Como cheguei aos 74 anos de idade, não sei. Sei apenas que aqui cheguei. Nasci a 16 de dezembro de 1978, logo completarei 75. Na virada do milênio, eu concluía o curso de Engenharia Florestal, uma teimosia vocacional, ou uma esperança infundada. Infundada, sim, pois tudo indicava que, num futuro bem próximo, tal profissão seria declarada obsoleta. Sabia-se que muito em breve as nossas florestas seriam transformadas nos imensos desertos em que realmente as transformaram. E ninguém precisava de bola de cristal para prever tal desfecho.
Antes da desertificação, o Brasil foi loteado em áreas semelhantes às capitanias hereditárias do início da primeira colonização, e os lotes serviram para liquidação das dívidas contraídas junto aos organismos financeiros internacionais.
No final do segundo milênio, nova ordem econômico-financeira do mundo globalizado levou os chamados países do Terceiro Mundo à bancarrota e, na terceira década do século XXI, transformou-os em simples possessões: domínios à moda antiga, agora sob a denominação de ZCOSGTAs – Zona sob Controle da Organização Supranacional para Gerenciamento dos Territórios Alinhados –, ou seja: as zonas sob controle são os territórios alinhados gerenciados pela OSGTA, a super organização que os administra.
Esta 243ª ZCOSGTA corresponde ao antigo Estado do Rio de Janeiro. São Paulo foi dividido em duas zonas: a 238ª (norte) e a 239ª (sul). Todo o Brasil (exceto a Região Amazônica, pois esta área já havia sido ocupada por um consórcio internacional anos antes) foi dividido em 45 ZCOSGTAs.
No início, aquilo era apenas o que chamavam de imperialismo suave, o soft imperialism, que encontrava defensores mesmo entre nós. Defensores?! Não, mais tarde (tarde demais) os reconhecemos pelo que realmente são: entreguistas, vendilhões da pátria. Depois veio essa degradante condição de tutela imperialista nos moldes antigos. Tão ou mais violenta que as ocupações nazistas durante a Segunda Guerra Mundial (raros são os registros que restam sobre essa fase da História). Fomos uma das primeiras nações a se submeterem ao controle da OSGTA, que à época ainda atuava sob os disfarces de FMI, Bird e de outras instituições financeiras internacionais.
22 de novembro de 2053
De onde vem essa chuva oleosa que cai incessantemente? Quais as causas disso? Ainda não estão claramente definidos os motivos que a provocam. Há cerca de cinco décadas, no final do século XX, a cinematografia hollywoodiana, baseando-se nas experiências vividas em Hiroxima e Nagasaki, explorou esse cenário em produções futuristas, um futuro de terra arrasada. Atribuíam-na às consequências de um cataclismo atômico. No entanto, apesar de não se haver efetivado o terceiro grande conflito mundial, a hecatombe nuclear definitiva, aqui estamos debaixo desse gosmento chorume, antes só visto nos aterros sanitários. Nas ruas, as pessoas atingidas pelas primeiras precipitações desse viscoso líquido escuro acreditavam que estavam sendo alvo de uma estúpida brincadeira, achavam que alguém lhes atirava óleo queimado do alto dos edifícios. Tal equívoco provocou muitas discussões, brigas e até agressões seguidas de assassinato. Chove sem parar. Se é que podemos chamar de chuva esse corrimento atmosférico. É como se o céu se encarregasse de permanentemente nos lembrar as agressões ambientais que cometemos nos últimos cem anos: imprudentes desmatamentos, excessiva poluição atmosférica, irresponsáveis represamentos e desvios de cursos fluviais, agressivos testes com ogivas nucleares e tantas outras criminosas agressões ambientais.
Não, não cessa nunca! Ocorrem apenas mudanças no índice pluviométrico e na temperatura do “lodo austral” – denominação que alguns cientistas dão a esse óleo pluvial, por acreditarem que o fenômeno tenha origem no espaço aéreo perpendicular ao imaginário eixo polar sul, onde, supostamente, o globo terrestre processaria a poluição geral do Planeta, centrifugando os poluentes e redistribuindo-os sob a forma de gases concentrados, os quais se condensam e se precipitam dessa maneira chorumenta –. É uma das muitas teorias sobre essa chuva mefítica (o mau cheiro lembra a catinga que se exalava dos canais que margeavam a extinta Ilha do Fundão), a de menor aceitação nos meios acadêmicos, porém a mais difundida entre a população, que hoje é extremamente mal informada (todas as notícias e informações gerais nos chegam via agência oficial da OSGTA, sob o crivo do Departamento de Censura).
