"O crime grave e um gesto humanitário"

Adriano Nunes

Nenhum crime cometido, ainda que gravíssimo, não tira o valor do gesto de Dráuzio Varella. Os gestos humanitários reforçam em nós a nossa dignidade humana, mostram-nos que reconhecemos os outros independentemente do que são ou fizeram, seguem o preceito de Cristo, o do perdão, e o de Immanuel Kant, de tratar a todos como fins em si mesmos. Claro que, então, o crime cometido pela trans Suzy não tira o valor do gesto de Dráuzio. Mas qual interesse haveria em tirar o valor do gesto, ainda que fosse um crime bárbaro? O perdão, a compaixão, o reconhecimento humanitário do outro são matizes dos efeitos da razão. Quando se busca uma justificativa para invalidar algo humanitário, há algo possivelmente nefasto por trás.

Qual problema mesmo da reportagem omitir o crime? Se uma pessoa se encontra presa, significa que ela está pagando por um crime que cometeu. Julgamentos morais e dúbios não pegam bem para liberais ou socialistas. Por que se insiste em evidenciar o crime? Invalidar a entrevista, o valor do gesto? Ou para reafirmar que mesmo pagando pelo crime é necessário que o público precise saber do crime para que assim possa julgar (outra vez!) a detenta e, consequentemente, se o gesto é válido? Isto é, aplicar a máxima latina ad captandum vulgus, ou seja: para saciar a sede de vingança das massas emotivas? Por que, se for isso, então a primeira assertiva torna-se hipócrita (a do valor do gesto). Médicos atendem pacientes sem se importar, por dever ético-profissional, se eles são bandidos ou mocinhos. Não lhes interessam saber que crimes os seus pacientes cometeram. Deveriam tratá-los diferentes por causa dos seus crimes? Ou pior: tratar cada um de acordo com o artigo do Código Penal?

A reportagem tinha um objetivo: mostrar a vida das trans nos presídios. Não era para fazer julgamentos jurídicos ou muito menos moralizadores. O homem moralizador é um ser nefasto, não deve ser confundido com o homem moral. O moralizador sequer consegue seguir a sua moral e ainda assim quer impô-la, muitas vezes violentamente, aos demais. A reportagem pretendia mostrar uma realidade que assombra. A realidade cruel dos presídios, não só para trans. Ou a realidade dos presídios não importa para presos que cometeram crimes gravíssimos? Cristo dá-nos um exemplo brilhante: o de Madalena. À época, o crime dito que Madalena cometera era gravíssimo e punido com o linchamento público com pedras, o famigerado apedrejamento. Que disse Jesus a Madalena, em João, 8, 11? “ἡ δὲ εἶπεν, Οὐδείς, κύριε. εἶπεν δὲ ὁ Ἰησοῦς, Οὐδὲ ἐγώ σε κατακρίνω: πορεύου, [καὶ] ἀπὸ τοῦ νῦν μηκέτι ἁμάρτανε”. Este “não cometa esse erro outra vez” é bastante significativo, porque, além da questão do perdão, indica-nos que há abertura para novas chances, além de quaisquer julgamentos.

Penso criticamente que compreender o caos invisibilizador em que vive Suzy não retira a sua culpa e a sua responsabilidade, já determinadas previamente pelo Sistema Jurídico-Penal. Dráuzio não disse que tirava e nem a reportagem fez isso. Essas são questões jurídicas que já foram delineadas e, portanto, por que precisam mesmo agora ser evidenciadas num novo tribunal? Por que, se há necessidade de evidenciar isso para um novo julgamento público e moral, a primeira assertiva é outra vez falsa e hipócrita.

A ética médica deve ser respeitada. A vida íntima e privada das pessoas também, presas ou não. O amor e o perdão devem ser públicos, quando assim exigir a consciência. As pessoas têm, também, direito ao esquecimento. O Ordenamento Jurídico brasileiro garante isso inclusive quando se cumpre devidamente a pena. Ou de que servem teorias e leis que garantem a ressocialização em uma nação que se quer democrática? Então lhes pergunto com toda sinceridade: por que a reportagem precisaria reafirmar o porquê da prisão? Se alguém está preso tanto tempo, possivelmente o crime foi grave. E se está preso, está pagando por tal crime.

O espetáculo da exposição e do julgamento moral não são preceitos liberais e muito menos sinalizam para a civilização. Ao apontarmos qual tipo de crime ela cometeu, parece que queremos incentivar o que há de mais grotesco no ser humano: a impiedade, a imperdoabilidade, a vingança pública e privada, o linchamento, ou como diz Jaspers: pôr "a culpa eterna", isto é, uma punibilidade ad aerternum e ad nauseam, pôr uma etiqueta moral ou uma plaquinha dizendo: "independentemente de qualquer coisa, fulano fez isso". Antes que me esqueça de um detalhe cruel: perguntas do tipo: "e se fosse com alguém da sua família?", "e se fosse um nazista, o holocausto? ". Essas perguntas e outras símiles sempre aparecem nessas questões. Neste caso, recomendo a leitura do livro espetacular de Karl Jaspers "Die Schuldfrage". Adendo: devemos cultivar mais e mais a nossa humanidade. Só assim somos capazes de enfrentar questões sérias e a barbárie.


Adriano Nunes

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