FAZENDA SAMAMBAIA

Crônicas

Por Luiz Antônio de Farias, capiá

Talvez por conta do isolamento imposto pela pandemia do COVID-19, bateu em mim uma malinconia, promovendo uma volta ao passado, levando-me a rememorar muitas passagens acontecidas ao longo dos meus atuais setenta e sete anos. Dentre um encadeamento de recordações, veio à mente que ainda não havia escrito algo sobre a Fazenda Samambaia, berço da família Silva, localizada no município de Jacaré dos Homens.

Os proprietários da fazenda, Antônio Silva (seu Tonho) e Maria Helena Silva (dona Neném) foram responsáveis por uma numerosa prole composta pelos filhos Tina, Bebé, Selma, Nego, Pituca, Maria, Tonho, Paulo, Zé Luiz e Marisete. Foi lá onde encontrei Maria, com quem casei em 23 de fevereiro de 1981. Da união nasceram Maria Luíza e Jorge Luiz, razões maiores de nossa existência. Na época, trabalhando no Banco do Brasil, eu já residia em Recife e lá foi fixado nosso domicílio até os dias atuais.

Valendo-me de um chavão bastante surrado,”saí do meu sertão, mas ele nunca saiu de mim”. Apesar de ter ido embora de minha querida Santana do Ipanema em 1977, nunca cortei o “cordão umbilical” com relação a minha terra. Os quase quatrocentos quilômetros que separam ela de Recife nunca serviram de obstáculo para impedir minhas idas e vindas, fossem elas isoladas, ou com toda família. Esta situação ocorria quando por ocasião das férias escolares dos nossos filhos.

Ademir Carvalho, casado com Marisete – irmã de Maria – trabalhava no Banco do Brasil, em Delmiro Gouveia, e nossas férias eram programadas de forma que fossem acomodadas nos meses de junho e julho, por conta da festa de São João na Fazenda Samambaia e da novena de nossa padroeira Senhora Santana. O roteiro de nossa viagem, a partir de Recife, era feito com passagem pela cidade de Delmiro, onde preliminarmente era cumprida a etapa inicial de uma jornada etílica. O compadre Arnon e Edmilson (Rivelino, por conta do seu avantajado bigodão) eram presenças garantidas. Outros parceiros adeptos ao “doce vício da embriaguês” – como costumava dizer Hélcio Gabriel Alvim, saudoso colega de trabalho – também faziam parte do concílio. Na programação constava, invariavelmente, uma ida à histórica cidade de Piranhas, onde saboreávamos, no bar do Dalvo, delícias proporcionadas pelos pescados, existentes abundantemente no nosso rio São Francisco. O proprietário, um cidadão octagenário, se notabilizava contando vantagens do tempo do cangaço. Dizia-se ter sido amigo de Lampião e de Corisco e que era muito admirado por Maria Bonita, que o tratava como “Galeguinho”. Orgulhava-se de ter feito “uma ponta” no filme Bye Bye Brasil, de Cacá Diegues, como pai do personagem protagonizado por Fábio Júnior.

Dando prosseguimento à caminhada, as duas famílias se juntavam e seguiam em direção à Fazenda Samambaia, onde eram cumpridas as etapas seguintes do período de lazer. O ponto culminante, sem dúvida, era a noite de São João, no lugar. A meninada aproveitava a ociosidade da melhor maneira que o tempo oferecia. O que não faltavam eram crianças para compor a numerosa “primaiada”. No dia da festa propriamente dita, os preparativos começavam cedo: tanto os enfeites dos ambientes, a cargo da turma jovem, como também a movimentação na cozinha, administrada por dona Nenê. No cardápio não poderiam faltar pamonha, canjica, milho cozido e assado, bolos e outras iguarias, próprias da ocasião.

A animação começava com o acender da fogueira e, em seguida, todos participantes, vestidos a caráter, se entregavam à alegria do folguedo, Enquanto os fogos iluminavam o céu os convidados “balançavam o esqueleto” na garagem, devidamente caracterizada para o arrasta-pé. Era uma festa democrática, onde os trabalhadores da fazenda e seus filhos dançavam com as netas dos proprietários sem nenhuma possibilidade de discriminação. Por fim, um dos momentos mais esperados das festividades acontecia no dia seguinte quando era servida, para os familiares e adjuntos, a tradicional e apetitosa buchada de carneiro, no melhor padrão da casa.

Tudo que foi dito faz lembrar a composição ”Fogo sem Fuzil”, abaixo reproduzida, dos fenomenais Luiz Gonzaga e José Marcolino. Por um longo tempo a história se repetiu a cada ano. Depois as crianças cresceram e foi mudado o curso da história.

“Eu esse ano vou me embora pro sertão/Pra dançar pelo São João/Farriar com mais de mil/Ver os velhotes atirar de granadeiro/E a moçada no terreiro/Tirar fogo sem fuzil/A meninada a brincar de “ané”/Pamonha e café sempre na mesa/E as moreninhas/prá servir com alegria/Quando for no outro dia tem buchada com certeza.”

Com a ida de Dona Nenê e Seu Tonho para o “plano superior”, e a consequente mudança dos seus filhos para outras paragens, praticamente acabou-se o encantamento da Fazenda Samambaia de outrora, deixando transparecer, de um modo geral, um sentimento de abandono. Particularmente, sinto um misto de saudade incontida, mesclada a uma imensurável recordação. Na minha forma de ver, a música “Fazenda Cacimba Nova” – a seguir refletida – dos já citados compositores, retrata a situação do reino encantado de antanho. É o que sinto, tomado de uma forte taciturnidade.

“Fazenda Cacimba Nova/Foi bonito o teu passado/Ainda estás dando a prova/Pelo o que vejo a teu lado/Um curral grande, pendido/Um carro velho, esquecido/Pelo sol todo encardido/Sentido, sem paradeiro/Falta de juntas de bois/Que lhe levava de dois/Obedecendo o carreiro.

Resistente casarão/Em ti as festas rolavam/Quando os vaqueiros brincavam/Em corridas de mourão/Um touro velho berrando/No tronco do pau fungando/Os seus chifres amolando/Com o maior desespero/Com heroísmo tamanho/Em defesa do rebanho/Fazendo medo ao vaqueiro.

Quem te vê sai suspirando/Lamentando cada instante/Vendo o tempo devorando/O teu passado brilhante/Mas rogo a Deus para um dia/Reinar-te ainda alegria/Paz, sossego e harmonia/Voltando a felicidade/Que um sentimento ao vaqueiro/Passando no seu terreiro/Solte um aboio de saudade/Ê, ê, ê, ô, ê/Ê, boi, ê daê, ê.

Fazenda Lagoa do Rumo, setembro/2020

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