DOCE PARA AS ELITES

Clerisvaldo B. Chagas

DOCE PARA AS ELITES
(Clerisvaldo B. Chagas. 17.6.2010)

A Rua Tertuliano Nepomuceno, em Santana do Ipanema, Alagoas, tem início no Largo da Feira e se estende até o lugar chamado Aterro. O aterro representa um elevado de terra feito para continuidade à velha rodagem BR-316. Designa uma das mais antigas vias de Santana, prolongamento do quadro comercial dos tempos de vila. Ainda não perdeu totalmente o nome de Rua da Matança, porque ali, ao ar livre, era abatido o gado durante as sextas. Muitos casos acontecidos no lugar são contados de avôs para os netos. Os cabarés que ocupavam o início foram empurrados continuadamente para o final, para o Aterro, para ambos os lados do Aterro. Rua de bares, de casas de jogos, de bailes noturnos, de ébrios e boêmios. Nos dias de feira transforma-se na Rua dos Porcos, das Panelas, da Palha... Das Toldas. Por ali já residiram pessoas como o “Fonfom” (figura típica, homem de confiança do Coronel Lucena); o campeão de xadrez, Brás (antigo funcionário da casa Ideal, sapataria de luxo de Santana) e mesmo o primeiro intendente interventor, Frederico Rocha.
Perto do final da rua, do lado esquerdo, morava e trabalhava um barbeiro alto, moreno, simpático, de nome Manoel Mariano. Mariano era um dos inúmeros compadres de meu pai e gostava de visitar a nossa loja de tecidos. Sempre bem-humorado Mariano contou que certa vez, ele e a esposa, foram visitar um compadre, num sítio distante. Chegaram cedo e conversaram muito. Mas na hora do almoça ninguém falava em comida. À hora ia passando, a barriga pedindo socorro até que, desenganado, o casal visitante resolveu ir embora. Foi aí que o compadre disse: “Vá agora não, Mariano. A mulher estar fazendo um docinho ali na cozinha, sai logo!” Manoel ainda quis se animar, porém, a mulher do visitado pegou a deixa lá na cozinha e falou em voz alta: “E compadre é besta para comer doce quente e morrer, hem compadre!” E com essa, Manoel Mariano e sua esposa desocuparam rapidamente a casa e se fizeram na poeira de volta a Santana.
Muito tempo depois do caso de Manoel, estando eu na ante-sala do governador, enquanto aguardava, vieram lembranças da Rua Tertuliano Nepomuceno. Com elas, surgiu na mente a saga do barbeiro faminto. E naquele lugar de protocolos, seguranças, boas palestras, os ventos que traziam aromas adocicados sopravam pelos corredores, passavam nas janelas de vidros, rapavam as tintas das paredes austeras e brancas. Comparei o governador à mulher do sítio mexendo as iguarias em fogo de lenha. Um mexido sem fim que varava a manhã, à tarde, à noite, indefinidamente. Levantei-me e fui espiar a rua pelos vidros multicores. Talvez estivesse enjoado com o cheiro lá de dentro. Ou era um cheiro virtual? Meus olhos procuravam outros seres das multidões que hipoteticamente, acompanham o barbeiro Manoel Mariano. E lá na praça grande vejo mendigos, grevistas, viciados, batalhadores, como se estivessem aguardando, não o almoço, mas pelos menos a esperança de um lanche muito magro. Mas eu tinha a consciência de que eles só podiam contar com a fome do barbeiro. O mortal comum apenas pode observar de longe quando passa o “DOCE” PARA AS ELITES.

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