Expus, há algum tempo, que não se deve tentar compreender e explicar um fenômeno político-social, como populismo, por exemplo, ou mesmo o fascismo, por um ser em particular. Mitos são construídos socialmente. Não são por si mesmos dotados de essência mítica a priori.
O que se viu, ontem, na votação do Senado e da Câmara é reflexo desses tempos sombrios e não somente mera barganha ou conchavo. Trocas de favores e cargos por si só não explicam tais votações. Há algo mais forte por trás, algo que se enraíza como uma crença, como uma fé política. Os fatores são múltiplos e diversos. Sem a legitimidade popular, sem a crença em um porvir messiânico, num inimigo político (porque é assim que eles racionalizam em suas irracionalidades objetivas, de algum modo!) a ser combatido, os mitos carecem de eficácia social, de poder político.
O trumpismo não se resume a Trump. Nem o bolsonarismo a Bolsonaro. Observem bem as instituições e percebam como elas estão repletas de fanáticos negacionistas e obscurantistas. O discurso do Ministro do STF Luiz Fux é revelador, neste ponto, quando denuncia o horror de saber que um Presidente de um Tribunal fez um discurso negacionista e obscurantista durante a sua posse. Não devemos ficar surpresos quanto a esse fato, se temos a História como mestra mor. Ora, fora o judiciário e os juristas alemães que não só abriram caminho para o nazismo alemão como legitimaram as mais abjetas e cruéis violências! E o povo legitimava também praticamente tudo ali e até contribuía com a sua parcela de vingança barbárica, praticando linchamentos e assassinatos, destruindo estabelecimentos privados e públicos, sedes de sindicatos e partidos, agredindo gratuitamente pessoas nas ruas...
Lembrem-se de que, após a derrota de Hitler e Mussolini, a população precisou passar por um processo de desnazificação e de desfascisficação. E, mesmo assim, o nazismo e o fascismo perduram porque são ideologias. E ideias não são nunca destruídas! Isso é uma terrível constatação! Sempre haverá gente fanática e bárbara para flertar com tais ideologias funestas.
Os ideólogos fanáticos, os autoritários demagogos, os fundamentalistas & cia creem cegamente que podem destruir ideologias para impor às demais pessoas as ideologias em que eles acreditam, mesmo que para isso empreguem a violência psíquica e física, social e institucional. Esse tipo de instrumentalização funesta já foi empregado, sem sucesso, diversas vezes, na História humana, sob a crença de que destruindo os adeptos e simpatizantes de alguma ideologia poder-se-ia assim destruir e fazer desaparecer, de vez, ideologias adversárias ou inimigas, da esfera pública.
Como se matassem reis, a ideia de monarquia fosse com a realeza, excluída do plano existencial. Como se destruíssem os judeus, o judaísmo fosse destruído. Como se eliminassem os comunistas, o comunismo deixasse de existir. Como se desnazificassem ou exterminassem os nazistas, a ideia nazista pereceria. Na Idade Média, a Inquisição exerceu ações símiles. O passado está repleto desse tipo de tentativa. O fundamentalismo islâmico ainda age assim.
Neste sentido, os defensores das revoluções, sejam de direita ou de esquerda, cometem o mesmo equívoco. Eles acreditam que, eliminando pessoas ou intimidando-as e ameaçando-as, cerceando as suas liberdades, impondo mesmo o terror, podem engendrar um mundo novo, prototípico, harmonioso e feliz. Um engano que levou muita gente à morte. Os fanáticos acreditam que têm uma realidade ótima para oferecer como bônus às suas violências. Por não aceitarem as diferenças e as igualdades alheias, querem, a tudo custo, impor aos outros a sua moral moralizadora, o seu mundo imaginário, total e homogêneo, socialmente higienizado, puro.
Logo depois da votação na Câmara, vimos as imagens do seu novo Presidente e amigos em uma festa particular comemorando o feito. Muita gente, ali, sem máscaras, rindo, parecendo não se importar com a desgraça alheia. As medidas sanitárias, de prevenção e cuidados, que clamam por solidariedade e justiça só são exigidas e cobradas moralmente e pragmaticamente dos que não têm poder? Uma irresponsabilidade medíocre festejada por muitos. Depois, tudo seguirá como antes. O mundo tenderá a sobreviver aos ideólogos, demagogos, hipócritas, fanáticos e fundamentalistas. Ao menos, tentará.
Adriano Nunes
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