O que se conhecia como estações climáticas agora são períodos marcados pela intensidade das precipitações de chorume e sua temperatura. E não mais ocorrem em fases definidas. Outono, inverno, primavera e verão agora são condições temporais momentâneas, com início e duração até previsíveis pelos observatórios meteorológicos; entretanto, sem a verificação das fases estabelecidas pelos solstícios e equinócios como antigamente. Portanto, depois de um breve outono de duas semanas, poderemos retornar a um rigoroso verão, com temperaturas elevadíssimas e chorume abundante, durante toda a semana ou mesmo todo o mês seguinte. Sei que teremos um Natal hibernal, apesar de estarmos passando por um período de verão com a temperatura atingindo os 47 graus, porque ontem tomei conhecimento das previsões do infalível Departamento de Meteorologia: "Nas três próximas quinzenas a temperatura do chorume tende a ficar em torno dos 15 graus negativos" – se essa coisa congelasse, teríamos neve negra no Natal.
16 de dezembro de 2053
Aniversario hoje. Completei os 75. Não haverá comemoração. Há muito tempo não se festejam aniversários. Não há motivos que justifiquem comemorações. Poucos, entre os que vivem (sobrevivem) aqui na Crosta, chegam a esta idade. Sabe-se que os milionários que moram nos condomínios espaciais, os SiJOs – Sideral Joint Ownerships –, já ultrapassam em muito os 100 anos de idade. O primeiro condomínio espacial, o SiJO-001, foi instalado nos anos 30 deste século XXI. As informações que nos chegam são precárias, porém dizem que três ex-presidentes dos EUA vivem hoje numa dessas megaestações. Dos brasileiros famosos que se tem notícia, fala-se de dois ex-empresários das comunicações, ambos já senis no início do século, mas atualmente desfrutando seus cento e muitos anos nas estações orbitais – verdadeiras cidades suspensas no espaço sideral.
25 de dezembro de 2053
É Natal. Por incrível que pareça, a música característica desta época ainda é Jingle Bells, o hino do Natal. Sempre que entramos no mês de dezembro, o alto-falante do abrigo toca-o dia e noite. Basicamente não há justificativa para confraternização de qualquer tipo. Contudo o Natal ainda é lembrado. Nas entradas dos abrigos subterrâneos, onde vive a maior parte dos litosféricos, são montados presépios. É uma iniciativa feminina, nos últimos tempos as mulheres sempre se encarregam de instalar as lapinhas (lembrei-me de minha infância, em minha terra chamavam presépio de lapinha). Existem atividades que só as mulheres exercem, montar presépio é uma delas.
Nem antropólogos, nem sociólogos, nem psicólogos, ninguém consegue explicar as razões, mas o fato é que a mulher ocidental orientalizou-se (para usar este termo que foi um neologismo muito em moda nos anos 2020), abandonou a postura feminista incrementada nos anos 1970, desistiu dos propósitos de emancipação profissional, provendo a subsistência em concorrência com os homens, e reassumiu a condição de aparente submissão ao domínio masculino. Pela via contrária, ocorreu a ocidentalização das orientais. Pelo menos foi isso que vimos enquanto tínhamos acesso à Internet.
Até o final da época das televisões via cabo e satélite, assistimos a muita manifestação feminista (no Oriente) e feminina (no Ocidente). Agora, sem rádio, televisão, jornal, revista ou Internet (só nos resta o Boletim Oficial, lido diariamente através dos alto-falantes), não sabemos mais a quanto andam as outras partes do mundo. Acredito que, hoje em dia, nenhum movimento de protesto ou reivindicação faz sentido em qualquer parte, pelo simples fato de não se ter a quem protestar ou reivindicar.
As ZCOSGTAs não passam de mero conceito geográfico, não têm governo próprio. Muita gente não sabe nem mesmo o que vem a ser governo. Há muito tempo não se usa o termo governar; mas, sim, gerenciar.
Os núcleos humanos são essas aglomerações sem identidade própria. Não se sabe ao certo o que são. Há muitos anos o termo comunidade caiu em desuso. A administração da OSGTA está restrita a pouquíssimas áreas. Em se tratando de economia e finanças, é o que chamam de gerenciamento mínimo, neoliberalismo (aqui está ele de volta, neomaquiado). Suas atuações mais marcantes estão restritas às áreas de Comunicação, por motivos óbvios, e Transporte – neste caso, especificamente porque temem migrações em massa. Migrar para onde?! – estamos sempre a nos perguntar uns aos outros. Desconfiamos que ainda possam existir na Crosta algumas áreas livres do chorume pluvial. Mas isso é apenas especulação.
13 de janeiro de 2054
Ontem à noite ouvi uma conversa entre uns companheiros aqui do abrigo. São pessoas na faixa dos 40 a 45 anos, como a maioria dos habitantes dos abrigos subterrâneos. Esses companheiros sabem de muita coisa referente à época pré-chorume.
Fgno, que parece ser o mais velho dos três, perguntou: "O que se imaginava que viesse depois do Armagedom?"
Pxton respondeu: "O Livro Sagrado falava de condenação e salvação: inferno pra uns, paraíso pra outros".
