"O medo age como se não houvesse culpados"

Adriano Nunes

O medo age como se não houvesse culpados" - para Mariana Melo


O medo atua por diversas vias. Duas dessas são bem perceptíveis, quais sejam: 1) como consequência brutal do exercício do poder e 2) como mecanismo de defesa por valorização da vida.

No primeiro caso, o medo é imposto de fora para dentro, se assim puder ser dito, como efeito de um exercício de poder arbitrário, autoritário, totalitário e/ou tirânico. O poder, neste âmbito explicativo, para ser legitimado precisa da imposição do medo nos (as) cidadãos(ãs). Tal imposição do medo dá-se de duas formas: a direta (através do exercício de poder diretamente sobre quem se quer impor medo como forma de controle social repressivo) e a indireta (sobre outras pessoas que tenham, de algum modo, uma relação direta com o(s) alvo(s)). Sob esta perspectiva, o medo segue geralmente à certa forma de intimidação. Quando, por exemplo, em um Estado democrático de direitos, os(as) cidadãos(ãs) passam a ter medo do presente e até mesmo do futuro, devido a atos estatais, estamos, de algum modo, a ver o exercício de poder engendrar um tipo de medo repressor. Como isto, possivelmente, ocorre? Através de práticas, atos e discursos que, de alguma maneira, parecem atacar e/ou atacam garantias fundamentais e direitos individuais, quando, também, de algum modo, minorias passam a ser, à socapa, atacadas, isto é, passam cada vez mais a ser vulneráveis devido a medidas administrativas, legislativas e judiciárias. Cria-se, coletivamente ou em determinados setores, por certos momentos ou in totum, um medo que também poderíamos denominá-lo social ou estatal, a depender da posição assumida quanto à reflexão.

Pois bem: nessas situações de medo social, os indivíduos passam a ser alvos tanto do Estado quanto da ação daqueles que, compactuando e aprovando tais atitudes estatais, colaboram na disseminação e manutenção do medo, não se furtando, claro, do uso da violência em seus diversos graus, até do assasinato. O medo social, assim encarado, como consequência do abuso do poder estatal, pode engendrar/facilitar tanto o suicídio como homicídios, obviamente sabendo aqui das múltiplas causas envolvidas nestes complexos atos humanos. Mas estes atos são o extremo: matar outrem e matar a si mesmo, pela via do medo.

O poder difusamente também causa outros tipos de "mortes" mais comuns, as mortes em vida, isto é, a anulação do ser individual enquanto ser participante da esfera pública democrática. Uma das características deste tipo de efeito é impedir que o indivíduo seja capaz de ter vez e voz, como se fosse preciso sufocá-lo, anulá-lo, exterminá-lo socialmente. Ao cercear as liberdades de expressão, de pensamento e de imprensa, ao tentar distorcer realidades fatuais, o Estado pode, sob certos aspectos, impor medo àqueles (àquelas) que se pensavam/pensam e se sentiam/sentem livres. O ataque dissimulado ou explícito às liberdades pode ser feito por múltiplos(as) meios/vias, principalmente através das vias morais, religiosas, partidárias.

Espera-se, por exemplo, que, em um Estado democrático de direitos, este seja laico e que o seu governo baseie-se no respeito civilizatório e nas garantias constitucionais de todas as crenças e fés. Quando um estadista ou qualquer órgão público manifestam a priori e publicamente uma preferência religiosa ou passam a criticar sem fundamento racional outras religiões/crenças, o Estado parece desviar-se do seu conteúdo material de laicidade e de democracia. Quando isso é feito intencionalmente (aqui, pensando com Nietzsche com a sua "der Wille zur Macht", e Heidegger com as suas declarações sobre a "Technik"), procura-se instrumentalizar a razão para que esta atenda inescapavelmente a uma vontade de poder infinda, a chamada "vontade da vontade", de acordo com Nietzsche. As consequências advindas da instrumentalização da razão são funestas, pois abrem caminho para que pessoas possam ver e tratar cada ser humano como mero meio, isto é, abrem alas para um irracionalismo funesto e perigoso, para um processo de reificação, com desprezo pleno pela humanidade de cada indivíduo. Assim, o medo pode, de algum modo, alcançar um limite cruel onde a vida não passa a ser mais vista como o bem maior e mais magnânimo.

Se a vida então passa a não valer, nada impede o Estado e os seus séquitos acéfalos de pôr em prática as etapas finais do exercício de poder: em um paradoxo complexo, estes passam a destruir vidas (por medo de ser desestabilizados ou deslegitimados!), ou pelo assassinato de políticos e artistas contrários ao status quo, ou por "dar" meios psíquicos e psicológicos necessários (e, talvez, até suficientes!) para suicídios e exílios forçados, ostracismos e outras condutas símiles. Medo e morte passam a ser sinônimos, nessas situações.

No segundo caso, o medo como mecanismo de defesa tem forte relação com o instinto animalesco de sobrevivência. Pode até parecer par excellence um efeito irracional ante situações de perigo, stress e/ou de ameaça de morte. Talvez, seja uma forma de reavaliar e validar, em um gesto ptotetor, a amplidão existencial da vida. Ainda que seja um mecanismo de defesa, este tipo de medo também traz em seu cerne as marcas da angústia e do desespero. Mantida a vida salva, os sistemas psíquicos procuram agora um apoio racional para compreender o porquê de tal medo, numa reflexão reflexiva que pode levar a decisões distintas, isto é, pode levar ao dilaceramento do "eu" ou ao fortalecimento do "eu", com a compreensão urgente de que a vida vale mais e, neste caso, o que for necessário para salvá-la e resguardá-la de toda ameaça, vale mesmo a pena, inclusive o exílio, o ostracismo, a anulação da vida social, o abandono da esfera pública política.

Quanto ao dilaceramento do "eu" engendrado pelo medo como mecanismo de defesa, podemos perceber que o medo exerce um poder bastante forte mesmo naquelas pessoas providas de um sistema emocional equilibrado, mesmo naquelas que têm fortes liames sociais. A consciência de que o medo é um mecanismo de defesa, por parte de quem o sente e o representa, pouco ou nada garante que os atos e discursos poderão surgir sob os ditames da razão. Seria tolice pensar e argumentar desta maneira. Ainda que seja um mecanismo de defesa para valorar a vida e preservá-la, esta também pode ser não só ameaçada como destruída, a depender do grau do medo, da associação íntima entre medo, pavor, desespero, angústia, desesperança, laços sociais, planos, sonhos, vontades, desejos, etc e tal, bem como o que possa estar por trás desse medo, externamente.

O certo é que devemos ficar atentos e preocupados quando o medo passa a ser um sentimento com tendência de generalização, quando passa a forçar políticos e artistas a abandonarem a esfera pública das ideias e conceitos, do debate político, com receio mor de serem assassinados. Devemos nos preocupar veementemente quando a liberdade de crítica fica ameaçada por questões morais, religiosas e partidárias. A crítica livre é um pilar democrático. Quando não se pode exercê-la pode-se afirmar que a democracia está lesada ou doente.

Adriano Nunes

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