem o dever de expor como operam as ideologias e o que elas pretendem, almejam.
Para explicar a funcionalidade operacional de uma ideologia, tomemos o fascismo como protótipo. O fascismo teve a sua origem na política de direita (ainda que Mussolini tenha sido um militante do socialismo, ainda que tenha havido mobilização sindical ou mesmo a presença de um Estado forte, totalitário). O fascismo é uma ideia. Ideias não têm "dono" fixo a priori. Não se prendem a pontos imóveis da história, não ficam presas a uma época, a um grupo restrito de pessoas. As Ideias não podem e não são destruídas. Elas podem ser suprimidas e silenciadas, por certo tempo, mas jamais eliminadas. As ideias exercem atração. As pessoas podem se identificar intimamente com ideias, sem que as ponham no crivo da crítica e da reflexão. As pessoas, sim, podem ser mortas por causa de suas ideias e opiniões. As práticas fascistas podem, portanto, ser usadas pela direita ou pela esquerda. Podemos identificar práticas fascistas tanto na direita quanto na esquerda. Com o contemporâneo advento da extrema direta, as realizações radicais e violentas, as perseguições públicas, as fake news, o descrédito das artes e ciências, tudo isso veio à tona. É a conhecida política de guerra e de intimidação.
O que vem fazendo, também, a esquerda radical? Perseguido pessoas, de modo símile. Neste jogo grotesco ideológico, os que não compactuam com essas táticas, os que preferem estar do lado da razão e não de irracionalismos, podem sofrer e vêm sofrendo algumas consequências desse maniqueísmo perigoso. As funestas listas identificatórias e persecutórias voltaram, com uma nova acompanhante: a política de cancelamento (que também poderia ser chamada "política do silenciamento", "política do banimento", "política do ostracismo", etc). Tais listas já eram comuns na Idade Média e serviram à Inquisição para fundar a sua sede de sangue e morte. Pagãos, judeus, árabes e hereges sofreram o pão que o diabo amassou. As listam lembram delatores. Jesus foi um delatado. Sócrates também foi delatado. Muitos resistentes franceses foram delatados. Comunistas foram delatados nas ditaduras brasileiras. A lista das listas é imensa, historicamente vasta e cruel. Quantos gregos e romanos antigos brilhantes não foram condenados ao exílio por causa de suas ideias! Voltaire teve que fugir para a Inglaterra para não ter que voltar para a Bastilha. Ficou em terras inglesas de 1726 a 1729! Três anos exilado! Caetano e Gil, entre outros, passaram por isso. Salman Rushdie precisou vagar e esconder-se pelo mundo porque viu seu nome numa lista de morte do islã. As listas de nazistas com nome de judeus e comunistas. A lista de astros e estrelas de Hollywood sob a acusação de serem comunistas na era de Joseph McCarthy. As listas com nomes de militantes e artistas de direita por serem de direita. O bullying sofrido por estudantes abertamente de direita em universidades federais.
A violência do silenciamento é aquela que serve de pilar para uma ideologia ser totalitária. Kant foi ameaçado pelo Estado prussiano para não mais escrever sobre religião. Quantas cabeças de jornalistas e editores de revistas não foram decapitadas na era de Whatsapp e Facebook? Quantas pessoas não são perseguidas e condenadas até por mudarem de opinião? Pessoas que não concordam com as políticas identitárias ou têm discursos críticos em relação a elas são constantemente perseguidas e postas em listas. Steven Pinker e JK Rowling agora são perseguidos por seus twitters e posicionamentos. Quem criava listas para perseguir adversários e humilhá-los publicamente eram os fascistas. Era um artifício da propaganda nazista humilhar judeus e comunistas. Essa coisa de ir buscar Lattes, a vida pessoal, postagens em mídias sociais, etc e tal, com o intuito de humilhação, vergonha pública, etc se assemelha, em certo grau, ao que os nazistas faziam em relação aos judeus na década de 1930.
Parte da esquerda se transformou num centro de controle totalitário. Ou você pensa igual ou será banido socialmente, ou linchado. Tipo: você pode discordar de tudo, menos do que nós ditamos ser correto socialmente. Sob as vestes corroídas e desbotadas da defesa da liberdade de expressão e de muitos direitos igualitários tem-se imergido num mar de horrores, ódios, vinganças privadas, linchamentos virtuais. Parece que, agora, não se pode mais ter uma posição política diferente acerca dos fenômenos. A política do "politicamente correto" vem-se mostrando incorreta em diversos pontos e até mesmo violenta. Não se quer permitir mais, numa sociedade aberta, o debate de ideias e posições, mas legitimar apenas o mero aniquilamento do opositor, ao que parece. Não se quer mais permitir a legítima defesa e o contraditório. O julgamento é ad hoc e pronto. Basta o silêncio imposto ideologicamente. Em nome de quê ousam afirmar que isto é correto ou justo ou humano?
Adriano Nunes
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