Aí Rtno acrescentou: "As pessoas especulavam sobre como se daria o Armagedom. Muitos imaginavam o Dia do Juízo como um momento em que se desencadeariam aterrorizantes fenômenos, mas esperava-se um evento com dia e hora marcada pelo Criador".
Estou registrando esse diálogo porque me lembrei de uma série de artigos escritos em 2019 por um sociólogo alemão que defendia a tese de que o século XX corresponde ao período apocalíptico profetizado nos livros sagrados das diversas correntes religiosas. Para ele, o narcotráfico, que se disseminou pelo mundo até meados da terceira década do século XXI, seria a representação de um dos Cavaleiros do Apocalipse. Sua tese, até o presente aceita pela maior parte da população, é, a meu ver, uma lucubração fantasiosa, sem nenhum respaldo científico.
A bem da verdade, é preciso reconhecer que, tirante o nazi-fascismo dos anos 1930 e dos 40, os demais fatos históricos do século passado se transformam em romanescos acontecimentos, quando comparados a esta catastrófica situação dos dias atuais. Mesmo o narcotráfico, que chegou a dominar praticamente todo o mundo e ameaçou transformar a população terrestre numa ignava massa de dependentes químicos, está, na categorização mundial da malignidade, em posição inferior às organizações político-financeiras que controlam o mundo atual, lá dos palácios flutuantes, no Olimpódromo (nome dado à via espacial transitada pelas estações orbitais em que vivem as elites dominantes). As viagens à Crosta, para aqueles maquiavélicos manipuladores da Economia, são aventuras radicais: só desembarcam aqui e circulam entre nós fantasiados de astronauta. Na verdade, quem nasceu e criou-se no espaço, nos SiJO’s, ou mesmo quem vive por lá há muito tempo, não tem biorresistência para suportar a atmosfera insalubre aqui da Crosta.
Em 2036 foi condenado e enviado para uma prisão submarina o último grande chefe do cartel das drogas na Amazônia. O SUJAZ – Sistema Unificado de Justiça Arbitrária das Zcosgtas – atualmente prefere a aplicação do degredo interplanetário ao confinamento em prisões subaquáticas ou à pena capital, por acreditar que tal castigo é mais exemplar que a própria morte.
17 de janeiro de 2054
(Costumo intervalar de períodos bem mais longos estes registros memoriais, porém um novo argumento me fez voltar aqui mais breve que de costume.)
Ontem me caiu nas mãos um velho exemplar de "O Século XX e o Apocalipse", uma compilação de textos publicados entre 2015 e 2030, os quais teorizam sobre a hipótese de que o século passado corresponda ao período apocalíptico anunciado pelas profecias dos livros sagrados; conforme as conjecturas daquele sociólogo alemão, a quem me referi no registro de 13 de janeiro último.
Os autores dessa obra são unânimes na opinião de que o Paraíso e o Inferno correspondem hoje à vida no Espaço e na Crosta, respectivamente. Assim, insistem em afirmar que os processos seletivos de condenações e absolvições, conforme as terrificantes revelações proféticas do livro Apocalipse, estejam explícitos nesta separação entre nós: os "excluídos" (habitantes da Crosta), e os "escolhidos" (habitantes dos SiJO’s). Mas garantem que ainda resta uma chance para os que aqui ficaram: salvarem-se através do processo de arrependimento e expiação e, finalmente, se submeterem a uma prova de incontestável fidelidade ao SUED – Sistema Universal de Educação e Disciplina –, ou – como no original – Discipline and Education Universal System – DEUS.
05 de fevereiro de 2054
Sei que até aqui estou dando a entender que discordo dessa suposta tese que faz do século XX a Era Apocalíptica, na qual teria ocorrido o catastrófico Armagedom, o conflito final entre o Bem e o Mal. No entanto a minha opinião não é simplesmente discordante. Na verdade, quem vive (?) os dias de hoje e viveu, pelo menos, o último quarto do século XX sabe que, dentre todas as atividades criminosas, dentre todos os cânceres sociais conhecidos até o presente, dentre todas as formas de corrupção ou de qualquer outra degradação moral possível, enfim, dentre tudo aquilo que possa ser classificado como danoso ao ser humano, nada pode se comparar (menos ainda se equiparar) ao ganancioso domínio político do poder econômico, nem ao entreguismo dos vendilhões da Pátria, nem ao funesto poder bélico das arrogantes superpotências. Fatores que, interagindo, formam o maior complexo de geração das desgraças que hoje assolam o Planeta. Depois disso, só nos resta sentir saudades do Apocalipse.
Fernando Soares Campos é escritor, autor de "Saudades do Apocalipse - 8 contos e um esquete", CBJE, Câmara Brasileira de Jovens Escritores, Rio de Janeiro, 2003; "Fronteiras da Realidade - contos para meditar e rir... ou chorar", Chiado Editora, Portugal, 2018; e "Adeildo Nepomuceno Marques: um carismático líder sertanejo", Grafmarques, Maceió, AL, 2022.
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